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1 Problemas de teoria constitucional: limites materiais de reforma

1.5 Interpretação e aplicação dos limites materiais de reforma

O conflito entre um determinado limite material ao poder de reforma e uma emenda constitucional é um caso de realização do juízo de constitucionalidade. Como nos demais casos, a solução desse conflito exige o uso de uma regra de colisão a qual não se encontra no interior dos próprios preceitos colidentes. Entretanto, conforme constatado, podem-se arrolar múltiplas regras que levam à resolução desse conflito. A obrigação do poder reformador de submeter-se às prescrições superiormente estabelecidas no texto constitucional, a proibição de que a Constituição formal contrarie a Constituição material, e o dever de obediência a um Direito supralegal são exemplos dessas regras. Mas, em que pese todas essas regras tenham a mesma destinação – determinar que as emendas constitucionais não podem contrariar limites materiais antepostos ao legislador de revisão –, elas não são completamente idênticas. É verdade que elas estabelecem o mesmo enunciado: “as emendas constitucionais devem respeitar os limites materiais de reforma”. Porém, não existe motivo algum para que

66 Tenha-se em conta que o constitucionalismo moderno limita não apenas negativamente, inabilitando os

exercentes do poder político, mas também positivamente. As Constituições também são criativas, elas criam novas práticas e geram novas possibilidades que de outra forma não existiriam. As Constituições não somente restringem o poder, elas também criam e atribuem poderes e, é claro, determinam a responsabilidade do governo para com o bem-estar geral (HOLMES, 1993, p. 215, 227). Um dos atributos necessários de uma Constituição política é a constitutividade, o criar e fundar um novo mundo político (HARRIS II, 1993, p. 164-165, 167). É inerente à lógica da Constituição, pelo menos das Constituições escritas frutos das revoluções liberais, que uma forma de vida política pode ser criada através da imaginação deliberada, cujos efeitos sejam refletidos num texto escrito revestido de autoridade. Uma ordem constitucional que correlaciona palavra e organização política possui um caráter não apenas constritivo, mas também capacitador. Uma Constituição escrita é em essência a aspiração dos seres humanos a criar e regular o mundo político por meio de palavras.

essas teorias dêem respostas semelhantes no momento de determinação do conteúdo dessas limitações.

Três intérpretes diferentes, partindo de uma mesma cláusula expressa de limites, embora concordem com a sua força obrigatória, podem obter sentidos diversos desse mesmo texto por estarem orientados por teorias diferentes sobre o porquê dessas limitações. Assim, por exemplo, um juiz, baseado na teoria do poder de reforma da Constituição, tenderá a procurar o sentido do dispositivo na literalidade do texto ou na intenção do legislador constituinte. Já um segundo juiz, fundado na teoria da constituição material, irá possivelmente averiguar o sentido da decisão política fundamental e, a partir dela, desenhará os contornos da cláusula de intangibilidade. Um terceiro juiz, por sua vez respaldado na teoria do Direito supralegal, poderá buscar nos princípios do Direito natural o correto significado desta provisão. É certo que em casos mais simples, mesmo partindo de premissas diversas, todos poderão chegar às mesmas conclusões. Se a cláusula disser, por exemplo, que o direito à vida não pode ser abolido, é muito provável que todos eles aceitem que uma emenda que instituísse a pena de morte, em tempo de paz, seria inconstitucional. É razoável que tanto a letra quanto o espírito da Constituição, e muito possivelmente também os princípios de Direito natural, conduzam intérpretes seriamente engajados na atividade interpretativa a esse mesmo resultado. Todavia, não há garantia de que esse consenso sobrevirá em casos mais difíceis.

Surge aqui uma primeira dificuldade. Um intérprete, quando da aplicação de uma específica cláusula de intangibilidade, diante da divergência sobre a resposta adequada ao caso, terá que escolher qual dessas teorias serve de fundamento à vinculação do órgão revisor, ao menos nos casos em que elas forneçam respostas contraditórias sobre o sentido e alcance dos limites. Mas onde ele poderá buscar motivos para preferir uma teoria à outra? Considerando-se que nenhuma das três teorias encontra fundamento no próprio texto das normas em jogo, é lógico que os motivos que levarão o intérprete a optar por uma delas em detrimento das demais também lá não estarão. Eles dirão respeito, em último grau, às razões por que o intérprete reconhece o seu dever de ser fiel à Constituição. Provavelmente, um intérprete que fundamente a autoridade da Constituição na sua origem democrático-popular utilizará o argumento do poder reformador. Por seu turno, aqueles que afirmam que uma Constituição é válida por refletir os princípios organizativos derivados do arranjo de forças políticas predominante na sociedade tenderão a apoiar o argumento da identidade da

Constituição material. Finalmente, quem fundar a autoridade da Constituição na verdade moral de seus preceitos estará inclinado a aceitar a justificativa do Direito supralegal.

Tem-se, nesses termos, um importante ensinamento, aliás já anunciado, acerca dos problemas de interpretação constitucional. Tais problemas envolvem tanto elementos textuais, presentes no texto da Constituição, quanto elementos extratextuais, localizados fora do texto, remissivos, em última análise, às razões que sustentam a autoridade da Constituição. Sendo assim, para o intérprete solucionar essa espécie de problema interpretativo, é preciso que ele tenha respondido previamente à questão de por que ele deve obediência à Constituição. O resultado da interpretação estará, portanto, diretamente relacionado com a justificativa que o intérprete apresentar para o dever de fidelidade à Carta Política.

Mas isto não esgota o âmbito problemático da interpretação das cláusulas de intangibilidade. De volta ao caso controverso de uma emenda que confronta um limite material expresso, sabe-se agora apenas duas coisas. Para resolvê-lo, será preciso (1) apelar para alguma teoria em torno da vinculação jurídica da atividade reformadora; (2) essa teoria será aquela ajustada aos motivos que justificam a fidelidade do intérprete à Constituição. Todavia, é admissível que mesmo intérpretes que concordem sob esses dois aspectos, ou seja, que reconheçam motivos bastante próximos para obedecer à Constituição e apliquem a mesma teoria da vinculação do poder reformador, discordem acerca do resultado final da sua interpretação.

Exemplar, a esse respeito, é a decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha no caso da Privacidade de Comunicação – 30 BverfGE 1 (1970).67 Nesse caso questionou-se a validade de uma emenda ao art. 10 da Lei Fundamental de Bonn (LF), que concedeu poderes ao Parlamento para autorizar, mediante lei, a vigilância sobre comunicações de particulares, sem que a pessoa sob vigilância tivesse que ser informada. Além disso, a emenda retirou da esfera judicial o controle das ações dos órgãos criados para supervisionar as comunicações, entregando tal função às autoridades administrativas apontadas pelo Parlamento. As justificativas para essas medidas eram principalmente de duas ordens. Elas forneceriam bases para uma regulação que colocaria fim a ingerência das potências estrangeiras (Inglaterra, França e Estados Unidos) que, mesmo depois do fim da ocupação posterior à Segunda Guerra Mundial, continuavam supervisionando as comunicações postais,

67 Consultou-se a tradução parcial da decisão para a língua inglesa feita por Walter F. Murphy e Joseph

telefônicas, telegráficas e de rádio na Alemanha Ocidental. Ademais, elas serviriam como uma garantia efetiva para a proteção da ordem fundamental democrática livre e da existência da Federação ou de um Estado-membro. Coube ao Tribunal Constitucional Federal decidir se essas disposições violavam, ou não, a cláusula de eternidade prevista no art. 79, 3, LF,68 que, dentre outras coisas, veda a revisão da LF no tocante aos artigos 1º 69 e 2070.

Dentre outras questões, o Tribunal enfrentou o problema de se as restrições efetuadas pela emenda ao direito à privacidade e ao direito à tutela judicial violavam a proteção à dignidade da pessoa humana, assegurada pelo art. 1º da LF. De acordo com o entendimento do Tribunal, alcançado por maioria, a autorização, estabelecida pela emenda, para que o governo não revelasse a um suspeito o fato de ele estar sob vigilância, sem que este ato estivesse sujeito a controle judicial, mas apenas ao controle de órgãos administrativos determinados pelo Parlamento, não violava a dignidade da pessoa humana (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 662).

Para chegar a essa conclusão, o raciocínio da Corte seguiu quatro passos. Em primeiro lugar, ficou definido o alcance da garantia fornecida pelo art. 79, 3, da LF. Para a maioria, o propósito deste dispositivo seria prevenir “a abolição da substância ou das bases da ordem constitucional existente”71 (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 661) mediante o processo jurídico-formal de emenda. O que seria abusar da Constituição com o fim de legalizar um regime totalitário. Assim, a cláusula de eternidade da LF proibiria somente um fundamental abandono dos princípios nela mencionados. Deste modo, princípios não seriam afetados “como ‘princípios’ se eles fossem em geral levados em consideração e apenas modificados por razões evidentemente pertinentes, para um caso especial, de acordo com seu

68 Art. 79 – 3. É vedada a revisão da presente Lei Fundamental no tocante à organização da Federação em

Estados, ao princípio da interferência dos Estados na feitura das leis federais e aos princípios consignados nos artigos 1.º e 20. (MIRANDA, 1986, p. 65)

69 Art. 1.º – 1. A dignidade da pessoa humana é sagrada. Todos os agentes da autoridade pública têm o dever

absoluto de a respeitar e proteger. 2. O povo alemão reconhece, pois, a existência de direitos do homem, invioláveis e inalienáveis, como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça no Mundo. 3. Os direitos fundamentais aqui enunciados constituem preceitos jurídicos directamente aplicáveis, que vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e Judicial. (MIRANDA, 1986, p. 49)

70 Art. 20 – 1. A República Federal da Alemanha é um Estado federal, democrático, e social. 2. Todo o poder

emana do povo que o exerce pelas eleições e votações e por intermédio de órgãos próprios do Poder Legislativo, do Poder Executivo e de Jurisdição. 3. O Poder Legislativo está subordinado à ordem constitucional; o Poder Executivo e os tribunais estão subordinados à lei e ao direito.4. Todos os alemães têm o direito de resistência, se não for possível outro recurso, contra aquele que tentar eliminar essa ordem. (MIRANDA, 1986, p. 55)

71 O trecho parcialmente traduzido no texto é o seguinte: “The purpose of Art. 79, par. 3, as a check on the

legislator’s amending the Constitution is to prevent both abolition of the substance or basis of the existing constitutional order, by the formal legal means of amendment”. (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 661)

caráter peculiar”72 (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 661). Em segundo lugar, o Tribunal reconheceu o alto grau de generalidade da cláusula da dignidade da pessoa humana do art. 1º, “se uma emenda constitucional viola a dignidade humana só pode ser decidido no contexto de uma situação específica”; “normas gerais só podem indicar direções gerais aqui”73 (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 662). O terceiro passo foi definir genericamente o sentido da proteção da dignidade humana, “o art. 1º proíbe o tratamento que em princípio põe em risco a personalidade de um cidadão como indivíduo, ou trata-o de um modo que expressa desprezo por seu valor inerente como ser humano”74 (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 662). O quarto e último passo foi confrontar essa exigência geral com as restrições específicas estabelecidas pela emenda:

Uma regulação ou instrução que restringe a liberdade do cidadão ou impõe a ele deveres não viola a dignidade humana. Tampouco o faz uma medida que sujeita um cidadão, mesmo sem o seu conhecimento ou consentimento, à vigilância governamental. Sob as circunstâncias presentes, a ausência de notificação não é uma expressão de desrespeito por um ser humano e sua dignidade, mas um ônus imposto sobre um cidadão […] para proteger a existência de seu estado e da ordem democrática livre. Nem a substituição do recurso para os tribunais por algum outro controle jurídico […] viola a dignidade do homem. É verdade que o respeito pela qualidade individual do homem normalmente exige não apenas que ele seja portador de direitos subjetivos, mas que ele também seja capaz de agir juridicamente para defender e afirmar seus direitos […] Porém sempre tem havido exceções a esta regra que não ofendem a dignidade do homem. Em qualquer caso, a dignidade do homem não é violada se a exclusão da proteção judicial não é motivada por desprezo ou desrespeito pelo ser humano, mas pela necessidade de manter medidas secretas com vistas a proteger a ordem democrática e a existência do Estado.75 (MURPHY;

TANEHAUS, 1977, p. 662, tradução livre, grifo no original)

Sem embargo, essa argumentação, aparentemente insuspeita, foi veementemente contestada pelos juízes Geller, Schlabrendorff e Rupp, que apresentaram uma

72 O trecho parcialmente traduzido no texto é o seguinte: “Principles are from the very beginning not ‘affected’

as ‘principles’ if they are in general taken into consideration and are only modified for evidently pertinent reasons for a special case according to its peculiar character”. (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 661)

73 “[…] whether a constitutional amendment violates human dignity can only be decided in the context of a

sepecific situation. Overarching rules can only indicate general directions here”. (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 662)

74 “Art. 1 forbids treatment wich on principle jeopardizes a citizen´s personality as an individual or treats him in

a manner that expresses contempt for his inherent value as a human being”. (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 662)

75 “A regulation or instruction that restricts a citizen´s freedom or imposes duties on him does not violate human

dignity. Neither does a mesure wich subjects a citizen, even without his knowledge or consent, to governmental surveillance. Under the circumstances at hand, absence of notification is not an expression of disrespect for a human being and his dignity, but a burden imposed upon a citizen [...] to protect the existence of his state and of the free democratic order.

Neither does substitution of recourse to the courts by some other legal control […] violate the dignity of man. Its true that respect for the individual quality of man normally requires that he be not only holder of subjective rights, but that he also be capable of taking legal action to defend and assert his rights. [...] But there have always been exceptions to this rule wich do not offend the dignity of man. In any case, the dignity of man is not violated if the exclusion of judicial protection is not motivated by contempt or disrespect for the human being, but by the necessity to keep measures secret in order to protect the democratic order and the existence of the state”. (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 662)

opinião dissidente. Para eles, as restrições impostas pela emenda não se limitavam a defender a ordem democrática livre, mas afetavam injustificadamente a dignidade das pessoas. No seu entender, a decisão do Tribunal Constitucional Federal estava errada em todos os quatro passos. Em primeiro lugar, embora reconhecessem que as provisões de limites às emendas certamente não deveriam ser interpretadas extensivamente, a minoria afirmou que assumir que o principal propósito do art. 79, 3, foi somente prevenir o mau uso do mecanismo jurídico-formal de emenda constitucional para legitimar um regime totalitário seria “um completo mal-entendido de seu significado”76 (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 663). Em seu entender, o art. 79, 3, significaria mais que isso, a leitura correta do dispositivo seria no sentido de que “certas decisões do criador da lei fundamental são invioláveis”77 (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 663). Por isso, o Art. 79, 3, não estaria a proibir meramente a abolição de um ou todos os princípios que aponta. Ele ofereceria uma proteção mais intensa, protegendo os seus elementos constituintes também contra “um processo gradual de desintegração”78 (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 664). Em segundo lugar, a minoria contestou o excessivo grau de generalidade em que foi definida a garantia da dignidade humana:

A Lei Fundamental considera a personalidade humana livre e sua dignidade como o mais alto valor jurídico. Quando da resposta à questão sobre o que a “dignidade do homem” significa, deve-se ser cuidadoso para não entender a expressão exclusivamente em seu mais alto significado, por exemplo, procedendo da assunção de que a dignidade do homem é violada somente se o tratamento “expressa desprezo por seu valor inerente como ser humano”. […] Tal interpretação restrita não faz justiça ao espírito da Lei Fundamental. […] Ao dar primeira prioridade à personalidade humana livre, a Lei fundamental reconhece a independência e o valor do indivíduo. […] Ele não deve ser tratado de maneira “impessoal”, como um objeto. […] O Primeiro Senado desse Tribunal tem decidido que viola a dignidade do homem tratá-lo como mero objeto da atividade estatal.79 (MURPHY;

TANEHAUS, 1977, p. 663, tradução livre)

76 O trecho parcialmente traduzido no texto é o seguinte: “[…] it would be a complete misunderstanding of its

meaning to assume that its main purpose was only to prevent misuse of the formal legal means of a constitutional amendment to legitimize a totalitarian regime”. (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 663)

77 “(…) certain fundamental decisions of the Basic Law maker are inviolable”. (MURPHY; TANENHAUS,

1977, p. 663)

78 O trecho parcialmente traduzido no texto é o seguinte: “The wording and meaning of Art. 79, par. 3, do not

merely forbid complete abolition of all or one of the principles. The word ‘affect’ means less.[...] The constituent elements are also [...] to be preotected against a gradual process of disintegration”. (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 664)

79 “The Basic Law considers free human personality and its dignity as the highest legal value. When answering

the question what the ‘dignity of man’ means, one must be careful not to understand the expression exclusively in its highest meaning, for instance, by proceeding from the assumption that the dignity of man is violated only if the treatment ‘expresses contempt for his inherent value as a human being.’[...] Such a restricted interpretation does not do justice to the spirit of the Basic Law. [...] By giving first priority to the free human personality, the Basic Law recognizes the individual’s value and independence.[...] He must not be treated in an “impersonal” manner, like an object.[...] The First Senate of this Court has ruled that it violates the dignity of man to treat him as a mere subject of state activity”. (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 663)

Por fim, os dissidentes impugnaram as conclusões atingidas pela opinião da Corte. Segundo eles, o princípio, baseado no art. 1º, de que um homem não deve ser tratado como um mero objeto do Estado, conforme o que seus direitos não devem ser sumariamente dispostos pelas autoridades, conteria uma decisão fundamental da Constituição, a qual teria moldado decisivamente a imagem de um Estado baseado no império da lei (MURPHY; TANENHAUS, 1977, 664). Enquanto princípio fruto de uma decisão fundamental, este elemento constituinte seria irrevogável. Não apenas a sua completa abolição estaria proibida, como também a sua erosão gradual. Partindo dessas premissas, a minoria chegou ao seguinte resultado:

“A intromissão secreta no setor privado de um cidadão, ao passo em que elimina o recurso aos tribunais, pode afetar não apenas os inimigos da constituição e agentes [estrangeiros], mas também pessoas insuspeitas e não envolvidas. […] Tal tratamento significa […] que o direito do indivíduo ao respeito da sua esfera privada é disposto ‘sumariamente pela autoridade pública’, que o cidadão é tratado como um objeto da autoridade estatal”.80 (MURPHY; TANEHAUS, 1977, p. 664, tradução

livre)

Essa discordância demonstra que mesmo juízes que concordem, em linhas gerais, a respeito da teoria que justifica a obediência às cláusulas de irreformabilidade podem obter, ante uma mesma cláusula expressa, respostas diferentes para um mesmo problema concreto. A cláusula em questão é a dignidade da pessoa humana. Ambos, maioria e dissidência, concordaram no ponto de partida, é dizer, reconheceram que uma emenda não poderia validamente ultrajar a dignidade dos seres humanos. Todavia, alcançaram respostas largamente divergentes na solução final do caso.

É plausível sustentar que a causa dessa divergência está no fato de que cada uma das correntes decisórias se apoiou em uma concepção diferente acerca do que seja a dignidade da pessoa humana. Observe-se que num nível mais geral houve consenso entre os dois grupos. Uns e outros concordaram que o princípio da dignidade humana, consagrado no art. 1º da LF, traduz, como exigência mais elevada, a proibição de tratamentos que expressem desprezo pelo valor inerente do ser humano. Contudo, a opinião do Tribunal desenvolveu esse conceito geral no rumo da autonomia pública, dando especial ênfase ao que tratou como decisão da LF em prol de uma “democracia militante”, a qual não se submete a um abuso de direitos fundamentais com vistas a um ataque à ordem liberal do Estado (MURPHY;

80 “Secret encroachment upon a citizen’s private sector while eliminating recourse to the courts [...] may affect

not only enemies of the Constitution and [foreign] agents, but also unsuspected and uninvolved persons. [...] Such treatment means [...] that an individual’s right to respect for his private sphere is disposed ‘summarily by