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1 Problemas de teoria constitucional: limites materiais de reforma

1.3 Fundamentos da vinculação constitucional da ação reformadora

1.3.1 Poder de reforma constitucional

A apresentação clássica da tese da vinculação jurídica da função reformadora, na doutrina brasileira, deve-se a Nelson de Sousa Sampaio, em seu trabalho O

Poder de Reforma Constitucional, editado em 1954. Como o próprio título revela, esse

trabalho é um notável exemplo do uso da primeira espécie de argumento justificador, aquele que se apóia no conceito de poder de reforma. Nele o publicista baiano sustentou que o poder que reforma a Constituição é, por natureza, um poder limitado, que deve obedecer aos limites formais, materiais e temporais estabelecidos, de modo expresso ou implícito, pelo poder constituinte no texto constitucional. Sendo que, assim, a desobediência a ditos limites causaria a inconstitucionalidade da reforma constitucional, a qual deveria ser declarada pelo Poder Judiciário.

Segundo o autor, consiste num descuido injustificável de alguns teóricos constitucionais equiparar poder constituinte e poder reformador. O poder constituinte, teorizado por Sieyès às vésperas da Revolução Francesa, representaria o mais alto poder do Estado, em cuja obra se baseariam todas as outras instituições. Por conta disso, não poderia haver limites a sua atividade33 (SAMPAIO, 1954, p. 40). Inversamente, o poder reformador definir-se-ia como “uma competência intermediária entre o poder constituinte e o legislativo ordinário (…) de natureza “constituída”, pois encontra sua base na Constituição, que lhe traça os contornos e estabelece o processo de sua atuação” (SAMPAIO, 1954, p. 42). O poder reformador é poder constituído e, por isso, “jamais atingirá a eminência representada pela ilimitação da atividade constituinte” (SAMPAIO, 1954, p. 42). Logo, uma assembléia reformadora que se atrevesse a ultrapassar seus limites, deixaria de obedecer à função reformadora para usurpar a função constituinte.

Assim, diferenciando poder constituinte (soberano e independente) e poder reformador (constituído e limitado), Sampaio definiu o caráter vinculado deste último, pois um poder criado por outro não pode ter a mesma hierarquia do que o criou. Entretanto, fica a pergunta, o que faz crer que o poder reformador é um poder necessariamente criado pela Constituição e, conseqüentemente, limitado por ela?

33 O que não quer dizer que Sampaio concorde com a tese da ilimitação absoluta do poder constituinte, que a seu

ver não havia sido preconizada nem mesmo por Sieyès. O que não pode haver, segundo ele, são limites de direito positivo interno. (SAMPAIO, 1954, p. 38)

De início, não custa lembrar que o próprio Sieyès, tido por muitos como criador do conceito de poder constituinte, não reconhecia esta dicotomia entre poder constituinte e poder reformador, tratando a reforma da Constituição como uma manifestação típica do poder constituinte. Com efeito, não era outro seu entendimento quando afirmava que, “em cada parte, a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte” (SIEYÈS, [1789] 2001, p. 49). Para Sampaio, contudo, essa compreensão é equivocada, ao menos quando se considera uma Constituição rígida.34 Isso fica evidente na forma como Sampaio analisa uma outra questão: “existirá em toda a Constituição algo que está fora do alcance do poder de reforma, algo irreformável?” (SAMPAIO, 1954, p. 85) De acordo com ele, no caso de Constituições rígidas, aquelas cuja reforma se verifica por processos diferentes da elaboração da lei ordinária, existem limitações que se impõem ainda no silêncio do texto constitucional.35 É no desenvolvimento desse ponto de vista que se revelam as razões pelas quais a limitação da função reformadora “se estriba no próprio conceito de reforma constitucional e na distinção evidente entre poder revisor e poder constituinte” (SAMPAIO, 1954, p. 93).

A chave do problema, para Sampaio, está na idéia mesma de Constituição rígida. No dizer do autor, “toda a Constituição rígida é em parte, por definição, também uma Constituição fixa” (SAMPAIO, 1954, p. 93). Sendo fixas aquelas Constituições que somente podem ser modificadas por um poder de competência igual ao que as criou, ou seja, por nova manifestação do poder constituinte.

Como as Constituições rígidas são justamente aquelas cuja modificação requer condições diversas e mais agravadas do que as que são exigidas para a edição de leis ordinárias, elas trazem em si, por necessidade, a definição dos contornos do poder reformador. Para que uma Constituição seja rígida, é necessário que ela seja capaz de controlar a sua

34 O conceito de Constituição rígida foi formulado pelo constitucionalista britânico James Bryce, em sua

conhecida obra Flexible and Rigid Constitutions (trad. esp. Constituciones Flexibles y Constituciones Rígidas), publicada em 1901, com base na comparação entre a Constituição inglesa e a norte-americana, caracterizando a primeira como flexível e a segunda como rígida. Para Bryce ([1901] 1988, p. 13), o ponto essencial que caracteriza as Constituições rígidas é que elas possuem uma hierarquia superior às leis ordinárias e não são modificáveis pela autoridade legislativa ordinária. Isto significa que o conceito de Constituição rígida comumente utilizado pelos constitucionalistas – conceito seguido por Nelson de Sousa Sampaio, inclusive –, segundo o qual Constituição rígida é aquela que prevê um procedimento especial de reforma, não guarda estrita fidelidade ao pensamento de Bryce. (PACE, 1995, p. 26)

35 Sampaio distingue, quanto ao processo de modificação, quatro tipos de Constituições: imutáveis, fixas, rígidas,

flexíveis. Imutáveis são as Constituições que pretendem ser eternas, não admitindo que nenhum poder as possa legitimamente reformar. Fixas aquelas que só podem ser reformadas por um poder de competência igual ao que as criou. Constituições rígidas são aquelas cuja reforma se verifica por processos diferentes da elaboração da lei ordinária. Flexíveis são as Constituições que se reformam pelos mesmos métodos de feitura e alteração das leis ordinárias (SAMPAIO, 1954, p. 37). Para ele, a visão preconizada por Sieyès encaixa-se em uma Constituição fixa e não numa Constituição rígida. (SAMPAIO, 1954, p. 55)

própria reforma. Se isso for impossível, a própria idéia de Constituição rígida também o será. Por isso, diante de uma Constituição rígida, o poder reformador é sempre criatura e o poder constituinte criador. Uma vez que não houvesse limites à reforma, qualquer decisão, tomada por qualquer órgão – inclusive o legislador ordinário –, segundo qualquer procedimento, desde que versasse sobre tema constitucional, poderia reivindicar o status de norma constitucional.

Se os procedimentos de elaboração das emendas não fossem diferentes dos procedimentos de elaboração das leis, não seria possível distinguir entre lei e emenda. Desapareceria a separação entre forma constitucional (emenda) e forma legal ordinária (lei), oriunda do fato de que as normas constitucionais submetem-se a um procedimento especial de modificação, que comporta condições mais difíceis de serem reunidas do que aquelas a que se sujeitam as leis (KELSEN, 2003, p. 131). Longe dessa distinção de formas, lei e emenda não se podem separar. Essas formas só existem se a função reformadora for juridicamente condicionada. Por isso, é possível dizer que a supremacia formal de uma Constituição rígida sobre a lei implica o caráter juridicamente conformado das emendas constitucionais.

Nessa linha de raciocínio, são os mesmos fundamentos que servem para afirmar a supremacia da Constituição sobre a lei que conduzem a definir a reforma constitucional como especialmente agravada e, conseqüentemente, constitucionalmente vinculada. Conforme o constitucionalista italiano Alessandro Pace já teve a oportunidade de observar, a superioridade jurídica da Constituição e a rigidez constitucional são as duas caras da mesma moeda. A causa da superioridade da Constituição sobre os atos jurídicos e normativos que compõem um determinado ordenamento é, também, a causa de sua rigidez com relação ao legislador (PACE, 1995, p. 71).

A Constituição é hierarquicamente superior à lei porque a “Constituição é a norma que rege a elaboração das leis” (KELSEN, 2003, p. 130), ou seja, a Constituição é o fundamento de validade da lei. É da essência da Constituição trazer em seu bojo a definição dos órgãos e dos procedimentos próprios da legislação (KELSEN, 2003, p. 131). Não existiriam leis válidas se não existissem normas que definissem órgãos e procedimentos responsáveis pela sua elaboração. Da mesma forma, não existiriam emendas constitucionais válidas se não existissem normas, distintas daquelas que regem a formação das leis, que determinassem o órgão e o procedimento de elaboração das reformas constitucionais.

Não se deve esquecer que as normas que regulam o processo de reforma não podem estar na esfera de disponibilidade do próprio poder que emenda a Constituição. Se

assim fosse, haveria o paradoxo das emendas pretenderem integrar o ordenamento constitucional negando exatamente os fundamentos da sua integração. Deste modo, estaria rompido o enunciado lógico que determina que da validade de uma norma é impossível derivar a validade de qualquer outra norma em conflito com ela (ROSS, 1982, p. 228). Por isso, ressalta Sampaio (1954, p. 105): “Assim como o legislador ordinário não pode simplificar as normas que a Constituição prescreve para a elaboração legislativa, não pode o reformador simplificar o processo previsto pelo constituinte para a tramitação de uma reforma constitucional”.

O que é ainda mais grave, desconhecendo-se a disciplina constitucional da função reformadora, somem os meios para averiguar a invalidade das leis ordinárias. Mesmo que elas fossem claramente incompatíveis com a Constituição, poderiam sempre reivindicar o

status de emenda, já que a Constituição poderia ser alterada por qualquer forma, apesar de

terem seguido o procedimento destinado à lei ordinária. Nesse estranho contexto, a afirmação em que se consubstancia o princípio da supremacia da Constituição, segundo a qual uma lei inconstitucional não o seria se, em lugar de ter sido aprovada como lei ordinária, houvesse seguido a tramitação da reforma, não faz qualquer sentido. Portanto, a supremacia da Constituição sobre a lei significa, paralelamente, a submissão das emendas à Constituição.

A competência dos tribunais para controlar a constitucionalidade das emendas deriva-se, por conseguinte, das mesmas causas pelas quais os tribunais são competentes para julgar as leis em face da Constituição. Essas causas têm seus fundamentos necessários, mesmo que não suficientes, nas idéias de rigidez constitucional e supremacia constitucional. A Constituição, por servir de fundamento de validade das demais normas jurídicas e por se revestir de uma forma específica, diferente da forma legal ordinária, deve vincular tanto o legislador ordinário quanto o reformador. Desse modo, o controle de constitucionalidade, nos dois casos, desempenha, aparentemente, o mesmo papel. Ele confecciona uma garantia da rigidez constitucional; conforma processos e órgãos destinados a evitar que a Constituição se reforme de modo diverso do que ela prescreve (SAMPAIO, 1954, p. 72).

Assim, considerando-se que qualquer ato de produção legislativa (lei e emenda) é manifestação de um poder constituído e limitado, envolvendo um agente que, em determinadas circunstâncias, decide a respeito de uma determinada matéria, conforme um

procedimento determinado (ROSS, 1982, p. 205), as limitações postas ao poder reformador

temporais e materiais que obrigam o poder reformador. Porquanto, aceita a tese da natureza constituída do poder reformador, todos os limites, independente da sua espécie, digam eles respeito ao processo, às circunstâncias ou à matéria da deliberação, têm idêntica força jurídica.

Para além dessa justificação jurídico-formal da vinculação constitucional do poder reformador, existe outra de caráter substancial. Esta, que é provavelmente a mais comumente utilizada, apóia-se na formulação original da teoria do poder constituinte. Tal construção, marcadamente democrática, identifica poder constituinte com povo soberano (VEGA, 1985, p. 230; PACE, 1995, p. 63). Segundo essa visão, quem se pronuncia – e mais do que isso, só quem se pode pronunciar – no ato de feitura de uma Constituição é o povo. “We, the people”, na fórmula celebrizada pelo preâmbulo da Constituição norte-americana. Já nos momentos de reforma constitucional, que, como o próprio termo já enuncia, visam reformar, e não destruir, a Constituição, quem fala são os representantes do povo. Um delegado jamais pode atuar adiante dos limites da sua delegação. O poder reformador, vez que é exercido pelos representantes do povo, e não pelo próprio povo, não pode ser soberano e ilimitado, sob pena de usurpar as atribuições que só o verdadeiro soberano, o povo ou a nação, podem exercer. Trata-se, então, o poder reformador, de um poder constituído e limitado.36

Tanto o primeiro quanto o segundo argumento em prol da vinculação do poder reformador avançam, sem maiores sobressaltos, à posição de que se tem servido o Supremo Tribunal Federal quando assinala a existência de freios constitucionais ao exercício do poder de emenda à CRFB/88, como se pode perceber da seguinte manifestação do Ministro Celso de Mello:

As denominadas cláusulas pétreas representam, na realidade, categorias normativas subordinantes que, achando-se pré-excluídas, por decisão da Assembléia Nacional Constituinte, evidenciam-se como temas insuscetíveis de modificação pela via do poder constituinte derivado. […] O poder reformador, portanto, é um poder derivado e subordinado às prescrições jurídicas condicionantes que, estabelecidas

com absoluta supremacia pelo texto da Lei fundamental do Estado, pautam, necessariamente, a ação do Parlamento no exercício dessa competência

36 Ademais desse argumento dualista, o princípio da soberania popular dá ensejo a uma outra estratégia

justificativa das limitações à ação reformadora. Trata-se do argumento do pré-compromisso. O legislador constituinte pode desenhar amarras aos futuros legisladores para tornar disponíveis, a estes, possibilidades que de outro modo estariam fora de seu alcance. Por meio de uma Constituição, uma geração A pode ajudar uma geração C a proteger-se de ser vendida como escrava por uma geração B. Para salvaguardar seus sucessores distantes, os criadores da Constituição restringem as possibilidades dos sucessores próximos. Para que cada geração futura seja senhora de si mesma, a geração atual limita voluntariamente seu próprio poder sobre o futuro, submetendo-se à autoridade do passado (HOLMES, 1993, p. 226). Nesse sentido, um povo que pretende rever sua Constituição deve respeito às decisões da geração constituinte por estar ele próprio previamente comprometido, ainda que de forma tácita, com as restrições por ela estabelecidas.

institucional.37 […] Emendas à Constituição podem, assim, incidir, também elas, no

vício da inconstitucionalidade, configurado este pela inobservância de limitações jurídicas superiormente estabelecidas no texto constitucional por deliberação do órgão exercente das funções constituintes primárias ou originárias. (Ministro Celso de Mello, ADIn 939/93, p.294-295, 296, 297, grifo no original)

A estratégia do argumento fundado no conceito de poder reformador consiste, portanto, em definir, com base nas idéias de Constituição rígida, supremacia constitucional e poder constituinte do povo, uma entidade intermediária entre o poder constituinte e os poderes tradicionalmente tidos por constituídos – Legislativo, Executivo e Judiciário –, que compartilha características do primeiro e aspectos dos segundos; o poder de reforma ou poder constituinte derivado. À semelhança com o poder constituinte, o poder reformador também cria normas constitucionais, que servem de fundamento de validade das demais leis. Todavia, sua natureza é de poder constituído, porque sua atuação está sujeita a regras e condições estabelecidas na Constituição, ou seja, tem sua validade fundada nela. Na síntese do Ministro Carlos Velloso:

O poder constituinte originário é inicial e ilimitado, enquanto o poder constituinte derivado é um poder secundário, subordinado à Constituição, que lhe impõe limites. Aquele cria a Constituição, este simplesmente a reforma. Daí a conclusão no sentido de que a revisão é constituída pela Constituição. Na verdade, o poder de reforma constitucional não passa de um poder constituído […] O poder constituinte derivado, porque limitado pela obra do poder constituinte originário, assim limitado pela Constituição, há de agir […] com observância das limitações que lhe são impostas, expressas e implícitas. (ADIn 830/93, p.198)

O retrato que essas observações revelam é o de um poder de duas faces. Uma que olha para frente, disposta a criar, alterar ou suprimir vínculos jurídicos, com força obrigatória para toda a ordem jurídica infraconstitucional. Os atos do poder reformador, de forma idêntica aos do poder constituinte, gozam de superioridade, instituindo, suprimindo ou alterando os limites à ação dos demais poderes constituídos. É dizer, uma lei ou ato normativo que viole tanto uma disposição constitucional originária quanto uma emenda à Constituição é igualmente inconstitucional. Outra face que olha para trás, enxergando os laços que prendem o poder reformador à Constituição originária. Aqui há certo espaço de supremacia da Constituição sobre a emenda, formalizado nas cláusulas de limites formais, temporais e

37 Essa primeira apresentação da justificativa pode sintetizar uma razão ainda mais simples para a natureza

vinculada do poder reformador: a função reformadora é limitada por que está regulada explicitamente no texto constitucional. Como a Constituição é lei – norma jurídica – ela tem pretensão de eficácia. À medida que um dispositivo constitucional expresso disciplina as reformas constitucionais, essa norma, como parte da Constituição, reclama obediência, e seus destinatários têm o dever de observá-la. A diferença desse argumento para os demais é que, na ausência de previsão constitucional explícita do poder de emenda, a atividade reformadora seria desvinculada.

materiais, expressos e implícitos, cuja desobediência por parte do poder reformador é causa da inconstitucionalidade das emendas constitucionais.

Em suma, o valor jurídico dos limites à reforma constitucional apresenta-se assentado nesse dualismo conceitual. De um lado, o poder constituinte: inicial, autônomo e incondicionado (BURDEAU, 1950, p. 174). De outro, o poder reformador: derivado, condicionado e limitado.