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O processo de formação

No documento moacyrmaiagitirana (páginas 161-163)

A Mentalidade Militar: Realismo Conservador da Ética Militar Profissional

CONCLUSÃO: A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO E A TEORIA SOCIOLÓ GICA

4.1 O processo formal na EsPCEx-AMAN

4.1.1 O processo de formação

Podemos começar aqui a discussão com breve consideração – que talvez se pu- desse dizer “filosófica”, mas que diz respeito à questão da linguagem que cerca as referências do que observamos – sobre o próprio conceito de “formação”. É possível fazer referência a um curso civil como curso de “formação”162

, mas me parece que o termo, neste sentido, é mais comum no meio militar, talvez pela conotação implícita da ideia de dar “forma”, “mode- lar”, ou pela própria ideia intuitiva da “construção” de uma nova identidade. O campo de sig- nificação de termos como “forma”, “reforma”, e “formação” é próximo ao do termo “constru- ção”, inclusive quando referidos à significação concreta de fazer a “reforma ou construção” de um imóvel. Aliás, como vimos no capítulo anterior, conforme Berger e Luckmann (2002, 211/4), a metáfora da construção de novos aspectos da identidade como referência a um pro- cesso que pode ser de ressocialização ou de socialização secundária permitia traçar paralelo entre estas duas situações e a ideia de transformação da identidade de um indivíduo entendida, respectivamente, como construção feita sobre uma biografia subjetiva anterior demolida – seria uma nova “construção” – ou como reformulação que incorpora os elementos anteriores como base – seria uma “reforma”163 na identidade do sujeito.

Estes autores acabaram concluindo que a formação do militar de carreira exigiria um processo de ressocialização; enquanto militares temporários, até por já terem na partida o

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Cf, por exemplo, a seguinte passagem: “todo este conjunto de traços que compõem a „personalidade intelec- tual‟ de uma sociedade (...) é constituído ou reforçado pelo sistema de ensino, (...) tanto pelo conteúdo e pelo espírito da cultura que transmite como pelos métodos segundo os quais efetua esta transmissão.” (p. 227)

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É comum no ensino civil o uso da expressão “formar-se” – por exemplo, em Medicina, em Direito – como também é comum falar em “formatura”, em referência a uma cerimônia, mas o termo “curso de formação” me parece que não é tão comum, frequentemente dando lugar, ao menos em nível superior, a expressões do tipo “curso de graduação”, ou “pós-graduação”, etc.

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Um caso a ser lembrado, para esta discussão semântica, é o de instituições (totais) que costumavam ser cha- madas de “reformatórios”, mas cuja proposta deveria ser não uma “reforma” (socialização secundária), mas uma ressocialização, termo que, mais recentemente, passou a ser usado.

pressuposto da volta à vida civil, seriam submetidos a um processo menos radical, de sociali- zação secundária, ainda que com alguns elementos de reforço que a aproximam, no caso mili- tar, da alternação; mas então concluímos que não pode haver relação direta entre o conceito de formação no meio militar, e a caracterização de um processo de ressocialização, porque o termo se aplica ao processo de socialização de militares tanto de carreira quanto temporários. Existem “cursos de formação” tanto de oficiais e praças de carreira quanto de oficiais e praças temporários, inclusive soldados.

De qualquer forma, o conceito de formação militar, seja de profissionais ou temporá- rios, sugere a alguns a ideia de pôr uma identidade numa “fôrma”, a ideia da “lavagem cere- bral”. A propósito, BERGER e LUCKMANN (2002, 213), tratando do processo de ressociali- zação, de alternação, usam o termo “instituto de lavagem cerebral”, mas num contexto jocoso, em que tratavam de um hipotético caso de conversão a uma seita de adoradores de peixe cru. Historicamente não se aplica o conceito – criado no caso das conversões políticas da China comunista – e tampouco tecnicamente, conforme conclusão que TAYLOR (2006, 83) faz sobre a questão:

O treinamento militar é lavagem cerebral? Aqui de novo, como em capítulos anteriores, os vários usos do termo lavagem cerebral são aparentes: como insulto, processo(s), conceito de último argumento, ou ideal totalitário. Críticos das técnicas militares geralmente têm ou forte postura pacifista ou estão pro- curando retirar poder dos militares. Tais críticos estão usando o conceito como insulto quando aplicado a exércitos de voluntários, já que lavagem cerebral envolve a negação de escolha voluntária164 (é possível conceber um voluntário para lavagem cerebral, mas uma ação bem sucedida de lavagem cerebral remove- ria a liberdade, colocando a escolha sob controle do lavador cerebral). O treinamento militar, embora pos- sa mudar as pessoas, não as torna robôs; de fato, a ação de autonomia pessoal e o grau em que decisões são deixadas individualmente para os soldados são geralmente consideráveis. Em termos funcio nais, os processos pelos quais civis se tornam soldados têm sido estudados intensivamente e são progressivamente entendidos pela psicologia social, que na América pelo menos tem devido muitos de seus recursos aos militares. Assim, o uso de „lavagem cerebral‟ como conceito de último argumento está diminuindo.

Voltando ao uso da expressão “instituto de lavagem cerebral” em BERGER & LUCKMANN (2002, 213), num exemplo irreverente de uma organização “ictiosofista” desti- nada a um processo de alternação, consideramos que, independente dos detalhes de método e instrumentos de persuasão, independente de que, ainda nos termos deles, “o indivíduo seja seduzido ou sequestrado”, em todo caso a alternação envolve, como se viu na definição dos autores, a demolição de uma identidade anterior, e a reconstrução de uma nova identificação,

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Cf GOFFMAN (2003, 104) sobre ingresso compulsório ou voluntário: “Entre esses dois extremos, encontra- mos algumas instituições – como o exército com relação aos convocados – em que os internados são obrigados a servir, mas têm muita oportunidade para sentir que esse serviço é justificável e exigido em função de seus inte- resses finais. Evidentemente, nas instituições totais aparecerão diferenças significativas de tom, o que depende do fato de o recrutamento ser voluntário, semi voluntário ou involuntário.” (Na EsPCEx-AMAN é exclusiva- mente voluntário)

com um novo mundo, seus novos valores, e uma nova identidade, uma localização neste novo mundo. Por outro lado, é claro que, para o próprio indivíduo, inicialmente, e para os outros significativos de seu mundo anterior, pode fazer total diferença ser “seduzido ou sequestra- do”, e é exatamente a este aspecto que agora vamos passar: o “recrutamento”, a “sedução” para o ingresso numa escola de formação de oficiais de carreira.

No documento moacyrmaiagitirana (páginas 161-163)