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1 Problemas de teoria constitucional: limites materiais de reforma

1.6 O domínio da teoria constitucional

O principal objetivo de tudo o que foi dito até aqui é chamar a atenção para a natureza das questões que surgem ao redor do alcance da proteção conferida pelas cláusulas constitucionais de irreformabilidade que operam em sistemas onde vige o controle judicial de constitucionalidade, de que é exemplo o art. 60, § 4º, IV, da CRFB/88. Estas são essencialmente questões interpretativas. Elas envolvem quando pouco duas espécies de problemas: problemas de fidelidade à Constituição e problemas de metodologia de decisão. Sendo assim, só podem ser resolvidas a partir de uma teoria que englobe e conecte essas duas perspectivas, a perspectiva da justificação e a perspectiva da decisão.

Pode parecer uma redundância afirmar que o enfrentamento de problemas interpretativos requer uma teoria sobre a interpretação, mas o caso é exatamente este. Haja vista que o estado atual das discussões concernentes aos limites materiais de revisão parece ignorar quase totalmente esse ponto de vista. Ao mesmo tempo em que se proclama a abstração, a generalidade e a indeterminação dos limites materiais, pouco ou nada se constrói em relação ao modo como se deve concretizar, precisar e determinar esses limites. Poucos se mostram dispostos a assumir a perspectiva do juiz constitucional, que diante de um caso concreto terá que decidir a respeito da ofensa, ou não, das limitações constitucionais em face da ação do poder reformador.82 Como regra, ainda persistem as abordagens que se limitam a enunciar o problema antes de respondê-lo. Nesse sentido, a análise de duas formulações correntes a respeito da problemática dos limites matérias de revisão é esclarecedora.

Nessa seara, existem dois pontos em que a doutrina constitucional, ao menos de língua portuguesa, que não nega a obrigatoriedade e legitimidade desses limites, parece ter chegado a um consenso. Ambos esses pontos desnudam as dificuldades que circundam a aplicação das cláusulas de limites, ao mesmo tempo em que colaboram de forma diminuta para a superação dessas dificuldades.

Um deles foi formulado classicamente por Nelson de Sousa Sampaio. Segundo Sampaio (1954, p. 90), ante as proibições constantes de cláusulas constitucionais

82 Não é nem um pouco surpreendente que cada vez mais a doutrina se dê conta desse fato. O que tem sido um

aspecto bastante perceptível dos estudos mais recentes sobre o tema dos limites materiais de reforma. Oscar Vilhena Vieira (1999, p. 183), por exemplo, ressalta que para dar mais consistência a uma teoria das limitações materiais ao poder de reforma “é fundamental que se analise a possibilidade de reduzir o campo de discricionariedade dos magistrados”, e apresenta uma teoria interpretativa voltada a esse fim (VIEIRA, 1999, p. 197-202). Também Gustavo Just da Costa e Silva (2000, p. 243-154) aponta nesse sentido com a sua concepção de “limites como princípios” (mandados de otimização) que se aplicam mediante “ponderação”.

pétreas, “o reformador está cerceado pelo conteúdo dessas proibições, e não pela forma em que estão vazadas”. Na mesma senda andaram outros constitucionalistas. Conforme ensinam José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira (1991, p. 294), os limites materiais de revisão “não garantem propriamente a intocabilidade dos preceitos constitucionais respeitantes às matérias enunciadas, mas sim certos princípios e regimes materiais”. Também para Jorge Miranda (2000, p. 180), seu sentido fundamental é “garantir, em revisão, a intangibilidade de certos princípios – porque é de princípios que se trata não de preceitos avulsos”.83

83 Em que pese esse entendimento seja pacífico na doutrina, ele não se mostrou consensual no Supremo Tribunal

Federal. É inegável que a favor dele já se pronunciaram diversos juízes. Ainda sob a égide do sistema constitucional anterior a 1988, que previa como limites materiais de reforma a Federação e a República, o então Ministro Moreira Alves, quando da impugnação, por violação ao princípio republicano, de emenda que prorrogava de dois para quatro anos certos mandatos eletivos, sustentou: “A emenda constitucional, em causa, não viola, evidentemente, a República, que pressupõe a temporariedade dos mandatos eletivos. De feito, prorrogar mandato de dois para quatro anos, tendo em vista a conveniência da coincidência de mandatos nos vários níveis da Federação, não implica introdução do princípio de que os mandatos não mais são temporários, nem envolve, indiretamente, sua adoção de fato, como sustentam os impetrantes, sob a alegação de que, a admitir-se qualquer prorrogação, ínfima que fosse, estar-se-ia a admitir prorrogação por vinte, trinta ou mais anos” (Mandado de Segurança n. 20.257/DF, Relator Ministro Moreira Alves, 08.10.1980, p.339). Já na vigência da Constituição de 1988, o Ministro Sepúlveda Pertence defendeu tese semelhante acerca dos limites de reforma: “É certo […] que não levo a intangibilidade da disciplina constitucional do processo de reforma ou revisão da lei fundamental ao ponto de uma vedação absoluta de qualquer alteração dos dispositivos que a veiculam. Estou de acordo em que a intangibilidade diz com os pontos essenciais da decisão política nela substantivada, não com o texto ou com pormenores acidentais do trato constitucional da matéria” (ADIn 830/93, p.224). Sem embargo, entendimento divergente, atribuindo valor de intangibilidade plena às cláusulas de limites, parece ter tido larga influência no julgamento da ADIn 939/93. Ainda na apreciação da medida cautelar, em 15.09.1993, o Ministro Ilmar Galvão, ao defender a impossibilidade da não aplicação a um novo tributo, criado pelo poder de reforma, da norma contida no art. 150, III, b, da CRFB/88 (princípio da anterioridade tributária), consignou: “Alega-se que se trata de uma garantia relativa, já que nada menos que sete tributos foram, de logo, expressamente colocados fora de seu alcance pela Constituição. Trata-se, entretanto, de circunstância que só reforça o princípio- garantia, na medida em que serve para demonstrar que, para excepcioná-lo, se fez mister a iniciativa do próprio constituinte originário” (ADInMC 939/93, p.1983). O Ministro Marco Aurélio foi ainda mais incisivo: “Em termos de respeito à Lei Maior, creio que não se pode adotar uma posição flexível e que potencialize o fim buscado com a norma editada; é mister que se caminhe com passos firmes no sentido da preservação do que nela se contém, sob pena de grassar a insegurança” (ADInMC 939/93, p.1986). No mesmo passo andou o Ministro Celso de Mello: “A reconhecer-se como legítimo o procedimento da União Federal em ampliar, a cada vez, pelo exercício concreto do poder de reforma da Carta Política, as hipóteses derrogatórias dessa fundamental garantia tributária, chegar-se-á, em algum momento, ao ponto de nulificá-la inteiramente, suprimindo, por completo, essa importante conquista jurídica que integra, como um dos seus elementos mais relevantes, o próprio estatuto constitucional dos contribuintes” (ADInMC 939/93, p.2013). As duas teses confrontaram-se abertamente no julgamento, ocorrido em 11.02.1998, da medida liminar no Mandado de Segurança n. 23.047-3/DF. Nele, enquanto o Ministro Sepúlveda Pertence, relator da decisão, afirmou em seu voto, mas não na ementa do acórdão, que “as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege”(MS 23.047/98, p.2556); o Ministro Marco Aurélio disse, em aberta divergência: “Retiro, Senhor Presidente, desta menção a ‘direitos e garantias individuais’ a maior eficácia possível” (MS 23.047/98, p.2568). A despeito dessa controvérsia, existem fortes evidências de que a posição representada pelo Ministro Sepúlveda Pertence veio, finalmente, a prevalecer no Tribunal. No julgamento da ADIn 2.024-2/DF, 27.10.1999, relatada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, o Tribunal decidiu, por unanimidade, nos termos da ementa do julgado, que “as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege.”

O segundo ponto de consenso diz respeito à função das cláusulas explícitas de limites de reforma constitucional. Parece haver um acordo generalizado de que ao menos um aspecto útil das cláusulas pétreas está em “externar os princípios constitucionais, evitando ou pondo termo às incertezas que possam formular-se acerca da Constituição material” (MIRANDA, 2000, p. 203); ou de que a elas se deve “atribuir o sentido de normas clarificadoras dos bens jurídico-constitucionais constitutivos da identidade de uma Constituição” (CANOTILHO, 2004, p. 141).84 Ou então, tendo-se em conta que o limite imanente de reforma reside no conteúdo legitimador da Constituição, e que esse conteúdo é sempre apreendido em estado de alguma abstração, deixando margem à incertezas, assumir que a cláusula de limites expressos “pode contribuir no sentido de reduzir a incerteza do discurso prático-geral que nortearia as interpretações daquele conteúdo legitimador” (COSTA E SILVA, 2000, p. 227).

Esses lugares-comuns da doutrina constitucional lançam luzes sobre duas questões dignas de consideração. Em primeiro lugar, eles indicam a necessidade de interpretação das cláusulas de limites. Afinal, cumpre descortinar o sentido, os princípios e os regimes materiais destas cláusulas. São estes conteúdos que estão protegidos e não a forma e os preceitos em que eles estão vazados. Em segundo lugar, e aqui a inspiração da teoria da identidade da Constituição material é notória, reconhece-se que os participantes do discurso constitucional carregam incertezas sobre os bens jurídicos ou princípios constitutivos da identidade da sua Constituição. De tal modo, que a enunciação explícita desses princípios constitucionais viria a colaborar no sentido de clarificá-los, evitando ou reduzindo a incerteza dos seus intérpretes.

Percebe-se, no entanto, que a soma desses argumentos conduz ao seguinte raciocínio. De um lado, a declaração expressa de cláusulas de irrevisibilidade no texto constitucional reduz as incertezas relativas ao núcleo de identidade da Constituição. De outro, os limites materiais de reforma não se confundem com a seqüência de signos lingüísticos através dos quais eles são cravados no texto constitucional. Logo, resta uma de duas alternativas. Ou todos os intérpretes constitucionais competentes vão transitar do texto da norma de limites para seu conteúdo – os princípios e regimes materiais que ela consagra –

84 Na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes, quando do julgamento da

constitucionalidade da contribuição previdenciária dos servidores públicos inativos (Emenda Constitucional 41/2003, art. 4º), enfatizou esse aspecto: “Bryde destaca que as idéias de limites materiais de revisão e cláusulas pétreas expressamente consagrados na Constituição podem estar muito próximas. Se o constituinte considerou determinados elementos de sua obra tão fundamentais que os gravou com cláusulas de imutabilidade, é legítimo supor que nelas foram contemplados os princípios fundamentais”. (ADIn 3.105/04, p. 296)

sem qualquer desacordo. Ou, então, haverá divergência nessa transição, com diferentes intérpretes alcançando conteúdos, princípios e regimes materiais diversos a partir da leitura do mesmo texto. A despeito de em muitos casos não haver o surgimento de tais desacordos, certamente, em alguns casos brotará o dissenso. Fica a pergunta, qual o papel do juiz constitucional nesses casos controvertidos?

Sabe-se, por exemplo, que os juízes detêm o poder de controlar os atos da legislatura com base na Constituição. Sabe-se, também, que o comportamento dos órgãos judiciais não pode estar amparado nas mesmas razões que geralmente são tidas como legítimas quando servem aos órgãos executivos e legislativos; existe algo como um discurso constitucional no qual os juízes são atores qualificados. Mas como essas suposições, íntimas às democracias constitucionais, confrontam-se com a pergunta acima?

Quando este texto destaca a natureza interpretativa das questões que envolvem a aplicação de cláusulas pétreas, ele se propõe a encarar abertamente esta indagação. A idéia apresentada é a de que não há como responder à questão do desacordo entre os intérpretes constitucionais sem sair do interior do texto constitucional. É apenas no seio de uma teoria concernente à fidelidade à Constituição, à justificação da autoridade judicial para controlar a constitucionalidade das leis, à extensão do poder dos juízes e à metodologia da decisão judicial que se podem achar respostas.

De fato, mesmo que todos os participantes do discurso constitucional concordem que suas ações devem ser governadas por determinadas marcas gravadas em páginas específicas de papel (o texto constitucional), a explicitude dessas marcas – ainda que combinada com a assunção de que elas possuem autoridade e sentidos particulares, e que a empreitada interpretativa é possível – geralmente não oferece respostas, mas apenas coloca perguntas (BRANDON, 1995, p. 220). Quando juízes constitucionais, que reconhecem a autoridade do mesmo diploma constitucional, divergem acerca daquilo que um preceito específico desse documento (por exemplo, o art. 79, 3, LF; ou o art. 60, § 4º, IV, CRFB/88) determina num caso concreto, é do lado de fora do texto que eles vão encontrar respostas, e não unicamente em seu interior. Os juízes constitucionais vivem uma espécie de tensão entre o desejo de adesão ao texto constitucional e o reconhecimento de que, em importantes aspectos, o texto não é auto-suficiente; pelo contrário, requer algo externo a si próprio para ganhar significado (BRANDON, 1995, p. 220).

Como resposta a essa tensão, o juiz constitucional se vê forçado, ainda que não a todo momento e de forma nem sempre consciente, a transpor as fronteiras estritas do

texto constitucional em busca da compreensão do seu papel enquanto guardião da Constituição. Nesse momento, ele não se enxerga apenas como um agente público que explica e justifica suas decisões com a mesma sorte de argumentos sobre a melhor interpretação dos textos e precedentes jurídicos que os advogados usam ao pleitear decisões que os favorecem. Quando o juiz constitucional tenta refletir acerca da compreensão que tem de seu papel institucional, ele adentra um novo espaço, o domínio da teoria constitucional. Ele se questiona, ultimamente, sobre as razões pelas quais um reduzidíssimo grupo de juristas eleitoralmente irresponsáveis é capaz de invalidar leis devidamente editadas por representantes populares eleitos.

A importância dessa transmutação de discursos, da prática do direito constitucional para a teoria constitucional, não se verifica apenas porque todo o juiz que deve às vezes decidir conflitos constitucionais está melhor qua juiz ao prestar atenção aos debates teórico-constitucionais sobre interpretação constitucional. Antes, faz-se necessária porque a prática da jurisdição constitucional se vê excessivamente onerada quando alheia a argumentos que tentem justificá-la. Uma prática de jurisdição constitucional cuja legitimidade é suspeita é de mais difícil sustentação e mais fácil oposição, tanto política quanto intelectualmente, se não há qualquer justificativa plausível para ela; e de mais fácil sustentação e difícil oposição se tal justificativa existe (PERRY, 1992, p. 250-251).

A preocupação da teoria constitucional é explicar, e se possível justificar, uma prática aparentemente antidemocrática de governo dos juízes, em que os resultados da política popular são postos à prova frente a uma lei superior judicialmente administrada (MICHELMAN, 1999, p. 4). A teoria constitucional procura, por detrás da prática do controle judicial de constitucionalidade, princípios normativos que possam justificar tamanha autoridade judicial. Os teóricos constitucionais levam a sério a empresa de posicionar-se a respeito do que Alexander M. Bickel (1986, p. 16-17) definiu como dificuldade contramajoritária do controle judicial de constitucionalidade: a realidade de que quando um tribunal supremo “declara inconstitucional um ato legislativo ou a ação de um executivo eleito, ele frustra a vontade dos representantes do povo real do aqui e agora; ele exerce controle, não em nome da maioria predominante, mas contra esta maioria”.85

85 O trecho parcialmente traduzido no texto é o seguinte: “[…] the reality that when the Supreme Court declares

unconstitutional a legislative act or the action of an elected executive, it thwarts the will of the representatives of the actual people of the here and now; it exercizes control, not in behalf of the prevailing majority, but against it”. (BICKEL, 1986, p. 16-17)

Aqueles que se embrenham no domínio teórico-constitucional confrontam dois dilemas. Primeiro, as limitações constitucionalmente impostas ao governo necessariamente infringem a liberdade democrática dos cidadãos de promulgar como lei aquilo que bem entendem. Segundo, uma especificação constitucional das limitações ao governo precisa ser interpretada por alguém, e é preciso explicar como a Constituição pode constranger aqueles que são chamados a interpretá-la. As teorias constitucionais devem encarar o fato de que os juízes constitucionais, não menos que os ramos políticos do governo, precisam ser constrangidos para que a Constituição realmente proteja a liberdade democrática. Logo, as várias teorias servem para constranger os juízes enquanto eles interpretam a Constituição e, deste modo, limitar sua capacidade de violar a liberdade.

O domínio da teoria constitucional, portanto, não se restringe somente à justificação do poder de controle judicial de constitucionalidade. Uma teoria constitucional é um argumento favorável (ou contrário) a um particular estilo interpretativo da Constituição. À medida que um estilo interpretativo particular implica um papel judicial particular, uma teoria constitucional é também um argumento teórico-político sobre o papel que os tribunais devem desempenhar na interpretação da Constituição (PERRY, 1992, p. 250). Por conseguinte, uma teoria constitucional é tanto um esforço de justificação quanto de constrangimento do poder judicial de controlar a constitucionalidade das leis e atos normativos. A questão da legitimidade da prática do controle judicial de constitucionalidade e a questão do enfoque da interpretação constitucional que deve informar a prática estão inextrincavelmente ligadas (PERRY, 1994, p. 15). A resposta que se der à primeira questão é um determinante essencial da resposta a ser dada a segunda. Quer dizer que quando um juiz constitucional justifica seu poder com base em determinados princípios normativos, e não em outros, esses mesmos princípios, e não os outros, servirão para guiar e conter o exercício desse poder. Descobertos estes princípios fundantes, eles serão utilizados prescritivamente como guias para resolução de futuras questões controvertidas sobre o sentido da Constituição e sobre o método adequado para se descobrir este sentido.

Essa descrição da teoria constitucional deixa ver que, embora se possa falar de um setor de investigação acadêmica que faz jus a esse nome (MICHELMAN, 1999, p. 3- 4), não existe propriamente uma teoria constitucional a qual todos os intérpretes constitucionais invariavelmente tenham que apelar. Não há unanimidade acerca de como fundamentar o poder judicial de controle de constitucionalidade numa sociedade democrática, nem sobre como interpretar a Constituição. Por isso, o que existe são diversas teorias

constitucionais que se confrontam no fórum público. Estas teorias diferem à medida em que oferecem respostas diversas para as seguintes perguntas: 1) Quais as razões que justificam a adesão dos juízes à Constituição? 2) Como o poder judicial de declarar inconstitucional um ato devidamente editado pela legislatura pode ser justificado em uma democracia? 3) Quais são os limites à competência dos juízes nos casos constitucionais? 4) Quando a questão é tal que o juiz tenha competência para decidi-la, quais standards devem guiar sua decisão?86

Qualquer construção que almeje ser levada a sério pelos participantes do discurso constitucional precisa dar conta dessas quatro questões. Em verdade, qualquer problema interpretativo genuíno no âmbito constitucional leva, ultimamente, a essas quatro perguntas. Os problemas concernentes à aplicação das cláusulas pétreas não são exceções. Por este motivo não há como continuar o trabalho sem transitar para o âmbito da teoria constitucional. A ele serão dedicados os dois próximos capítulos. Mas antes que se possa sugerir algum pretendente ao status de teoria constitucional, cumpre fazer algumas clarificações adicionais.

Um modo bastante difundido de aproximação à problemática da teoria constitucional consiste em iniciar pela classificação das principais posições existentes e, a partir daí, escolher um dos lados da controvérsia, ou, então, sugerir um novo posicionamento que não se assemelhe a nenhum dos previamente assentados. As conhecidas dicotomias entre “originalismo” e “não-originalismo” (BREST, 1980, p. 205; PERRY, 1992, p. 242) e entre “interpretativismo” e “não-interpretativismo” (ELY, 1980, p. 1) são exemplares notórios desse tipo de enfoque. A popularidade alcançada por essas classificações, todavia, não significa necessariamente que elas confeccionem uma grelha analítica relevante para análise das questões teórico-constitucionais. Especialmente a distinção entre interpretativismo e não- interpretativismo, adotada por John Hart Ely, parece conter mais vícios do que virtudes.87

Em consonância com essa distinção existiriam dois enfoques acerca da interpretação judicial da Constituição. Um, chamado “interpretativismo”, requer que a decisão dos casos constitucionais se dê pela aplicação de normas explicitamente declaradas ou

86 As perguntas (2), (3) e (4) foram elaboradas por Archibald Cox (1981, p. 700) em sua resenha crítica da obra

de John Hart Ely, Democracy and Distrust.

87 Não por acaso, Michael Perry noticia, num texto publicado no início da década de 1990, que a distinção

interpretativismo/não-interpretativismo está atualmente fora de uso, sendo que seu próprio formulador, Thomas Grey, de quem Ely emprestou a terminologia, veio a reconhecer que ela não é capaz de focar os reais problemas