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PARTE 3: SENTIDOS DO TRABALHO INFORMACIONAL CORPORATIVO

8. O TRABALHO IMPERMANENTE

9.3. Enredamento nas técnicas administrativas

Quando se fala em técnicas administrativas na atualidade, uma referência freqüente é a experiência de Jack Welch em seus 20 anos como CEO da General Electric. A popularidade de seu conjunto de princípios e técnicas gerenciais, que passaremos a denominar ‘modelo Welch’, pode ser aferida pela expressiva vendagem de suas recentes publicações (WELCH, 2001; WELCH, 2005) e pela disseminação de suas idéias em cursos de graduação, em MBAs e no cotidiano das organizações de diversos portes e setores. As

duas obras publicadas após sua aposentadoria fornecem indícios que podem explicar os resultados dessa experiência administrativa – indícios aqui agrupados em seis categorias:

• Foco – Na gestão Welch, os negócios da GE foram classificados em 3 categorias: fabricação básica, tecnologia e serviços. Qualquer outro negócio deveria ser ‘consertado’, vendido ou fechado. Em paralelo a essa focalização, realizou-se também uma redução de níveis hierárquicos e demissões em larga escala.

• Desburocratização – Uma das prioridades da gestão Welch foi a eliminação dos entraves à circulação de idéias e à participação. Uma das iniciativas implementadas foi o programa Work-out, caracterizado pela deliberação rápida quanto às propostas apresentadas pelos empregados: 75% das propostas tinham que receber aprovação ou reprovação imediata.

• Técnicas de gestão – Técnicas como o Seis Sigma, a avaliação 360 graus e a curva de vitalidade (classificação dos avaliados em 20% superiores, 70% medianos e 10% inferiores), já conhecidas e utilizadas em outras empresas, tiveram uma implantação integrada e patrocinada pelo CEO. Além destas, foram também implantadas técnicas desenvolvidas internamente: o Quick Market Intelligence, técnica de inteligência competitiva inspirada no Wal-Mart; equipes Destroy Your

Business, com a atribuição de propor novos negócios que pudessem substituir e

destruir os negócios da GE; e a Sessão C, atividade que vincula claramente as estratégias de RH aos principais negócios da empresa.

• Meritocracia – O rigoroso sistema de avaliação, baseado em resultados e no compartilhamento dos valores GE, premia os 20% superiores com promoção e benefícios pecuniários (como opções por ação) e pune os 10% inferiores com a demissão sumária. Esse processo, segundo Welch (2001), apesar de suas eventuais imprecisões, “aumenta drasticamente as chances de construir uma equipe de astros.” (p.174)

• Gestão da cultura – Desde o início de sua gestão, Welch dedica especial atenção ao universo simbólico da GE. Como um contador de histórias, utiliza um episódio real, da unidade de negócios de energia nuclear, para ilustrar os riscos do pensamento único e de se imaginar o futuro como extensão do presente. Desempenha esse papel de construtor de mitos organizacionais em diversas oportunidades, atuando também na substituição de metáforas existentes por outras mais adequadas à sua concepção de negócio: da ‘GE superpetroleiro forte e estável’

para a ‘GE lancha de assalto rápida’. Além do universo simbólico, atua também diretamente na realidade concreta, propiciando o desenvolvimento de novas ‘pressuposições básicas compartilhadas’ – sinônimo de cultura na definição de Schein (1992). Welch personifica o conceito de líder como o indivíduo que consegue ‘enxergar’ as pressuposições internalizadas pela organização e que tem a capacidade de administrá-las (SCHEIN, 1992). Ao mesmo tempo em que atua na gramática simbólica reinante, alterando a ‘teia de significados’ da organização (GEERTZ, 1989). Em outra ação para reforçar o conjunto de crenças e valores (mais uma definição de cultura) que considera desejáveis, determina que os programas de desenvolvimento gerencial da GE devem ter 85% do corpo docente formado por executivos internos. Sinalizando a importância do compartilhamento de valores, Welch divulga a informação de que, em determinado ano, dos cinco executivos afastados, um o foi por não produzir resultados e cinco, por não compartilhar os valores corporativos.

• Coerência – Essa talvez seja a característica determinante para o êxito das iniciativas sucintamente relatadas. A coerência interna desse conjunto de técnicas, princípios e regras é visível em todo o relato do autor. Mesmo discordando de uma ou várias dessas iniciativas, é possível reconhecer que foram implementadas de maneira consistente, apontando todas em uma mesma direção. Uma de suas mais categóricas afirmações merece destaque: “Pessoas extraordinárias, e não estratégias notáveis, foram os fatores críticos do sucesso. Passamos um tempo enorme recrutando, treinando, desenvolvendo e recompensando os melhores.” (WELCH, 2001:482). O foco na gestão de pessoas como fundamental à gestão organizacional é, muito provavelmente, um dos mais desgastados (e não implementados) discursos contemporâneos. O que merece destaque na experiência da GE são as fortes evidências de que, nesse caso, o discurso corresponde à realidade. Ainda que a gestão de pessoas, para Welch, tenha uma concepção questionável do que são as ‘pessoas’ no mundo do trabalho...

Todos esses indícios, sucintamente apresentados, parecem sugerir que o modelo Welch seja irretocável. Ainda mais quando tais indícios são corroborados por resultados econômicos indiscutíveis. Onde estariam, então, os pontos merecedores de melhor investigação?

Primeiramente, é necessário esclarecer que as críticas aqui apresentadas não se dirigem ao executivo Jack Welch. Tampouco visam a desmerecer sua biografia gerencial na GE. O que está em pauta é a entronização do modelo Welch como estado-da-arte em administração.

A primeira crítica se refere, exatamente, ao entendimento dessa experiência administrativa como panacéia gerencial de prescrição indiscriminada. Pressupor a transferibilidade desse conjunto de técnicas a quaisquer contextos é desconhecer, entre outros, os determinantes culturais que subjazem na experiência da GE. A própria concepção de liderança ‘à americana’ não é facilmente transferível à cultura brasileira. O líder heróico e o self-made man são personagens onipresentes no imaginário norte- americano, resultantes de uma concepção de indivíduo caracteristicamente moderna – indivíduo como origem e destinação de todos os deveres e direitos sociais, sobre quem as circunstâncias não assumem status de variável determinante. Diferentemente da concepção semitradicional de individualidade à brasileira, fortemente marcada pela utilização das circunstâncias como instância explicativa de sucessos e fracassos pessoais (BARBOSA, 1999). Quanto ao fenômeno liderança, o paternalismo típico da cultura nacional, baseado em centralização do poder e estabelecimento de vínculos de lealdade (BARROS, 2003), é um arquétipo bem mais adequado que o do líder heróico. Acrescente-se, ainda, que o marcante traço relacional da cultura brasileira (BARBOSA, 1999) tende a privilegiar, na alocação de direitos e deveres, os indivíduos com ‘melhores’ redes de relacionamento. Com tudo isso, é pouco provável a legitimação social de uma liderança ao estilo Welch em uma organização tipicamente brasileira, nos mesmos termos em que esta foi legitimada na GE.

Ainda na discussão da transferibilidade do modelo Welch, cabe notar que as técnicas utilizadas nesse modelo são, em grande parte, culturalmente dependentes. A instituição de práticas caracteristicamente meritocráticas e individualizantes em um contexto marcado pela relativização dos desempenhos e pelo foco nas relações (BARBOSA, 1999) enfrentará desafios diversos dos encontrados em seu contexto original.

Além dos condicionantes culturais, aqui destacados em alguns de seus aspectos, não se pode perder de vista os condicionantes estruturais e conjunturais. Estes são muito mais específicos e singulares em sua manifestação. A título de exemplo, poderíamos citar o porte da empresa, seu ramo de atividade e seu posicionamento competitivo, entre outros.

Pressupor uma transferibilidade absoluta do modelo Welch é desconhecer a complexidade do fenômeno da gestão – fenômeno multivariável e sujeito a múltiplos condicionantes.

A segunda crítica se dirige a alguns pressupostos subjacentes ao modelo em questão. Um deles é explicitamente declarado: “O pacto psicológico precisava ser mudado [de emprego vitalício para empregabilidade vitalícia]. Eu queria um novo tipo de acordo, tornando o emprego na GE o melhor do mundo para pessoas competitivas.” (WELCH, 2001:141) De acordo com outros trechos da narrativa, acrescentaríamos ainda que, além de competitivas, essas pessoas deveriam colocar sua carreira como prioridade e ser capazes de uma dedicação workaholic semelhante à do próprio Welch. Pessoas, enfim, compatíveis com um clima de hipercompetição, de auto-superação em bases permanentes e de insegurança explícita, considerando-se que, anualmente, 10% da força de trabalho com avaliação inferior eram automaticamente demitidos. Cabe observar que tais condições são propícias à já discutida erosão da solidariedade profissional; condições, portanto, não verificáveis apenas sob a aplicação de técnicas tayloristas-fordistas clássicas.

Interessante notar que, nas pesquisas internas sobre a satisfação dos empregados, os índices da GE eram invariavelmente elevados. Uma leitura apressada poderia sugerir que tais condições de trabalho não seriam assim tão ‘desafiadoras’. Contudo, não se pode perder de vista qual é a população investigada nesse caso: exatamente uma população de perfil compatível com essas características. Ou seja, não é possível se tirar conclusões gerais com base em uma amostra tão particular.

Acrescente-se, ainda, que é no mínimo questionável a prioridade atribuída ao papel profissional, no modelo Welch, em detrimento do pessoal, do familiar e do social. Insustentável, no entanto, é a prescrição generalizada de tal priorização como essencial para o sucesso no mundo corporativo. Mais uma vez, não se está discutindo o caso GE em si, mas a utilização indiscriminada de seu modelo e de seus pressupostos. Debates fundamentais sobre a importância relativa dos diferentes papéis humanos e sobre o que significa sucesso passam ao largo desse discurso generalizante e perigosamente sedutor.

Ainda no âmbito da crítica aos pressupostos do modelo Welch, deve-se notar que sua replicabilidade, em termos gerais, não é matematicamente factível. Quando se tenta institucionalizar esse modelo como panacéia gerencial, há um frágil pressuposto de que seria possível um mercado de trabalho no qual todas as empresas captariam profissionais capacitados, competitivos e workaholics, e no qual essas mesmas empresas descartariam, anualmente, 10% de seu contingente menos brilhante. Discursos do tipo ‘os descartes de

uma GE e de uma IBM são disputados no mercado’, utilizados como atenuantes para essas demissões sistemáticas, só seriam empiricamente confirmáveis enquanto uma minoria de empresas líderes adotasse a técnica da curva de vitalidade. Isso significa que a própria disseminação dessas práticas levaria à inviabilização do modelo Welch.

As análises aqui apresentadas sobre a transferibilidade e a replicabilidade de técnicas administrativas, bem como sobre a validade de seus pressupostos, são características de uma reflexividade essencial. Se tal reflexividade não for exercida pelos consumidores dessa literatura gerencial não-acadêmica, o enredamento em suas generalizações e em suas disfunções tende a ser inevitável.

Outras possibilidades de enredamento em técnicas administrativas, verificáveis na atualidade, seriam os processos de certificação pela ISO 9000 e os processos de implantação de sistemas integrados de gestão, como o SAP R/3. As disfunções relacionadas ao primeiro já são por demais conhecidas no mundo corporativo: burocratismo, procedimentos que não refletem a realidade, práticas que não se baseiam nos procedimentos, dispêndio de tempo, resultados pífios. Obviamente, existem casos bem- sucedidos de implantação de sistemas da qualidade, caracterizados pela adequação dos processos a tal sistema e pela sensatez na implementação. Mas o enredamento nos casos disfuncionais não é negligenciável.

A implantação de sistemas como o SAP R/3 e similares, popularizados nas últimas décadas, é outro exemplo de como as técnicas gerenciais, mesmo adequadamente concebidas, podem enredar indivíduos e organizações em processos disfuncionais. Depoimentos de entrevistados que vivenciaram tais processos – tanto empregados como profissionais de saúde – evidenciam como esse enredamento pode ser traumático, acarretando descontinuidade operacional para as organizações e distúrbios físicos e psíquicos para os indivíduos. Sem falar na questão, já abordada, da adequação e da transferibilidade de tais sistemas a empresas de portes e segmentos diferentes e em culturas diversas. Mais uma vez, em que pesem os prováveis casos de implantação bem-sucedida e sem maiores abalos, subsistem os freqüentes casos problemáticos que caracterizam o que denominamos enredamento em técnicas administrativas: o aprisionamento ao uso inadequado dessas técnicas, resultando em disfunções organizacionais e individuais.