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Organismo e identidade

No documento moacyrmaiagitirana (páginas 154-156)

A Mentalidade Militar: Realismo Conservador da Ética Militar Profissional

INTRODUÇÃO: O PROBLEMA DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

III. A SOCIEDADE COMO REALIDADE SUBJETIVA

III.4 Organismo e identidade

É possível falar de uma dialética entre a natureza e a sociedade.151 Esta dialética é dada na condi- ção humana e manifesta-se renovada em cada indivíduo humano. Para o indivíduo, evidentemente, ela se desenrola em uma situação sócio-histórica já estruturada. Há uma contínua dialética que começa a existir com as primeiras fases da socialização e continua a se desenvolver ao longo de toda a existência do indi- víduo na sociedade, entre cada animal humano e sua situação sócio-histórica. Externamente é uma dialé-

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A dialética entre a natureza e a sociedade, por nós aqui discutida, de modo algum pode ser equiparada à “dia- lética da natureza” desenvolvida por Engels e pelo marxismo posteriormente. (B&L)

tica entre o animal individual e o mundo social. Internamente, é uma dialética entre o substrato biológico do indivíduo e sua identidade socialmente produzida. (B&L, 2002, 237)

Fatores biológicos limitam o que é socialmente possível, e o mundo social, pree- xistente a cada indivíduo, impõe limites ao que é biologicamente possível ao organismo. A própria expectativa de vida pode variar com a localização social, sendo possível relacionar a diferentes estratos tendências diversas de incidência de doenças e morte. A sociedade se in- corpora no funcionamento do organismo em outros aspectos também, como sexualidade e nutrição. Ainda que fundadas em impulsos biológicos, “estão canalizadas em direções especí- ficas, mais socialmente do que biologicamente”, são “socialmente estruturadas”. Também “a expressividade, o modo de andar e os gestos são socialmente estruturados.”152 (B&L, 2002, 237/9)

A socialização do militar pode então lhe conferir, como já vimos, características distintivas não só em aspectos mentais, envolvendo conhecimentos, valores, mas também nestes aspectos físicos, da saúde, expressividade, habilidades e hábitos físicos, gestos e com- portamentos, à maneira do que Bourdieu e, antes dele, MAUSS (2003, 404) já havia referido como habitus153. Este aspecto permite que, pelo próprio processo durante a formação, o mili- tar vá mudando suas próprias concepções sobre o que ele consegue suportar, mental e fisica- mente, e esta percepção do próprio aluno quanto a poder suportar, com a união e ajuda da coletividade a que pertence, esforços que ele não imaginava, é fortemente característica do processo, contribuindo para lhe inculcar um senso de resistência e autoconfiança, que de certa forma possivelmente vai compensando, ao longo da formação, as inseguranças experimenta- das nos períodos iniciais, quando tudo parece lhe afirmar sua inferioridade. Também episó- dios como aquele relatado por CASTRO (1999, 38) sobre cadetes sem farda identificados numa praia podem, como dissemos, ter explicação que combine hábitos linguísticos com ca- racterísticas físicas do grupo, na aparência, comportamento e gestos.

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Sobre esta possibilidade de uma disciplina da “sócio-somática”, cf. Georg Simmel, op. cit., pp. 483ss. (O en- saio sobre a “sociologia dos sentidos”); Marcel Mauss, Sociologie et Anthropologie (Paris, Presses Universitaires de France, 1950), pp. 365ss. (O ensaio sobre as “técnicas do corpo”); Edward T. Hall, The Silent Language (Garden City, N. Y., Doubleday, 1959). A análise sociológica da sexualidade forneceria provavelmente o mais rico material empírico para esta disciplina. (B&L)

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“Assim, durante muitos anos tive a noção da natureza social do “habitus”. (...) a “exis” [hexis], o “adquirido” e a “faculdade” de Aristóteles (que era um psicólogo). Ela não designa hábitos metafísicos, a “memória” miste- riosa, tema de volumosas ou curtas e famosas teses. Esses “hábitos” variam não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, variam sobretudo com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios. É preciso ver técnicas e a obra da razão prática coletiva e individual, lá onde geralmente só se vê apenas a alma e suas faculdades de repetição.”

“No aspecto interno, a dialética manifesta-se como a resistência do substrato bio- lógico à modelagem pela sociedade.154” A criança resiste, por exemplo, à imposição de uma estrutura social de tempo sobre a estrutura de tempo natural de seu organismo: comer e dor- mir nas horas “certas”, e não quando tem fome e sono.155

A socialização implica frustrações biológicas, que existem também na socialização secundária, embora com grau provavelmente menos agudo. (B&L, 2002, 239/40)

No indivíduo completamente socializado há uma dialética interna contínua entre a identidade e seu substrato biológico. O indivíduo continua a sentir-se como organismo, à parte das objetivações de si mesmo de origem social, e às vezes contra elas. Esta dialética é frequentemente apreendida como luta en- tre um eu “superior” e um eu “inferior”, equiparados respectivamente à identidade social e à animalidade pré-social, possivelmente anti-social. O eu “superior” tem de afirmar-se repetidamente sobre o “inferior”, às vezes em provas críticas de força. Por exemplo, um homem tem de vencer o instintivo medo da morte pela coragem na batalha. O eu “inferior” neste caso é chicoteado até a submissão pelo “superior”, afirma- ção de dominação sobre o substrato biológico que é necessária para manter a identidade social do guer- reiro, objetiva e subjetivamente. (B&L, 2002, 240)

A vitória sobre o medo ilustra como a base biológica resiste e é derrotada pelo eu social, havendo na vida cotidiana casos de vitórias menores, assim como derrotas, grandes ou pequenas.

O homem é biologicamente predestinado a construir e habitar um mundo com os outros. Este mundo torna-se para ele a realidade dominante e definitiva. Seus limites são estabelecidos pela natureza, mas, uma vez construído, este mundo atua de retorno sobre a natureza. Na dialética entre a natureza e o mundo socialmente construído, o organismo humano se transforma. Nesta mesma dialética o homem pro- duz a realidade e com isso se produz a si mesmo. (B&L, 2002, 240/1)

Toda esta discussão embasa certa compreensão das forças que agirão, na forma- ção do militar, no sentido de socializá-lo o mais possível não só para enfrentar uma “morte correta”, mas também para se sujeitar com disciplina, resistência e abnegação aos demais desconfortos e contingências impostos eventualmente, em última instância, em combate, e, na ausência deste, nos treinamentos periódicos para esta realidade de momentos de crise.

CONCLUSÃO: A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO E A TEORIA SOCIOLÓ-

No documento moacyrmaiagitirana (páginas 154-156)