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A incorporação e a estrutura social

No documento moacyrmaiagitirana (páginas 149-153)

A Mentalidade Militar: Realismo Conservador da Ética Militar Profissional

INTRODUÇÃO: O PROBLEMA DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

III. A SOCIEDADE COMO REALIDADE SUBJETIVA

III.2 A incorporação e a estrutura social

É possível fazer aqui algumas observações gerais sobre aspectos sócio-estruturais do “sucesso” da socialização.

A socialização realiza-se sempre no contexto de uma estrutura social específica. Não apenas o conteúdo mas também a medida do “sucesso” têm condições sociais estruturais e consequências sociais estruturais. Em outras palavras, a análise micro-sociológica ou sócio-psicológica dos fenômenos de inte- riorização deve ter sempre por fundamento a compreensão macro-sociológica de seus aspectos estrutu- rais.148 (B&L, 2002, 216)

Como já vimos, a socialização totalmente bem sucedida é impossível, e a total- mente mal sucedida se limita a casos de patologia orgânica. No espectro entre estes extremos inacessíveis, “socialização bem sucedida” é a que estabelece “elevado grau de simetria entre a realidade objetiva e a subjetiva”, e o mesmo vale para a identidade. (216)

Este ponto sobre o grau de sucesso da socialização militar provavelmente per- passa as discussões em torno das dicotomias clássicas da organização militar como “institui- ção” ou “ocupação/emprego”, e como “divergente” ou “convergente” da sociedade de origem, como também a maior parte da discussão de HUNTINGTON (2003, 74/8) sobre “obediência” (a “virtude militar suprema”) e seus limites, particularmente na segunda parte, que trata da “obediência militar versus valores não militares”, e mais exatamente ainda no quarto aspecto tratado nesta parte, sobre conflito entre obediência militar e moralidade básica:

Finalmente, há o conflito entre obediência militar e moralidade básica. Que faz o oficial se re- cebe ordem do homem de Estado para cometer genocídio, para exterminar a população de um território ocupado? No que tange à faculdade de julgar e aplicar padrões éticos, o estadista e o soldado são iguais. Ambos são indivíduos livres moralmente responsáveis por seus atos. O soldado não pode renunciar, em favor do civil, a seu direito de fazer julgamentos morais definitivos. Ele não pode negar a si mesmo como indivíduo moral. Não obstante, o problema não é tão simples assim, pois política e moralidade básica po- dem estar envolvidas aqui. O estadista pode bem se sentir compelido a violar a moralidade comumente aceita a fim de promover interesses políticos do Estado. É este frequentemente o caso, não há como ne- gar. Se o homem de Estado rejeita os apelos pessoais da consciência em favor da raison d'état, estará ele justificado em implicar também o militar, em subjugar, na verdade, a consciência do militar tanto quanto a sua própria? Para o oficial, isso desce ao nível de uma opção entre sua própria consciência, por um lado, e o bem do Estado, mais a virtude profissional da obediência, por outro. Como soldado, ele deve obediên- cia; como homem, desobediência.

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Nossa argumentação implica a necessidade de um fundamento macro-sociológico para as análises da interiorização, isto é, de uma compreensão da estrutura social dentro da qual a incorporação se realiza. A escola psicológica americana está hoje em dia grandemente enfraquecida devido ao fato de faltar em ampla extensão este fundamento. (B&L)

Aqui se vê relação entre o problema, como exposto por HUNTINGTON (2003, 78), e a discussão de BERGER & LUCKMANN (2002, 197/8) 149 sobre os significados cons- truídos na socialização primária e o sentido da manutenção de alguns deles em “situações marginais”.

O máximo sucesso na socialização é mais provável em sociedades com divisão de trabalho muito simples e mínima distribuição de conhecimento, com identidades pré-definidas e delineadas em alto grau. “Cada pessoa é mais ou menos aquilo que se supõe que seja.” “Um fidalgo é um fidalgo e um camponês é um camponês”, sendo improvável que a pergunta “Quem sou eu?” surja na consciência, pois a resposta socialmente pré-definida é maciçamente incorporada, é subjetivamente real, e coerentemente confirmada em toda interação significa- tiva, sendo improvável uma concepção de diferentes “camadas” do eu. (216/7)

Nestas condições, só por acidentes biográficos, biológicos ou sociais se tem o indivíduo socializado sem êxito, que então é socialmente pré-definido, como o aleijado, o bastardo, o idiota, etc. Auto-identificações divergentes não encontrarão estruturas de plausi- bilidade que as possam transformar em algo mais que fantasias, mas a situação começa a mu- dar se existe uma colônia deles suficientemente grande e durável que sirva como esta estru- tura antes ausente, e apresente contradefinições da realidade. Ser leproso então pode passar a ser considerado sinal de eleição divina, e a socialização imperfeita num mundo social pode ser concomitante com uma bem sucedida, em outro. Inicialmente a comunidade maior pode não ter conhecimento desta contrarrealidade e da contraidentidade, mas a pergunta “Quem sou eu?” já se torna possível porque duas respostas são socialmente exequíveis, logo aparece a clivagem entre “aparência” e “realidade”, a ruptura entre uma conduta “visível” na comuni- dade maior e sua autoidentificação “invisível” bem diversa. Tornando-se esta clivagem co- nhecida da comunidade maior, não será mais tão fácil reconhecer a identidade dos que antes eram definidos como leprosos e nada mais e, no caso extremo, não mais será fácil reconhecer a identidade de qualquer pessoa, “pois se os leprosos podem recusar ser o que se supõe que sejam, outros indivíduos também podem, e talvez nós mesmos.” Se este processo parecer

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Cf, e.g., esta passagem: “Tem sentido morrer como homem, mas tem muito pouco morrer como diretor assis- tente do departamento de meias de senhoras. Além disso, quando se espera que as incorporações secundárias tenham este grau de persistência na realidade em face de situações marginais, os procedimentos de socialização concomitante terão de ser intensificados e reforçados da maneira anteriormente examinada. Ainda uma vez, é possível citar como ilustrações os processos religioso e militar de socialização secundária.” (B&L, 2002, 198) Aqui poderíamos expandir a observação sobre ter sentido “morrer como homem”, e incluir as situações de mor-

rer e tirar vidas, ou salvá-las, como militar. Em suma, se o estadista pressupuser militares que o obedeçam

mesmo contra ditames morais deles como homens, ele deve esperar que a formação militar tenha efeito de uma ressocialização, e com êxito a ponto de tornar a obediência do militar superior a suas reservas éticas pessoais.

fantasia, é possível ilustrá-lo com a designação de harijas, “filhos de Deus”, dada aos párias do Hinduísmo por Gandhi. (B&L, 2002, 218/21)

Com maior distribuição social do conhecimento, a socialização imperfeita pode ser consequência das diferenças sociais (diferenças que não são fruto apenas de idiossincrasias individuais) entre os outros significativos responsáveis pelo processo, e isto pode se dar de diferentes formas.

Há o caso de os outros significantes da socialização primária serem mediadores de uma realidade comum, mas de perspectivas consideravelmente diversas, por exemplo, uma perspectiva masculina e uma feminina que sejam bem diferentes. As versões são reconhecidas e geralmente a criança aprende a se identificar com a que lhe corresponde biologicamente; mas, por razões biográficas, a criança pode se identificar com a outra versão, e “a sociedade fornece mecanismos terapêuticos para tratar desses casos „anormais‟.” (B&L, 2002, 221/2)

Um segundo caso é o que resulta da mediação de mundos discordantes feita por outros significativos “habitantes” destes mundos, como uma criança educada pelos pais, mas tam- bém por uma ama recrutada numa sub-sociedade étnica ou de classes. Quando a discordância entre os mundos assim transmitidos é intensa, é possível se formar uma identidade oculta, dificilmente reconhecível entre o que é “público” ou “privado”. O indivíduo pode circular pelo mundo dominante como cavalheiro, “somente fingindo-se de”, enquanto está “real- mente” se desenvolvendo nos mistérios religiosos do grupo subjugado. (B&L, 2002, 223/4)

Divergências assim ocorrem na sociedade contemporânea entre a socialização na fa- mília e no grupo de pares. Enquanto a família vê o filho pronto para ingressar na idade adulta ao passar para a universidade, ou concluí-la, o grupo de pares pode esperar como prova de ingresso uma aventura de submundo. Há um problema de se saber qual “eu” está sendo “tra- ído” nestas divergências, mas em todo caso há uma “traição a si mesmo”, na medida em que o indivíduo se identificou com mundos discordantes. (B&L, 2002, 224/5)

“A possibilidade do „individualismo‟ (isto é, da escolha individual entre realidades e identidades discrepantes) está diretamente ligada à possibilidade da socialização incompleta”, abrindo a questão “Quem sou eu?”; mas a mesma questão pode surgir para o socializado com pleno êxito, refletindo sobre os outros imperfeitamente socializados. Mais cedo ou mais tarde ele encontra os que têm “um eu escondido”, os “traidores”, os que alternaram, e pode pensar “Se eles, por que não eu?”. Isto abre uma caixa de Pandora de escolhas “individuais”, que acabam se generalizando, seja em escolhas “certas” ou “erradas”. (B&L, 2002, 225)

O “individualista” surge como tipo social particular, que tem pelo menos a possibilidade de mi- gração entre muitos mundos exequíveis e que construiu deliberada e conscientemente um eu com o “ma- terial” fornecido por um grande número de identidades que estavam ao seu alcance. (B&L, 2002, 225/6)

Uma terceira situação importante de socialização imperfeita se dá quando há discor- dância entre socialização primária e secundária. A unidade da primeira se mantém, mas na segunda aparecem opções subjetivas de realidades e identidades opostas, eventualmente li- mitadas pelo contexto sócio-estrutural do indivíduo, que, por exemplo, pode querer se tornar cavaleiro, mas sua posição social não permitir. Com a “localização” do indivíduo percebida subjetivamente como inadequada na sociedade, sem que a estrutura social permita a realiza- ção da identidade subjetivamente escolhida, esta se torna uma fantasia, objetivada dentro da consciência do indivíduo como seu “eu real”. (B&L, 2002, 226)

Outra consequência muito importante quando há discordância entre a socialização primária e a secundária é a possibilidade de o indivíduo ter relações com mundos discordantes, qualitativamente dife- rentes das relações nas situações anteriormente discutidas. Se na socialização primária aparecem mundos discordantes, o indivíduo tem a escolha de identificar-se com um deles e não com os outros, processo que, ocorrendo na socialização primária, carrega-se de elevado grau de afetividade. A identificação, a desi- dentificação e a alternação serão todas acompanhadas de crises afetivas, pois dependerão invariavelmente da mediação de outros significativos. A apresentação de mundos discordantes na socialização secundária produz configuração inteiramente diferente. Na socialização secundária a incorporação não é obrigatori- amente acompanhada pela identificação, afetivamente carregada, com outros significativos. O indivíduo pode interiorizar diferentes realidades sem se identificar com elas. Por conseguinte, se um mundo dife- rente aparece na socialização secundária, o indivíduo pode preferi-lo em forma de manobra. Poder-se-ia falar aqui de alternação “fria”. O indivíduo interioriza a nova realidade, mas em vez de fazer dela a sua realidade, utiliza-a como realidade para ser usada com especiais finalidades. Na medida em que isto im- plica a execução de certos papéis, o indivíduo conserva o desligamento subjetivo com relação a estes, “veste-os” deliberada e propositadamente. Se este fenômeno tornar-se amplamente distribuído, a ordem institucional em totalidade começa a tomar o caráter de rede de manipulações recíprocas. (B&L, 2002, 227)

Uma sociedade com mundos discrepantes acessíveis em uma base de mercado traz uma consciência crescente da relatividade de todos os mundos, inclusive o do próprio indivíduo, que então o apreende subjetivamente como “um mundo” e não como “o mundo”, e a conduta institucionalizada do indivíduo é desempenhada, por manobra, como “um papel”, com o qual pode não se identificar. Por exemplo, o sujeito não é mais simplesmente aristo- crata, mas representa ser um, situação cada vez mais típica da sociedade industrial contempo- rânea. (B&L, 2002, 227/8)

Enfim, estas diferentes formas de incorporar e combinar, ou alternar, diferentes realidades, em diferentes graus, podem servir para a interpretação do que ocorre na socializa- ção do oficial combatente de carreira, em sua etapa de formação, conforme a interpretação de casos individuais. Cada cadete traz, de sua sociedade de origem, sua socialização primária, e então é exposto à ideia de um mundo militar à parte, possivelmente divergente, superior ou

mais “real”. Por outro lado, há a ideia de que ele serve à Pátria, o que abre a possibilidade de uma volta, de uma visão em que não se considere a realidade militar como divergente da soci- edade geral, mas como parte dela. Mas a exaltação à “Pátria” pode assumir caráter mais ritual do que afetivo e efetivo de fato. Nas aulas em que eu trabalhava, posso relatar que eu tentava, no novo sistema “construtivista”, que os alunos construíssem um raciocínio de que o que esta- ria por trás do culto aos símbolos nacionais era o que eles simbolizavam: a nação, o povo, a cultura, a valorização dos aspectos sociais do país; porém o desenvolvimento deste raciocínio era difícil.

No documento moacyrmaiagitirana (páginas 149-153)