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2 Os direitos: uma teoria da interpretação constitucional

2.1 Contra a teoria constitucional

A preocupação imediata de uma teoria constitucional é a definição do alcance legítimo do poder judicial de controle de constitucionalidade.92 Não é difícil perceber o porquê. Abraham Lincoln expôs de forma lapidar a dificuldade aí existente: “se a política do Governo, em questões vitais que afetam o povo inteiro, puder ficar na dependência de decisões irrevogáveis da Corte Suprema, […] o povo terá deixado de ser seu próprio senhor, abdicando praticamente do exercício do governo em favor daquele eminente tribunal”93 (apud BITTENCOURT, 1997, p. 16). Essa tensão entre constitucionalismo e democracia, tão claramente formulada por Lincoln, tem sido a grande obsessão dos teóricos constitucionais (FRIEDMAN, 1998, p. 334). Por mais que ela seja identificada por diversas nomenclaturas – “dificuldade contramajoritária” (BICKEL, 1986, p. 16), “dificuldade intertemporal” (ACKERMAN, 1988, p. 187), “paradoxo da democracia constitucional” (MICHELMAN, 1999, p. 3) -, persiste o fato de que a Constituição anuncia solenemente limites substantivos e procedimentais ao exercício da vontade pública (SAGER, 1990, p. 897) numa sociedade que atribui especial valor a que o povo decida por si mesmo o conteúdo das leis que organizam e

92 Que esta seja a preocupação mais imediata não significa que ela seja também a preocupação mais fundamental

ou importante da teoria constitucional, mas apenas que ela é a mais evidente, a de mais fácil percepção, a ponta do iceberg.

93 “[…] if the policy of the Government upon vital questions affecting the whole people is to be irrevocably fixed

by decisions of the Supreme Court [...] the people will have ceased to be their own rulers, having to that extent practically resigned their Government into the hands of that eminent tribunal”. Trecho pertencente ao Primeiro Discurso Inaugural de Abraham Lincoln, de 4 de março de 1861, parcialmente transcrito por Gerald Gunther (1985, p. 23-24).

regulam a sua associação política. Justificar o poder de revisão judicial exige, portanto, reconciliar, ainda que não de forma peremptória, constitucionalismo e democracia.

Salta aqui o primeiro desafio posto à teoria constitucional. A existência desse desejo de reconciliação não significa que ela seja possível. Com efeito, alguns críticos têm se dedicado a demonstrar que qualquer esforço desse tipo será irremediavelmente mal sucedido. Não apenas porque, na opinião desses críticos, nenhum dos candidatos ao cargo de melhor teoria constitucional, quando objeto da devida reflexão, mostra-se apto a responder a suas próprias perguntas, mas porque as perguntas mesmas estão equivocadas. A empresa teórico-constitucional estaria imbuída de um vício insanável e difundido, pois todas as teorias constitucionais de maior repercussão seriam variações a respeito do mesmo tema. Todas seriam manifestações do que Mark Tushnet, um dos mais abalizados críticos, tem chamado “constitucionalismo liberal” (1981) ou “teoria constitucional liberal” (1993, p. 208). Elas são teorias que pretendem explicar como as limitações constitucionais à ação do Estado são capazes de promover a liberdade em uma democracia (TUSHNET, 1993, p. 208). Ocorre que, para os críticos, tal explicação é impossível dentro das premissas de uma teoria política liberal, e é precisamente nessas premissas que as principais teorias constitucionais estão embebidas.

Para demonstrar o poder das suas observações, a estratégia dos críticos consiste em submeter as teorias constitucionais mais influentes94 a um escrutínio que revele a sua incapacidade de realizar seu grande objetivo de reconciliação (BREST 1981; TUSHNET 1983). As diversas teorias querem demonstrar que a instituição do controle judicial de constitucionalidade tem um papel insuprimível na promoção da liberdade democrática. Porém, para fazer isso, elas precisam de um argumento normativo coerente que sirva para justificar e constranger o poder dos juízes constitucionais. Este argumento, no entanto, não está disponível. E nunca estará enquanto os teóricos não se libertarem dos laços que os prendem ao liberalismo. Pois, segundo os críticos, a teoria política liberal traz em si uma

94 Num texto publicado no início da década de 1990, Tushnet (1993, p. 211) apontou como teorias da

interpretação constitucional mais proeminentes as seguintes: 1) a teoria do entendimento original (theory of original understanding), segundo a qual os juízes devem dar às palavras da Constituição o sentido que geralmente era atribuído a elas no momento da sua adoção; 2) a teoria democrática do “reforço da representação” (democratic theory of “representation-reinforcement”), conforme a qual os juízes devem assegurar que os processos políticosordinários de democracia majoritária operem de forma a permitir a todos uma oportunidade equitativa de afetar as decisões políticas; 3) a teoria moral (moral theory), de acordo com a qual os juízes devem interpretar a Constituição de modo a promover o bem moral e político conforme o melhor entendimento que se faça dele na atualidade; 4) a teoria orientada pelo precedente (precedent-oriented theory), em consonância com a qual os juízes devem desenvolver princípios constitucionais que produzam resultados aceitáveis quando aplicados a casos ainda não apresentados aos tribunais.

contradição fundamental, a qual, por sua vez, está incrustada na própria origem das indagações teórico-constitucionais. A teoria constitucional quer justificar o controle judicial de constitucionalidade das leis por ser essa uma forma de evitar o arbítrio do legislador, ou das maiorias populares, que tendem a deliberar preocupados exclusivamente com seus próprios interesses. Mas, se esse egoísmo, que inspira um mecanismo judicial de contenção, é algo intrínseco ao indivíduo liberal, não há razão para imaginar que os juízes, indivíduos liberais tanto quanto quaisquer outros cidadãos, serão menos egoístas e orientados pelos próprios interesses do que todas as outras pessoas. Mark Tushnet exprime da seguinte forma essa contradição:

No nível da psicologia individual, o liberalismo enxerga todos nós como criaturas de desejo ilimitado que podem aceitar a inflição de mal sobre todos os outros enquanto nós buscamos nossos próprios fins. Esta psicologia coloca um problema imediato para as teorias do constitucionalismo, o problema […] da delimitação de fronteiras. O constitucionalismo afirma que existem em princípio limites sobre o que os governantes podem fazer. O deslocamento para a Grande Teoria tenta escapar da arbitrariedade dos governantes mediante o provimento de fundamentos arrazoados para limitar seu poder. A dificuldade, então, é que aqueles para quem a Grande Teoria é enderessada – nos Estados Unidos, os juízes – são tão voluntariosos quanto quaisquer outros governantes. O deslocamento racionalista nega assim o que a psicologia liberal assume.95 (TUSHNET, 1981, p. 415, tradução livre)

Se não há como, no universo da psicologia e da filosofia política liberal, agregar vontades individuais em instituições sujeitas ao controle da razão, cada versão da teoria constitucional seria incoerente do mesmo modo: no intento de eliminar a arbitrariedade mediante a razão, cada uma introduziria sua própria arbitrariedade (TUSHNET, 1981, p. 416). Constitucionalismo e democracia seriam, assim, irreconciliáveis, ou melhor, a visão liberal do constitucionalismo – que vê a Constituição como limite ao poder governamental – e a visão liberal da democracia – que enxerga as processo de decisão majoritário como mecanismo de agregação de interesses individuais conflitantes – seriam irreconciliáveis. A questão a ser levantada, então, é se realmente uma teoria constitucional precisa basear-se nessas premissas que Tushnet atribui à teoria política liberal.

Na análise dessa indagação, é interessante começar com a resposta que o próprio Tushnet oferece. Para ele, a construção de uma teoria constitucional satisfatória será, em qualquer caso, ou impossível, ou desnecessária (TUSHNET, 1983, p. 786). Se a sociedade

95 “On the level of individual psycology, liberalism sees us all as creatures of unbounded desire who can accept

the infliction of harm on everyone else as we pursue our own ends. This psycology poses an immediate problem for theories of constitutionalism, the problem [...] of boundary drawing. Constitutionalism asserts that there are in principle limits on what governors can do. The move to Grand Theorie attempts to escape the arbitrariness of the governors by providing reasoned grounds for limiting their power. The difficulty, then, is that those to whom Grand Theory is addressed – in the United States, the judges – are as wilfull as any other governors. The rationalist move thus denies what liberal psycology assumes.” (TUSHNET, 1981, p. 415)

for como os liberais acreditam que ela seja – um mundo de indivíduos autônomos, cada um dos quais guiado por seus próprios valores e objetivos idiossincráticos, sem que se possa considerar mais ou menos legítimos os valores e objetivos de um cidadão em relação aos valores e objetivos dos demais (TUSHNET, 1983, p. 783) – uma teoria constitucional será impossível. Se os juízes também forem indivíduos liberais, eles vão interpretar a Constituição da mesma forma com que estabelecem seus ideais de vida, isto é, como ilhas isoladas de individualidade que buscam seus próprios interesses e que, à medida que querem realizar esses ideais independentemente de qualquer outro tipo de considerações, dão à Constituição o sentido mais apto à satisfação de suas preferências pessoais. Diante das premissas do liberalismo, os juízes, não menos do que os legisladores, são atores políticos primariamente motivados por seus próprios interesses e valores (TUSHNET, 1983, p. 784).

Segundo o jurista crítico norte-americano, isso não significa, contudo, que toda e qualquer interpretação da Constituição seja inevitavelmente arbitrária. Quando se olha para a sociedade percebe-se que muitas vezes pessoas que inicialmente discordam sobre determinadas questões, ao dialogarem e refletirem conjuntamente sobre esse ponto de divergência, acabam chegando a algum entendimento. Conforme Tushnet (1983, p. 826), para que as pessoas possam se entender umas com as outras é necessário que exista uma “comunidade de entendimento” (community of understanding), criada por pessoas que entram em certos tipos de relações e compartilham certos tipos de experiências. Ocorre que sem se apoiar na premissa de que o entendimento das pessoas acerca das instituições sociais é estável não há como existir o necessário entendimento compartilhado. Esse entendimento depende de continuidades históricas e culturais ausentes da teoria política liberal. É o pensamento social conservador (a referência de Tushnet é a Edmund Burke) que, em oposição ao liberalismo, coloca a sociedade antes do indivíduo, desenvolvendo as implicações da idéia de que as pessoas somente podem entender seus pensamentos e ações com referência à matriz social na qual elas se encontram inseridas (TUSHNET, 1983, p. 785). Essas premissas comunitárias do pensamento conservador, por isso, são um complemento necessário a qualquer teoria da Constituição. É preciso desenvolver um “sistema compartilhado de significados” (shared

system of meanings) para que uma teoria da interpretação constitucional seja coerente

(TUSHNET, 1983, p. 826). O problema é que, na percepção de Tushnet, desenvolvendo-se tal sistema, destruir-se-á a necessidade de uma teoria constitucional, haja vista que essa necessidade está predicada no individualismo liberal. Conseqüentemente, as mesmas premissas que se mostram indispensáveis à teoria constitucional tornam-na supérflua.

Parece que a raiz da crítica de Tushnet (1983, p. 827) está na assertiva de que o problema identificado pelo pensamento liberal desaparece numa sociedade em que tal “entendimento compartilhado” existe e que, de outra parte, numa sociedade liberal não há espaço para o indispensável “entendimento compartilhado”. O único óbice é que esta é uma assertiva absolutamente questionável. Não é preciso tratar os membros de uma sociedade como puros egoístas para aceitar que eles podem discordar sobre aquilo que dá sentido à vida, sobre suas concepções éticas, filosóficas e religiosas. Em verdade, nem sequer seria possível uma sociedade política sem que um grau mínimo de entendimento compartilhado estivesse presente.96 Se as pessoas divergem sobre seus ideais de bem, sobre suas concepções religiosas e filosóficas, isso não quer dizer que elas discordem sobre tudo mais. Nem, tampouco, que qualquer grau de consenso esteja descartado. Por outro lado, o fato de haver algum nível de consenso não torna impossível a divergência em outros níveis. É muito mais plausível que pessoas que concordam a respeito dos padrões mais gerais que regulam sua convivência política discordem sobre as exigências específicas que aqueles padrões impõem em situações determinadas.97 De fato, algum ponto de consenso é condição do dissenso. Ou seja, não existe divergência sem um ponto mais alto de acordo entre aqueles que divergem. Uma controvérsia só é possível quando os debatedores concordam sobre a compreensão mais geral do conceito a respeito do qual reclamam avaliações divergentes. Para travar uma discussão séria é necessário pressupor que se está falando sobre a mesma coisa. Do contrário, não há diálogo, mas apenas monólogos.

Dworkin traça os contornos dessa problemática de modo bastante claro, quando tece considerações a respeito das condições que fazem possíveis as divergências entre participantes de uma mesma prática social. Diz ele:

Devem [os participantes], na verdade, concordar sobre muitas coisas para poderem compartilhar uma prática social. Devem compartilhar um vocabulário […] Devem compreender o mundo de maneira bastante parecida, e ter interesses e convicções

96 Observe-se John Rawls, em Uma Teoria da Justiça (1997, p. 266): “Aristóteles observa que uma das

peculiaridades dos homens é que eles possuem um senso do justo e do injusto, e que o fato de partilharem um entendimento comum da justiça cria a polis. De forma análoga, pode-se dizer, tendo em vista a nossa argumentação, que um entendimento comum da justiça cria a democracia constitucional”. Essa premissa, inclusive, é comum aos mais destacados filósofos políticos liberais do debate constitucional norte-americano, como percebe-se da postulação de uma “comunidade liberal” por Ronald Dworkin (1992), e na idealização de um “diálogo liberal” por Bruce Ackerman (1993).

97 Esse é um ensinamento proferido pelo próprio Tushnet. Com efeito, num texto recente, após afirmar que os

princípios da Declaração de Independência dos Estados Unidos definem a lei fundamental dos norte-americanos, Tushnet (1999, p. 14) declara: “O desacordo vigoroso sobre o que esses princípios significam para qualquer problema específico de política pública não significa que nós como uma sociedade não tenhamos uma lei fundamental em comum”. (“The Declaration’s principles define our fundamental law. Vigorous disagreement over what those principles mean for any specific problem of public policy does not mean that we as a society have no fundamental law in common”).

suficientemente semelhantes para reconhecer o sentido das afirmações de todos os outros, para tratá-las como afirmações e não como meros ruídos. Isso significa não apenas usar o mesmo dicionário, mas compartilhar aquilo que Wittgenstein chamou de uma forma de vida suficientemente concreta, de tal modo que um possa encontrar sentido e propósito naquilo que o outro diz e faz, ver que tipos de crenças e de motivos dariam um sentido a sua dicção, a seus gestos, a seu tom de voz e assim por diante. Devem, todos, “falar a mesma língua” em ambos os sentidos da expressão. Mas essa semelhança de interesses e convicções só deve manter-se até um certo ponto: deve ser suficientemente densa para permitir a verdadeira divergência, mas não tão densa que a divergência não possa manifestar-se. (DWORKIN, 1999, p. 77, grifo no original)

Esses argumentos demonstram que a crítica à viabilidade da teoria constitucional não se sustenta. Uma teoria constitucional reclama, desde o início, uma tentativa de elaborar bases que possam sustentar a convivência entre pessoas que participam de um empreendimento político comum: uma vida em comum, sobre leis comuns, que obrigam a todos igualmente. Nesse contexto, a necessidade de constrangimento à ação judicial não é fruto do desentendimento absoluto entre intérpretes que só almejam a realização de seus interesses pessoais. Ela é um produto do desacordo entre cidadãos que se vêem como capazes de concordar a respeito dos princípios básicos extremamente abstratos da sua convivência comum – como se observa, por exemplo, nas convicções partilhadas pelos cidadãos de uma democracia constitucional de que todos devem ser livres e iguais em direitos e obrigações e devem respeitar-se mutuamente –, mas que discordam a respeito de muitas outras coisas, inclusive, geralmente, acerca da especificação concreta desses princípios. Em suma, o quadro da teoria constitucional é, muito possivelmente, um consenso estreito e básico sobreposto a um dissenso abrangente (RAWLS, 2000, p. 179-219).

O domínio da teoria constitucional aparenta, assim, ir muito além da sua face mais evidente, a dificuldade contramajoritária do controle judicial de constitucionalidade apontada por Alexander Bickel em 1962.98 Ele envolve questões mais profundas do que a simples defesa do poder dos juízes de declarar leis inconstitucionais. O constitucionalismo discute as bases da autoridade legítima.