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PARTE 3: SENTIDOS DO TRABALHO INFORMACIONAL CORPORATIVO

8. O TRABALHO IMPERMANENTE

8.2. Cronocracia e neofilia

Cronocracia é o termo aqui proposto para denominar a soberania do tempo na gestão corporativa e na experiência individual de trabalho. Neofilia, por seu turno, é o apreço pelo novo (LIPOVETSKY, 2004a), a busca pela novidade que acomete tanto indivíduos como organizações. Os dois termos delimitam o recorte de impermanência do trabalho no qual se desenvolve a investigação a seguir.

A atuação em rede, que caracteriza grande parte do trabalho informacional corporativo, tem sua manifestação mais extrema quando envolve profissionais de diferentes países. Nesses casos, o tempo local perde sua significação absoluta, criando uma categoria de profissionais sujeitos à interação síncrona entre fusos horários – resultando, portanto, em uma indeterminação nas fronteiras temporais do trabalho.

Mas tal fenômeno não é circunscrito a esses casos particulares. O cronocrático regime de urgência do cotidiano corporativo faz com que a indeterminação temporal e espacial seja verificável em um número muito maior de situações. O que merece ser destacado, contudo, é que a permeabilidade das citadas fronteiras predomina em um dos sentidos: o da expansão do tempo de trabalho sobre o de não-trabalho. No Brasil, relatos dessa disponibilidade 24x7 são comuns em setores como o de telecomunicações, não sendo, contudo, a ele restritos.

A urgência é o mote e a tecnologia, a viabilizadora dessa permeabilidade. Equipamentos como laptops e PDAs conectados à internet e telefones celulares compõem o aparato básico de muitos profissionais corporativos. E no caso de ocupantes de função gerencial, são comumente disponibilizados e custeados pela própria organização.

O que esses casos ilustram é a impermanência dos outrora nítidos limites espaciais e temporais entre trabalho e vida pessoal. No entanto, a percepção individual desse fenômeno varia significativamente: para uns, trata-se de um tormento; para outros, uma realidade com a qual se acostumam sem maiores sacrifícios.

Outro âmbito de impermanência é o que se verifica nos próprios atributos do trabalho corporativo. O primeiro é a natureza do vínculo empregatício. Desde a década de 90, a estabilidade implícita ou explícita da relação empregador-empregado perde espaço na realidade e no imaginário ocupacional (BRIDGES, 1995; MARTINS, 2001; RIFKIN, 1995). A imprevisibilidade passa a ser a regra para a maioria dos profissionais da iniciativa privada. O segundo atributo é o do contexto desse vínculo: estruturas organizacionais,

diretores, gerentes, estratégias e prioridades mudam a intervalos cada vez menores. Os processos de mudança, em muitos casos, parecem ter perdido sua condição instrumental para se tornarem fins em si mesmos. O imperativo da mudança, nesses casos disfuncionais, seria reflexo de um mero comportamento de manada ou de aquiescência cega a supostos axiomas administrativos. A reengenharia, em meados dos anos 90, impulsionou essa tendência popularizando o preceito da ‘destruição criativa’. Ainda que, segundo seus críticos, tenha sido muito mais eficaz em sua dimensão destrutiva que na criadora. Ao que parece, na percepção do senso comum administrativo, a mudança incremental nos moldes da então popular qualidade total tornou-se por demais morosa.

Nos dias de hoje, a experiência da estabilidade administrativa tende a ser percebida, genericamente, como negativa. Se uma organização não passa por uma grande reestruturação há dois ou três anos, algo deve estar errado! E, nem sempre, há razões consistentes para mudanças radicais. Os reflexos negativos dessa neofilia obsessiva já são identificados e diagnosticados na literatura especializada. A denominada ‘síndrome da mudança repetitiva’ (ABRAHAMSON, 2004), por exemplo, é uma coleção de disfunções resultantes do abuso dessa intervenção administrativa, sendo composta basicamente por: • Sobrecarga de iniciativas – A organização lança iniciativas de mudança em quantidade

superior ao factível, prejudicando sua implementação, afetando a rotina do trabalho e deteriorando a capacidade de atendimento aos clientes. Ademais, o anseio de cada novo executivo em imprimir sua marca multiplica essa sobrecarga ao decretar a obsolescência do modelo de gestão anterior, estabelecendo novos projetos, prioridades e linhas de atuação.

• Caos associado às mudanças – Desorganização operacional pelo desconhecimento das razões para as iniciativas de mudança, resultando em ansiedade e lutas políticas internas. Adicionalmente, nem sempre as novas estruturas e processos estão prontos quando os anteriores são descontinuados, agravando ainda mais a referida desorganização.

Burnout profissional – O profundo desgaste experimentado pelo indivíduo em tal

ambiente instável e litigioso freqüentemente se manifesta através do cinismo e da ironia frente às iniciativas organizacionais.

Um grave efeito colateral desse abuso de mudanças é que a citada síndrome acaba por deteriorar a capacidade da organização em implementá-las quando estas são realmente necessárias. Ao que parece, o maior desafio da gestão contemporânea, nesse âmbito, não

seria o de lidar com os resistentes (change-avoiders), e sim com os viciados em mudança (change-aholics) (ABRAHAMSON, 2004).

O comentário de um executivo entrevistado ilustra uma interessante dimensão adicional dessa neofilia: “Tive 5 diretores nos últimos 5 anos – como posso ser corretamente avaliado dessa forma? (...) Tenho que mostrar serviço a todo momento! Sou levado a me manter sempre em meu desempenho máximo”. O que se percebe é que a impermanência, nesse caso, atinge também os relacionamentos interpessoais, que se tornam precários e descontínuos; afeta o reconhecimento da contribuição individual, pela reduzida disponibilidade de informações sobre o avaliado; e compromete a vivência ocupacional, submetida a constante exigência máxima, ainda que auto-imposta.

A impermanência dos relacionamentos é outro ponto a considerar – e não apenas em sua dimensão hierárquica. Mudanças constantes podem, por exemplo, desestruturar equipes eficazes. Além do possível impacto direto nos resultados, há que se avaliar os impactos indiretos provocados pela ruptura de redes de relacionamento. O caráter relacional da cultura brasileira (BARBOSA, 1999) e sua manifestação no contexto de trabalho podem gerar disfunções adicionais às previstas em pesquisas norte-americanas, como a da citada síndrome da mudança repetitiva.

Mudanças organizacionais podem implicar, ainda, mudanças geográficas. Um gerente de nível intermediário relata seu dilema frente a uma mudança inevitável do Rio para São Paulo. Na condição de pai divorciado com guarda compartilhada, como manter o mesmo nível de atenção aos filhos residindo em diferentes cidades? Como recusar a mudança, sabendo que isso significaria demissão, se não há perspectivas razoáveis de recolocação considerando-se sua formação, seu ramo de atividade e sua faixa etária?

Estudos sugerem que tais manifestações de impermanência seriam resultado de uma financeirização das organizações (FLEURY, 2004): a lógica financeira teria substituído a lógica econômica e se tornado preponderante na realidade corporativa. Como conseqüência, a volatilidade dessa lógica se refletiria na volatilidade dos arranjos organizacionais (ZILBOVICIUS, 2004). A flexibilidade administrativa, que caracteriza as técnicas de gestão contemporâneas, seria o equivalente organizacional da liquidez financeira (JETIN, 2004).

Do ponto de vista sociológico e filosófico, análises essencialmente diversas levam a constatações semelhantes quanto à impermanência do (e no) trabalho. Lipovetsky (2004b: 77), por exemplo, considera que a contemporaneidade se caracteriza “pela ideologização e

pela generalização do reinado da urgência.” Ao lado de uma hegemonia do presente, estaria sendo igualmente vivenciada uma supremacia do futuro em relação ao passado (LIPOVETSKY, 2004b). Urgência e imediatismo seriam, portanto, os correspondentes filosófico-sociológicos à volatilidade e à flexibilidade da perspectiva administrativo- financeira. Essas perspectivas multipolares se reforçam, mutuamente, como fatores potencialmente explicativos da cronocracia e da neofilia aqui descritas. Mas a impermanência do trabalho apresenta manifestações adicionais, passíveis de caracterização e descrição.