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1 Problemas de teoria constitucional: limites materiais de reforma

1.3 Fundamentos da vinculação constitucional da ação reformadora

1.3.3 Direito supralegal

Não apresenta grandes dificuldades reconhecer que a existência de proibições impostas por um Direito supralegal não pode ser reconduzida ao conceito de poder reformador. O Direito natural sobrepõe-se e serve de fundamento de validade ao Direito positivo, portanto, à própria Constituição. A obrigatoriedade do Direito natural é prévia e independente de qualquer poder estatal. Ele antecede o próprio Estado. Mesmo o poder constituinte – para muitos uma entidade pré-jurídica, que tem o poder de fundar tudo, sem estar fundado em nada –, em qualquer hipótese, superior ao poder de revisão, deve sujeitar-se ao Direito natural. Como decidiu o Tribunal Constitucional do Estado alemão da Baviera, em 24 de abril de 1950: “Há princípios constitucionais tão elementares, e expressão tão evidente de um direito anterior mesmo à Constituição, que obrigam o próprio legislador constitucional” (apud BACHOF, 1994, p. 23).49 O Direito supralegal é, por definição, lógica e cronologicamente anterior ao Direito positivo, sendo assim, não há como ser abarcado por uma competência que é criada pelo próprio texto constitucional.

Já a separação entre os limites decorrentes do Direito supralegal e os limites decorrentes do princípio da identidade da Constituição material levanta maiores problemas. Basta lembrar que o mais conhecido defensor da tese da vinculação das normas constitucionais ao Direito supralegal, Otto Bachof (1994, p. 38), utiliza-se da distinção entre Constituição em sentido formal e Constituição em sentido material como ponto de partida da teoria das normas constitucionais inconstitucionais. Entretanto, é indispensável notar que Bachof se aparta fortemente do conceito de Constituição proposto por Schmitt, modelo de definição de Constituição material até aqui utilizado.

Enquanto Schmitt define Constituição como decisão política, Bachof restringe o uso do termo a um sistema de normas jurídicas:

Por constituição em sentido material entende-se em geral o conjunto das normas jurídicas sobre a estrutura, atribuições e competências dos órgãos supremos do Estado, sobre as instituições fundamentais do Estado e sobre a posição do cidadão no Estado. Se se quiser delimitar o conceito não objetiva mas funcionalmente, então a constituição em sentido material será “o sistema daquelas normas que representam componentes essenciais da tentativa jurídico-positiva de realização da tarefa posta ao povo de um Estado de edificar o seu ordenamento integrador”.50 (BACHOF,

1994, p. 39, sem grifo no original)

49 Em 1951, essa mesma passagem foi citada com aprovação pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha,

no julgamento do Southwest Case, 1 BVerfGE 14 (1951). (MURPHY; TANENHAUS, 1977, p. 209)

50 Essa definição divide-se claramente em duas partes. Primeiro, a delimitação objetiva do conceito de

Esta oposição entre decisão política e norma jurídica produz dois padrões completamente antagônicos de avaliação da validade das normas constitucionais. Para Schmitt (1982, p. 46), “a Constituição vale por virtude da vontade política existencial daquele que a dá”.51 Como decisão política, a Constituição não precisa estar justificada em nenhuma norma ética ou jurídica. Distanciando-se desta posição, Bachof (1994, p. 42) sustenta que a validade de uma Constituição compreende dois aspectos: a positividade e a obrigatoriedade.

A positividade deriva da existência da Constituição como expressão de um poder efetivo. A obrigatoriedade, por sua vez, tem o sentido de vinculação jurídica dos destinatários das normas ao que é ordenado. Se o primeiro sentido da validade é bastante próximo daquele aceito por Schmitt, o segundo é radicalmente divergente. Isto porque a obrigatoriedade refere-se à suportabilidade moral da Constituição, ou seja, diz com normas (éticas ou suprapositivas), não com fatos ou decisões.52 O seguinte ensinamento de Bachof não deixa margem à incerteza:

Esta obrigatoriedade só existirá, em primeiro lugar, se e na medida em que o legislador tome em conta os “princípios constitutivos de toda e qualquer ordem jurídica” e, nomeadamente, se deixe guiar pela aspiração à justiça e evite regulamentações arbitrárias. Mas, além disso, só existirá ainda […] se o legislador atender aos mandamentos cardeais da lei moral, possivelmente diferente segundo o tempo e o lugar, reconhecida pela comunidade jurídica, ou, pelo menos, não os renegar conscientemente. (BACHOF, 1994, p. 42-43)

Sendo assim, não há como negar que o Direito supralegal transcende a própria idéia de Constituição material, ao menos de acordo com o sentido que tem sido atribuído a esta no curso desse trabalho. Ainda que não se entenda a Constituição material como a decisão política fundamental à forma de Schmitt, mas sim como sinônimo do conjunto de normas essenciais destinadas à função integradora do Estado – aproximando-se, assim, de Rudolf Smend ([1928] 1985, p. 132, 135-137) –, a compreensão da validade e obrigatoriedade de uma Constituição não pode ser reduzida apenas a seu aspecto funcional de integração política. Tratando-se de normas que reclamam obrigatoriedade perante seus destinatários, é preciso levar em conta os padrões do Direito superior que lhes servem de

buscada em Rudolf Smend (BACHOF, 1994, p. 39, notas 46, 47). Isso demonstra que, para Bachof, a Constituição material compõe-se de duas faces. Uma face objetiva: norma. Outra, funcional: integração política.

51 “La Constitución vale por virtud de la voluntad política existencial de aquel que la da”. (SCHMITT, 1982, p.

46)

52 Elucidativa, a este respeito, é a lição do próprio Bachof, quando justifica a opção de deixar de lado, em sua

análise sobre a invalidade das normas constitucionais, todos os significados atribuídos à palavra “Constituição” em que se entende algo diferente de normas jurídicas. Em verdade, diz BACHOF (1994, p. 38), “uma norma só pode ser medida por normas, não por uma situação ou um processo evolutivo.” A questão que se coloca, então, é saber se essas normas-parâmetro são apenas aquelas pertencentes ao ordenamento jurídico positivo, ou se, diversamente, envolvem também um Direito supralegal.

fundamento de validade, ou seja, o Direito natural. Em outras palavras, “o conceito material de Constituição exige que se tome em consideração o Direito supralegal” (BACHOF, 1994, p. 46). Nesse viés, as normas constitucionais operam num quadro de limitação supralegal. Por conseguinte, “Constituição vigente em sentido material serão apenas os elementos componentes da tentativa jurídico-positiva de realização do ordenamento integrador que não ultrapassem esses limites preexistentes” (BACHOF, 1994, p. 47).

O fato de o Direito supralegal preceder a Constituição positiva – tanto quanto a decisão política fundamental antecede às leis constitucionais e a Constituição material preexiste à Constituição formal – fazendo com que a sua enunciação pelo texto constitucional tenha apenas significado declaratório, não significa que esse Direito supralegal seja equiparado ao núcleo de identidade da Constituição material. Por mais que um seguidor do argumento do núcleo de identidade e um defensor do argumento do Direito natural, eventualmente, ofereçam a mesma resposta quando indagados acerca de quais são os limites à função reformadora; eles o fazem por razões diferentes. Se não por outros motivos, porque o primeiro faz referência a limites cuja fonte é imanente ao próprio sistema constitucional, enquanto o segundo aponta limites cuja fonte transcende esse sistema.53

No caso da identidade da Constituição material, o fundamento dos limites é a própria Constituição enquanto decisão política fundamental. Logo, o limite não está fora do sistema constitucional; está, sim, no seu âmago. Por isso, as transformações internas ao sistema não podem suprimir a Constituição e, conseqüentemente, a atividade de reforma, revisão ou emenda constitucional está sujeita a contenções.

Por sua vez, a autoridade do Direito supralegal pode ter as mais diversas origens: a razão do homem, a vontade divina ou a natureza das coisas. Em todo caso, ela sempre reside fora e acima de qualquer unidade política constitucionalmente organizada. Concepções em torno do Direito natural, dos direitos inalienáveis do homem ou da justiça têm autonomia, em maior ou menor grau, em relação a qualquer experiência jurídico- constitucional determinada.

Essa distinção entre fontes imanentes e fontes transcendentes pode ser percebida, por exemplo, quando Bachof classifica dois tipos independentes de violação do

53 A noção de sistema constitucional aqui utilizada é extremamente ampla e ultrapassa em muito a idéia de um

sistema de normas positivadas. Com base nas categorias de Schmitt poder-se-ia dizer que um sistema constitucional é composto da soma da decisão política fundamental com as leis constitucionais. O que se pretende demonstrar é que o Direito supralegal é um dado prévio a qualquer decisão política ou formalidade jurídico-positiva. A distinção entre fontes imanentes e fontes transcendentes de limitações às reformas constitucionais é feita por Mark E. Brandon (1995, p. 220).

direito constitucional não escrito: (a) infração dos princípios constitutivos não escritos do

sentido da Constituição; (b) infração do direito supralegal não positivado. Na primeira

hipótese, a barreira é posta por aquilo que o publicista alemão denomina, na esteira de E. v. Hippel, “princípios constitutivos menos patentes do sentido da Constituição”, entre os quais estaria inserida, por exemplo, num Estado federal, a máxima do comportamento não prejudicial à Federação (BACHOF, 1994, p. 64). Já o segundo grupo de limites seria composto pelos “princípios constitutivos de toda e qualquer ordem jurídica” (BACHOF, 1994, p. 42); por “uma ordem de valores anterior ao Direito e a que este está sujeito” (BACHOF, 1987, p. 46).

Seja lá o que o autor entenda pela expressão “princípios constitutivos do sentido da Constituição”, a verdade é que eles não se confundem com o Direito supralegal não positivado. Uma norma constitucional que infrinja este último, ainda que produzida pelo poder constituinte, não pode reivindicar nenhuma obrigatoriedade jurídica (BACHOF, 1994, p. 68). De outro modo, os princípios constitutivos “encontram-se – na medida em que não forem expressão de Direito supralegal – à disposição do titular do poder constituinte” (BACHOF, 1994, p. 64).

Ademais, não é surpresa nenhuma que ao incluir a obediência a tais “princípios constitutivos não escritos do sentido da Constituição” como condição de validade das emendas constitucionais, Bachof faça expressa referência a Carl Schmitt. Chega mesmo Bachof (1994, p. 65) a citar o trecho em que o constitucionalista de Weimar assinala que a faculdade de revisão “não pode romper o quadro da regulamentação legal-constitucional em que assenta”. O que significa que não apenas o argumento do Direito suprapositivo e o argumento da identidade da Constituição diferem enquanto razões para a existência de limites à reforma, como também que eles podem muito bem levar a conclusões diferentes quando da identificação pormenorizada desses limites.