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A linguagem e o conhecimento na vida cotidiana

No documento moacyrmaiagitirana (páginas 94-98)

A Mentalidade Militar: Realismo Conservador da Ética Militar Profissional

INTRODUÇÃO: O PROBLEMA DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

I. OS FUNDAMENTOS DO CONHECIMENTO NA VIDA COTIDIANA

I.3 A linguagem e o conhecimento na vida cotidiana

A expressividade humana é capaz de gerar objetivações, ou seja, produtos da ati- vidade humana disponíveis não só para quem os produz, mas também para os outros integran- tes de um mundo comum. Numa interação face a face, um sentimento subjetivo de cólera, por exemplo, pode ser objetivado em expressões faciais, que fora desta situação estariam inaces- síveis, mas o acesso à subjetividade pode se dar de forma objetivada a posteriori, por exem- plo, se me desentendo com alguém e depois encontro um objeto ameaçador que possa ter sido

destinado a mim, como uma faca. Quem faz uma arma pode não ter pensado numa destinação específica para ela, mas este objeto pressupõe possíveis intenções de ação humana, portanto, uma “arma é ao mesmo tempo um produto humano e uma objetivação da subjetivação hu- mana”. Vivemos “envolvidos por objetos que „proclamam‟ as intenções subjetivas” de nossos semelhantes, apesar das eventuais dificuldades de se perceber o que significam, como pode atestar um etnólogo ou arqueólogo. (B&L, 2002, 53/5)

Um caso especialmente importante de objetivação é a significação, a produção humana de signos. Uma faca que eu tenha encontrado cravada no local onde moro pode ter sido jogada com a intenção de me ferir, ou apenas de significar esta possibilidade, e em algu- ma cultura uma intenção subjetiva como esta poderia ter sido comunicada, por exemplo, pela pintura de um “x” negro na porta de uma casa. Pode haver imprecisão entre o uso instrumen- tal e o uso significativo de certas objetivações, e o pensamento mágico oferece um bom e- xemplo de lógica que trabalha com a fusão destes usos. (B&L, 2002, 55)

Existem diferentes signos e sistemas de signos que podem representar objetiva- ções acessíveis além da expressão de intenções subjetivas “aqui e agora”, e a língua, sistema de sinais vocais, é o mais importante das sociedades humanas. As objetivações da vida cotidi- ana são mantidas basicamente pela significação linguística, que é abrangente e flexível e, na situação face a face, tem um potencial de simultaneidade com o pensamento e de reciproci- dade na interação que a distingue de qualquer outro sistema de signos. (B&L, 2002, 56/8)

Embora a língua possa se referir a campos particulares de significação, ela tem sua o- rigem e referência primária na realidade do senso comum. Ela tem uma qualidade de objeti- vidade, de facticidade externa a nós, com efeitos coercitivos, nos forçando a padrões, e per- mite tipificar experiências e torná-las anônimas, agrupando-as em categorias, que terão sen- tido para a coletividade de seus usuários. Por exemplo, uma briga concreta e subjetivamente única pode ser tipificada anonimamente como “briga com a sogra”; desta forma, “experiên- cias biográficas particulares estão sendo reunidas em ordens gerais de significados, objetiva e subjetivamente reais.” (B&L, 2002, 58/9)

Pela capacidade de transcender o “aqui e agora”, “a linguagem estabelece pontes entre diferentes zonas dentro da realidade da vida cotidiana e as integra em uma totalidade dotada de sentido”. Essas “transcendências têm dimensões espaciais, temporais e sociais” (diatópi- cas, diacrônicas e diastráticas), permitindo às pessoas transcender o hiato entre sua experiên- cia concreta e a do outro, e a língua pode também se referir a áreas limitadas de significação, permitindo que esferas separadas de realidade sejam integradas linguisticamente à ordem da vida cotidiana, no que pode ser chamado de linguagem simbólica. Assim, a língua permite

um máximo de desprendimento do “aqui e agora” e a construção de “imensos edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gi- gantescas presenças de um outro mundo”. Os sistemas de signos mais importantes neste sen- tido são a religião, a filosofia, a arte e a ciência. Eles mostram que a língua é via de mão dupla, que permite construir abstrações da vida diária, mas também “faz retornar” ao cotidia- no estes símbolos como elementos objetivamente reais. (B&L, 2002, 59/61)

Com a língua são construídos campos de significação relacionados a aspectos soci- ais91, como categorias de gênero (não coincidente com sexo); formas que denotam relações sociais, como intimidade ou distanciamento; dialetos, que, entre outras variações, podem se referir a áreas de atuação profissional (jargão), etc.

a soma das objetivações linguísticas referentes à minha ocupação constitui outro campo semântico que ordena de maneira significativa todos os acontecimentos de rotina que encontro em meu trabalho diário. Nos campos semânticos assim construídos, a experiência, tanto biográfica quanto histórica, pode ser ob- jetivada, conservada e acumulada. A acumulação, está claro, é seletiva, pois os campos semânticos de- terminam aquilo que será retido e o que será “esquecido”, como partes da experiência total do indivíduo e da sociedade.

Enfim, vivemos num mundo do senso comum da vida cotidiana, mas sabemos que ne- le existem corpos específicos de conhecimento, e nossa participação neste acervo social pres- supõe uma capacidade de “localização” dos indivíduos na sociedade e de “trato”92

com eles em função desta localização. (B&L, 2002, 61/2)

O que ocorre, em nosso caso em estudo, é que o meio de uma escola de formação mili- tar é o de uma área de atuação profissional, tendo portanto seu jargão típico, e, como já vi- mos, pelo princípio do internato, da adesão do aluno a uma instituição total, este meio passa a ser o mundo da vida cotidiana, que não é o mundo original do senso comum, e deve ter um acervo de conhecimento específico a ser apreendido, mas que, passando a ser o mundo total do internado, cria condições propícias à assimilação intensiva de suas características.

Especificamente dentro do mundo militar, seus participantes têm, no uso da lingua- gem, elemento marcante ligado à “localização” neste espaço, com destaque para a localização na hierarquia interna desta sociedade, e para as formas de trato dentro dela.

Na vida cotidiana, dominada por motivos pragmáticos, temos um “conhecimento re- ceitado”, “limitado à competência pragmática em desempenhos de rotina”. Por exemplo, u-

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Aqui se abre todo o campo de estudos da Sociolinguística, Sociologia da linguagem, ou Linguística social.

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No original é “„handling‟ of them”, traduzido na edição nacional como “„manejo‟ deles”, mas esta expressão pode sugerir uma idéia de manipulação, que me parece não se aplica.

samos aparelhos como o telefone, não sabemos como construí-lo ou consertá-lo, mas sabemos a quem recorrer para adquirir os serviços relacionados. (B&L, 2002, 63)

Apresentando-se a mim como todo integrado, o capital social do conhecimento fornece-me tam- bém os meios de integrar elementos descontínuos de meu próprio conhecimento. (...)

Embora o estoque social do conhecimento represente o mundo cotidiano de maneira integrada, diferenciado de acordo com zonas de familiaridade e afastamento, deixa opaca a totalidade desse mundo. Noutras palavras, a realidade da vida cotidiana sempre aparece como zona clara atrás da qual há um fun- do de obscuridade. (B&L, 2002, 64/6)

Certas áreas da realidade são iluminadas, como a área de uma floresta que se pode ver de noite com uma lanterna, num cone de luz, enquanto as demais regiões permanecem em escuridão.

Nosso conhecimento da vida cotidiana é estruturado a partir de conveniências. Nossos interesses imediatos determinam algumas destas conveniências, enquanto outras são determi- nadas por nossa situação geral na sociedade. Se tenho quem faça bem minhas refeições, não me interesso por como cozinhar, e um homem de negócios no mundo moderno não vai levar em conta os astros para investir na bolsa, embora possa haver sociedades em que a astrologia pode ser importante para a economia. (B&L, 2002, 66/7)

O conhecimento na vida cotidiana é então socialmente distribuído. Por conta disto, é importante considerar o seguinte:

A distribuição social do conhecimento de certos elementos da realidade cotidiana pode tornar-se altamente complexa e mesmo confusa para os estranhos. Não somente não possuo o conhecimento su- postamente exigido para me curar de uma enfermidade física, mas posso mesmo não ter o conhecimento de qual seja, dentre a estonteante variedade de especialidades médicas, aquela que pretende ter o direito sobre o que me deve curar. Em tais casos não apenas peço o conselho de especialistas mas o conselho an- terior de especialistas em especialistas. A distribuição social do conhecimento começa assim com o sim- ples fato de eu não conhecer tudo que é conhecido por meus semelhantes, e vice-versa, e culmina em sis- temas de perícia extraordinariamente complexos e esotéricos. O conhecimento do modo como o estoque disponível do conhecimento é distribuído, pelo menos em suas linhas gerais, é um importante elemento deste próprio estoque de conhecimento. (B&L, 2002, 68)

No mundo militar, a princípio, não há tanto conhecimento específico assim, mas ele tende a se organizar de forma mais ou menos autônoma, com as necessidades de seus membros, seja na esfera operacional ou mesmo social, tendendo a ser satisfeitas dentro de seus próprios limites, e certamente há distribuição social do conhecimento, tanto do mais especificamente técnico-profissional, quanto do conhecimento geral-fundamental que os mili- tares têm, e que também tende a constituir certa visão militar de mundo. Esta distribuição se dá de forma horizontal (entre militares de mesmo status, mas com especializações diferentes) e vertical, e talvez os “especialistas em especialistas” possam ser identificados com os “gene-

rais”, cujo posto tem este nome exatamente porque têm um nível de especialização que lhes permite comandar grandes unidades de emprego generalizado (as brigadas, divisões e exérci- tos), que têm, como suas unidades menores constituintes, quartéis de todas as ar- mas/especialidades em geral, ou seja, são unidades de emprego geral/generalizado, e não específicas de cada arma, quadro ou serviço. Assim, um general não pertence mais a uma arma específica, diz-se que ele está “acima das armas”.

No documento moacyrmaiagitirana (páginas 94-98)