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1 Problemas de teoria constitucional: limites materiais de reforma

1.2 A inconstitucionalidade das emendas violadoras de direitos e garantias

Desde já, é preciso ressaltar que o propósito aqui enunciado é muito diferente daquele de tentar prever, com o máximo de exatidão possível, quais os argumentos que os juízes do Supremo Tribunal Federal, ou de qualquer outra corte, efetivamente adotariam para declarar a inconstitucionalidade de uma emenda à CRFB/88, quando esta fosse acusada de violar direitos e garantias individuais.22 Trata-se, antes, de apresentar, com um mínimo de segurança e clareza, algumas questões que obrigatoriamente fariam parte de uma decisão desse tipo. Uma aproximação dessas questões foi oferecida pelo Ministro Moreira Alves, no julgamento da ADInMC 939-7/DF:

tenho sérias dúvidas a respeito do alcance das denominadas “cláusulas pétreas” a que se refere o § 4º do art. 60 da Constituição. Principalmente no tocante à cláusula pétrea concernente aos direitos e garantias individuais, se se considerarem como tais não só os constantes nos setenta e sete incisos do art. 5º, mas também os demais direitos e garantias expressos na Carta Magna, bem como os decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Só essa cláusula petrificaria quase toda a Constituição, além de petrificar os tratados – que persistiriam ainda quando denunciados – de que decorrem direitos e garantias. Por outro lado, há o problema do alcance da expressão “emenda tendente a abolir” que implica que há um espaço onde ainda não ocorre essa tendência, certo como é que a Constituição não declarou que as matérias concernentes a essas cláusulas pétreas são imutáveis. (ADInMC 939-7/DF, Relator Ministro Sydney Sanches, 15.09.1993, p. 2032, grifo no original)

O raciocínio do Ministro Moreira Alves tem como ponto de partida o texto constitucional. Com efeito, preceitua o art. 60, § 4º, IV, CRFB/88, que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”. Desse mesmo texto o magistrado extraiu duas questões distintas: 1) a questão do alcance da cláusula

22 Sem ignorar a existência do controle preventivo de constitucionalidade das emendas efetuado pelo próprio

órgão competente para reformar a Constituição, ou seja, pelo Congresso Nacional, conforme dispõe a CRFB/88, art. 60.

dos direitos e garantias individuais; é dizer, quais são os direitos e as garantias que se oferecem como limites materiais às alterações formais da Constituição? 2) a questão do alcance da expressão “tendente a abolir”; é dizer, qual a intensidade da proteção de que gozam esses direitos e garantias em face da ação erosiva do poder de reforma constitucional?

A primeira pergunta remete à definição de um critério de reconhecimento dos direitos abarcados pelo dispositivo constitucional assecuratório. O tema, como asseverou o Ministro Carlos Velloso:

[…] exige considerações a respeito dos direitos fundamentais, no sentido de se saber se todo e qualquer direito assegurado ao indivíduo estaria incluído na cláusula pétrea do art. 60, § 4º, IV, ou se seria lícito, presente a teoria geral dos direitos fundamentais, distinguir entre direitos individuais que, por sua importância, constituiriam a cláusula pétrea do art. 60, § 4º, IV, e outros direitos que, não obstante conferidos pela Constituição, não se elevam à categoria de direitos fundamentais e, por isso, não seriam intangíveis, como os primeiros, à mão do legislador constituinte derivado. (ADInMC 1.497/96, p. 64)

Seria suficiente a alusão a um critério formal de reconhecimento dos direitos e garantias protegidos, por exemplo, a história ou a letra fria do texto constitucional? Como, de um lado, pareceu indicar o Ministro Paulo Brossard, ao dizer, no julgamento da ADInMC 939-7/DF, que a edição da Emenda Constitucional n. 03/93 que instituiu o Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras:

[…] afrontou alguns dogmas do nosso Direito, não apenas legislado, mas, do nosso Direito histórico, daquele que, a despeito das deploráveis alterações constitucionais, sucessivas alterações constitucionais, é conservado, formando uma espécie de patrimônio cultural, de lastro histórico da nação e com o qual a nação se identifica.

(ADInMC 939-7/93, p. 2021)

E, de outro foco, pareceu entender o Ministro Marco Aurélio, ao sustentar, na mesma ADInMC 939-7/DF, como fundamento para a inclusão do princípio da anterioridade tributária (art. 150, III, “b”, CRFB/88) sob o manto da cláusula pétrea dos direitos e das garantias individuais, que:

[…] no próprio art. 150, com utilização de vocábulo muito sugestivo – e não posso atribuir ao legislador constituinte a inserção na Carta de palavras sem sentido vernacular – limitou-se a atividade do Estado no campo da criação de tributos. O caput do artigo 150 é explícito ao rotular como garantias o que se contém nos incisos. (ADInMC 939/93, p. 1985)

Ou, ao revés, esse problema exige algum tipo de critério material para ser enfrentado? Como defendeu o Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento final da ADIn 939 -7/DF (15.12.1993, p. 253), quando disse que “na demarcação de qual seja a extensão da limitação material ao poder de reforma constitucional […] o intérprete não pode fugir a uma

carga axiológica a atribuir, no contexto da Constituição, a eventuais direitos ou garantias nela inseridos.”

Questionamento que se vê agravado por outro: como lidar com as dificuldades decorrentes da interpretação das cláusulas de abertura, que dão margem à existência de direitos constitucionais não enumerados, como o artigo 5º, § 2º, da Constituição Brasileira?23

Alguns intérpretes, como é o caso do Ministro Moreira Alves, pensam que se se considerarem como acobertados pela cláusula pétrea dos direitos e garantias individuais não só as prerrogativas constantes nos incisos do art. 5º, mas também os demais direitos e garantias expressos na Carta Magna, bem como os decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, só essa cláusula petrificaria quase toda a Constituição.24 Outros intérpretes, no entanto, defendem ponto de vista contrário, como é o caso do Ministro Carlos Velloso:

Direitos e garantias individuais não são apenas aqueles que estão inscritos nos incisos do art. 5º. Não. Esses direitos e essas garantias se espalham pela Constituição. O próprio art. 5º, no seu § 2º, estabelece que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República do Brasil seja parte.25 (ADInMC 939/93, p. 2006-2007)

Já a segunda questão, concernente à intensidade da proteção dos direitos e das garantias individuais, cobra a análise dos cânones adequados para demarcar a linha que separa as limitações permitidas das restrições proibidas e, assim, distinguir os casos em que uma emenda apresenta-se como “tendente a abolir direitos e garantias individuais” daqueles

23 A redação do art. 5º, § 2º, CRFB/88 é a seguinte: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não

excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

24 No mesmo sentido, pronunciaram-se o Ministro Octavio Gallotti, “estou também convencido de que os

direitos e garantias individuais, preservados de emenda pelo inciso IV do § 4º do art. 60 da Constituição, são, em princípio, os enumerados nos setenta e sete incisos do art. 5º da Constituição, e que se estendem por todo o Capítulo I do Título II, da mesma, precisamente denominado ‘Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos’ (ADInMC 939/93, p. 2034); e o Ministro Maurício Correia, “para precisar exatamente o que seria a perpetuidade dos direitos e garantias fundamentais de que trata o Título II da Constituição, a ponto de não se admitir qualquer ingerência do poder constituinte derivado, embora paire uma nuvem cinzenta sobre essa temática, entendo que a imutabilidade reside na avaliação estrita do art. 5º e seus incisos da Carta de 1988”. (ADInMC 1.497/96, p. 79)

25 Destaque-se que o entendimento afirmado pelo Ministro Carlos Velloso, que no caso acompanhava o do

relator do julgado, Ministro Sydney Sanches, no sentido de que a cláusula dos direitos e das garantias individuais não se restringe aos incisos do art. 5º, foi o que ao final prevaleceu no Supremo Tribunal Federal. No julgamento definitivo da ADIn 939-7/DF, em 15.12.1993, o Tribunal julgou parcialmente inconstitucional a Emenda 3/93, dentre outras razões, por desrespeito à cláusula pétrea dos direitos e garantias individuais, fruto da violação do princípio da anterioridade tributária (art. 150, III, “b” da Constituição), e da norma que, estabelecendo outras imunidades impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre: b) templos de qualquer culto; patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão.

casos em que isso não ocorre. Existem ao menos três roupagens diferentes de demonstração desse problema. A primeira foi exposta pelo Ministro Paulo Brossard no julgamento da ADIn 830-7/DF (Relator Ministro Moreira Alves, 14.04.1993):

Gostaria de observar que com sabedoria o constituinte usou um verbo que vem sendo empregado desde 1891: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir…” “Abolir”, quer dizer: extinguir, apagar, desfazer, suprimir, eliminar.

[…]

Ao que me parece, o fato de se dizer que não será admitida emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais não significa que a declaração dos direitos e o elenco das garantias não sejam suscetíveis de emendas, desde que não venham a ser abolidas as garantias e os direitos.(ADIn 830/93, p. 233, 237, grifo no original)

Outra forma de apresentar o problema é comparar a dicção do art. 60, § 4º, da CRFB/88, com os termos do art. 79, 3, da Constituição alemã. Essa forma de exibição foi apresentada pelo Ministro Moreira Alves na mesma ADIn 830-7/DF:

Constituição de Bonn, na qual, na parte final da alínea 3 do artigo 79, é categórica no sentido de que “não é permitida qualquer modificação desta lei fundamental que atinja a divisão da Federação em Estados, ou o princípio da cooperação dos Estados na legislação, ou os princípios consignados nos artigos 1 e 20” (“Eine Anderung dieses Grundgesetzes, durch welche die Gliederung des Bundes in Lander, die grundsatzliche Mitwirkung der Lander bei der Gesetzgebung oder die in den Artikeln 1 und 20 niedergelegten Grundsatze behürt erden, ist unzulassig”)

No Brasil, em que se adota uma fórmula mais mitigada – a de não se admitir proposta de emenda tendente a abolir (o que implica dizer que não há imutabilidade absoluta, mas proibição de alteração que demonstre à abolição dos princípios previstos nos quatro incisos do § 4º do art. 60 da Constituição) -, tem-se que admitir, no mínimo, que as cláusulas pétreas, por serem princípios excepcionais, são normas de interpretação restrita. (ADIn 830/93, p. 183-184, grifo no original)

E, posteriormente, retomada pelo Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento da ADIn 2.024-2/DF (Relator Ministro Sepúlveda Pertence, 27.10.1999):

De resto, é importante não perder de vista que – malgrado ampla como poucos na sua extensão material dos princípios que enumera – o art. 60, § 4º, da Constituição brasileira traduz vedação de intensidade menor que cláusulas congêneres de outras cartas políticas.

Assim – em primoroso trabalho dedicado ao tema (A Constituição e sua Reserva

de Justiça – um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma,

Malheiros, 1999, p. 179) – assinala Oscar Vilhena Vieira que, enquanto a Lei Fundamental alemã (art. 79.3) proíbe admissão a proposta de emenda que afete os direitos e princípios fundamentais que protege, a do Brasil, no ponto menos restritiva, veda a deliberação sobre as que tendam a aboli-los. (ADIn 2.024/99, p. 87, grifo no original)

Uma terceira forma, essa diretamente oriunda da Tribunal Constitucional Federal alemão, foi exposta pelo Ministro Gilmar Mendes, no julgamento da ADIn 3.105- 8/DF:

O efetivo significado dessas cláusulas de imutabilidade na práxis constitucional não está imune à controvérsia. Se se entender que elas contêm uma “proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais”

(Verfassungsprinzipiendurchbrechungsverbot), tem-se de admitir que o seu significado é bem mais amplo do que uma proibição de revolução ou de destruição da própria Constituição (Revolutions- und Verfassungsbeseitigungsverbot). É que, nesse caso, a proibição atinge emendas constitucionais que, sem suprimir princípios fundamentais, acabam por lesá-los topicamente, deflagrando um processo de erosão da própria Constituição. (ADIn 3.105/04, p. 196-197, grifo no original)

Além dessas posições, que enfatizam a separação entre abolição e

insuscetibilidade à alteração, ou entre abolição e afetação, ou entre “proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais” e “proibição de revolução ou de destruição da própria Constituição”, que parecem concordar com a idéia de que não é qualquer

interferência com um direito ou garantia individual que caracteriza ofensa à cláusula pétrea do art. 60, § 4º, IV, CRFB/88, existem aqueles que, divergindo, enxergam o termo tendência à

abolição como sinônimo de afetação. Essa visão, que teve seu ponto alto na ADIn 939-7/DF26

(medida cautelar em 15.09.1993 e decisão final em 15.12.1993), tem sido capitaneada, no Supremo Tribunal Federal, pelo Ministro Marco Aurélio. No julgamento da ADInMC 1.497- 8/DF (09.10.1996, p. 76), ele teve a oportunidade de afirmar, “o art. 60, § 4º, inciso IV, é categórico no que veda deliberação sobre proposta de emenda que vise a abolir direito ou garantia constitucionais.” E, no seu pronunciamento na apreciação da medida cautelar no Mandado de Segurança n. 23.047-3/DF (Relator Ministro Sepúlveda Pertence, 11.02.1998, p. 2568), ele reiterou: “retiro desta menção a ‘direitos e garantias individuais’ a maior eficácia possível”.

O aspecto notável acerca do posicionamento do Ministro Marco Aurélio é que ele esvazia a importância do problema da intensidade da proteção dos direitos e garantias individuais. Se a vedação constitucional é categórica, não havendo margem de relativização admissível, a pergunta, nos casos de ofensa a direitos e garantias individuais, restringe-se a indagar se o direito ou garantia em discussão é, ou não, acobertado pela cláusula do art. 60, § 4º, IV. Em caso positivo, a emenda é inconstitucional; em caso negativo, ela é constitucional. Não há que se discutir a intensidade da interferência.

26 Nesse julgamento, o relator, Ministro Sydney Sanches, após defender que o princípio da anterioridade

tributária estaria acobertado pela cláusula pétrea dos direitos e garantias individuais, assentou: “Nem me parece que, além das exceções ao princípio da anterioridade, previstas expressamente no § 1º do art. 150, pela Constituição originária, outras pudessem ser estabelecidas por emendas constitucional, ou seja, pela Constituição derivada. Se não se entender assim, o princípio e a garantia individual tributária, que ele encerra, ficariam esvaziados, alargando as exceções, seja para impostos previstos no texto originário, seja para os não previstos”(ADIn 939/93, p.240). Diante dessa linha majoritária, o Ministro Paulo Brossard fez constar em seu voto, ainda na apreciação da medida cautelar: “acompanho o eminente relator, concedendo a cautelar, sem endossar, no entanto, as eruditas considerações feitas a respeito da imutabilidade de boa parte das normas constitucionais, que direta ou indiretamente seriam intocáveis, quando a Constituição, fala apenas em sua abolição.” (ADInMC 939/93, p.2023) Como observou atentamente Oscar Vilhena Vieira (1999, p.180), “embora a Constituição brasileira empregue o termo abolir, no caso do IPMF [ADIn 939/93], o Tribunal o interpretou como se significasse afetar.”

Não há consenso, portanto, nem ao menos sobre quais as perguntas que devem ser respondidas quando da análise da interpretação e da aplicação judicial da cláusula dos direitos e garantias individuais. Percebe-se, assim, que os contornos da discussão sobre os direitos e garantias individuais como limites ao poder de reforma da Constituição englobam muitas divergências e poucos acordos. E que um passo importante a ser dado na análise do problema consiste na correta compreensão dos contrapontos que ele envolve. Para isso, no entanto, será necessário desenvolver uma série de considerações adicionais. A despeito disso, o objetivo, no momento, é apenas apresentar os problemas. E eles não param por aí.

A rigor, as perguntas a serem elucidadas não seriam apenas aquelas tocantes ao alcance da proteção garantida pela CRFB/88 aos direitos e garantias individuais. De fato, tais indagações só têm sentido e utilidade a partir do momento em que está reconhecida a vinculação constitucional da função reformadora e a capacidade dos juízes de fiscalizarem tal vinculação.

Certamente, esta não é uma colocação imune a desentendimentos. Com efeito, se a competência do Judiciário limita-se à aplicação da lei e a Constituição é a lei das leis, à primeira vista, é um contra-senso afirmar que uma emenda ao texto constitucional – portanto, norma pertencente à Lei Suprema – pode ter sua constitucionalidade controlada. Conforme já foi dito, o controle de constitucionalidade pressupõe supremacia da Constituição, ou seja, pressupõe que a Constituição imponha limites jurídicos ao poder que realiza o ato a ser controlado. Isso significa que o controle de constitucionalidade das emendas supõe que o poder do qual elas emanam seja limitado pela própria Constituição. Mas se as reformas constitucionais produzem emendas aditivas, modificativas ou supressivas de normas constitucionais, como podem elas serem frutos de um poder menor do que aquele que dá a própria Constituição? Como um poder constituído poderia produzir normas com o mesmo valor do poder constituinte?

Evidentemente, um trabalho mais dilatado sobre o tema deveria dar conta dessas questões, e preocupar-se em sustentar tanto a natureza juridicamente vinculada da função reformadora quanto a competência judicial na matéria (BACHOF, [1951] 1994, p. 14, 37, 70). Ambas as questões, sem embargo, perdem centralidade neste texto. O objetivo aqui almejado é mais reduzido. Quer se saber apenas como devem ser interpretadas, por juízes e tribunais, cláusulas específicas de limites materiais, como a “cláusula de direitos e garantias individuais” da CRFB/88, tendo em conta um sistema jurídico que consagra a vinculação jurídica das reformas constitucionais e atribui poder ao Judiciário para fiscalizá-las.

Não caracteriza um disparate fazer essas duas suposições com relação ao sistema constitucional brasileiro. Em que pese exista discussão doutrinária em torno da força jurídica dos limites materiais ao poder de reforma da Constituição27 e da competência dos tribunais para controlar esses limites,28 tais divergências não parecem ter abalado os alicerces da tese de que as emendas constitucionais podem ter sua constitucionalidade material e formal controlada pelos órgãos judiciais. Sobretudo, porque o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do aparelho judiciário brasileiro, cuja função precípua é a guarda da Constituição, parece ter consolidado entendimento nesse sentido.

O leading case na matéria é a já mencionada ADIn 939-7/DF (Relator Ministro Sidney Sanches, 15.12.1993), a qual julgou parcialmente inconstitucional a Emenda Constitucional n. 3/93, que instituía o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF), por violação às cláusulas pétreas da CRFB/88. Nela o Supremo Tribunal Federal decidiu que “uma emenda constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é a guarda da Constituição” (ADIn 939/93, p. 160).29

27 De acordo com o magistério de Jorge Miranda (2000, p. 192-193), acerca do sentido a conferir aos limites

materiais de reforma constitucional três teses principais, com cambiantes vários, se defrontam: a daqueles que os tomam como imprescindíveis e insuperáveis; a daqueles que impugnam a sua legitimidade ou a sua eficácia jurídica; e a daqueles que admitindo-os, os tomam apenas como relativos, porventura suscetíveis de remoção mediante dupla revisão. Na doutrina brasileira, ao menos três autores de grande influência já defenderam alguma versão da terceira tese. Cármen Lúcia Antunes Rocha (1993, p. 182) disse não encontrar razões para “considerar oponíveis ao direito dos povos, em cada tempo, de adotar as suas próprias normas, sem precisar de para tanto promover a elaboração integral de uma nova Constituição, o direito da geração anterior e que traçou as normas fundamentais originárias de sua Constituição de subsistir mesmo depois de cumprido o seu percurso histórico em vida. Seria orientar-se no sentido de resguardar os direitos dos mortos e sobrepô-los aos dos vivos.” Ressalvou, no entanto, que “a reforma que possibilita a modificação das cláusulas irreformáveis há que ser feita para isto, e após a sua concretização é que ela pode vigorar para outras formas que sobrevenham”. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2000, p.49) sustentou que “as ditas ‘cláusulas pétreas’ são apenas um caso de rigidez acentuada, podem ser suprimidas, embora não possam ser contraditadas, enquanto vigorem”. Gilmar Mendes, ainda antes de ser nomeado para o Supremo Tribunal Federal, teve a oportunidade de afirmar que, em sua opinião, “pareceria bastante razoável” o entendimento de que “a revisão total ou a revisão parcial das cláusulas pétreas está implícita na própria Constituição”. (MENDES, 1994, p. 254)

28 O que é demonstrado pelo fato de que em outros sistemas constitucionais as coisas se passam de forma

diversa. Nesse sentido, por exemplo, a decisão da Suprema Corte norte-americana no caso Coleman v. Miller, que considerou a questão da regular execução do procedimento de reforma constitucional como questão política, portanto, excluída da alçada do Judiciário. (ROTUNDA; NOWAK, 1992, p. 283)

29 A particularidade da ADIn 939/93 é que nela, pela primeira vez, o Supremo Tribunal Federal declarou

inconstitucional uma emenda à Constituição em um julgamento definitivo. Note-se, porém, que o julgamento final da ADIn 939/93, em 15.12.1993, serviu como julgamento conclusivo de duas ações diretas, sendo que ambas haviam anteriormente tido seu pedido de medida cautelar apreciado pela Corte, a ADIn 926-5/DF, cuja