• Nenhum resultado encontrado

A interação social na vida cotidiana

No documento moacyrmaiagitirana (páginas 92-94)

A Mentalidade Militar: Realismo Conservador da Ética Militar Profissional

INTRODUÇÃO: O PROBLEMA DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

I. OS FUNDAMENTOS DO CONHECIMENTO NA VIDA COTIDIANA

I.2 A interação social na vida cotidiana

Numa realidade da vida cotidiana compartilhada, o caso prototípico de interação é o que ocorre na situação face a face, do qual se derivam os outros. Neste caso é possível a ação em face da ação do outro, as ações se orientam umas pelas outras, mesmo com os pos- síveis erros de interpretação, mas com “plenitude de sintomas de subjetividade presentes na situação”. As relações face a face são bastante flexíveis. Comparadas com outras remotas, é difícil impor-lhes padrões estereotipados; mas, mesmo nelas, apreendemos os outros por meio de esquemas tipificadores. “Assim, apreendo o outro como „homem‟, „europeu‟, „comprador‟, „tipo jovial‟, etc.” Nossa interação será assim modelada, ao menos enquanto tais tipificações não entrem em xeque por alguma quebra de expectativas, quando então se tem que remodelar um esquema tipificador, num processo de contínua “negociação”. (B&L, 2002, 46/50)

Como já observamos anteriormente, mesmo num caso como o de nosso objeto, há espaço para a “negociação”; mas, no meio militar, como um todo, e particularmente numa escola de formação, mesmo as interações face a face não são tão flexíveis, especialmente en- tre internados e membros da equipe dirigente. Os outros são geralmente apreendidos naquela forma citada, através de esquemas tipificadores e, mais ainda, estes são objeto de forte insti- tucionalização, identificação e tradição. A identificação dos perfis dos integrantes das armas,

como está sobejamente descrito por Castro em seu capítulo “Os espíritos das Armas”, ilustra bem o caso, mas estes esquemas não se limitam a identificações apenas em relação às armas.

No meio civil, um indivíduo pode ser identificado como profissional de uma área, como advogado, por exemplo, mas ele pode também ser professor, e como tal ser identificado e apreendido, no ambiente em que atue como tal; mas, no mundo militar, o indivíduo tende a ser identificado e apreendido basicamente pela formação que institucionalmente o Exército lhe conferiu e com a qual o identifica, inclusive por elementos formais existentes na farda.

A farda em si, no aspecto geral, é um forte componente formal da identidade mili- tar em oposição à civil; mas, internamente ao meio militar, o uniforme carrega detalhes – “distintivos” de cursos e honras militares – que, embora não significativos para a maioria dos leigos, inscrevem seus usuários em grupos que vão além das armas e que, como no caso des- tas, são também altamente carregados de toda uma tradição de esquemas tipificadores, à se- melhança dos descritos por Castro a propósito das armas. Um militar na AMAN pode exercer a função de professor de Matemática, mas a forma como vai ser apreendido por um cadete e como este vai interagir com ele depende talvez mais da formação institucional que ele teve no EB, e que está revelada nos detalhes de sua farda, do que da formação/conhecimento que lhe permitiu atuar na referida função. Após um tempo de interação, também aqui é possível que alguns destes padrões “entrem em xeque por alguma quebra de expectativas”, mas então é provável que os indivíduos recorram a fórmulas do tipo “Fulano é do grupo x, mas (por tal particularidade, porque) tem o espírito do grupo y”, de sorte que é possível vasta parte das interações de alguns alunos passar a ser pautadas pelos relativamente poucos esquemas tipifi- cadores com que aprendem a interpretar seu novo mundo.

Uma tipificação pressupõe generalização. Se tipificarmos alguém como membro da categoria X, por exemplo, de policiais, consideramos pelo menos alguns aspectos de sua conduta como típicos da categoria. Isto ocorre em termos anônimos, mas se temos um amigo policial, e com ele interagimos face a face, ele romperá constantemente o tipo policial anô- nimo, manifestando-se como indivíduo único, atípico90. Um importante aspecto das interações é então a possibilidade de seu caráter direto ou indireto. (B&L, 2002, 50/1)

A realidade social da vida cotidiana é portanto apreendida num contínuo de tipificações, que se vão tornando progressivamente anônimas à medida que se distanciam do “aqui e agora” da situação face a face. Em um pólo do contínuo estão aqueles outros com os quais frequente e intensamente entro em ação recíproca em situações face a face, meu “círculo interior”, por assim dizer. No outro pólo estão abstrações inteiramente anônimas, que por sua própria natureza não podem nunca ser achadas em interação face a face. A estrutura social é a soma dessas tipificações e dos padrões recorrentes de interação estabelecidos

90

por meio delas. Assim sendo, a estrutura social é um elemento essencial da realidade da vida cotidiana. (B&L, 2002, 52)

Nossas relações não se limitam a conhecidos e contemporâneos. De alguma ma- neira nos relacionamos com os que nos antecederam e nos seguirão na história de nossa soci- edade. O anonimato destes conjuntos de tipificações não os impede de pertencer à realidade da vida cotidiana, às vezes de forma decisiva, “afinal, posso sacrificar minha vida por lealda- de aos Pais Fundadores ou, no mesmo sentido, em favor das gerações futuras”. (B&L, 2002, 53)

Este exemplo do sacrifício da vida pelos “Pais Fundadores”, trocado o termo usa- do pelo termo “Pátria”, seria o caso proverbial do que se repete com frequência numa escola militar como uma das contingências e obrigações da carreira respectiva: a disposição de sacri- ficar o maior dos interesses pessoais, a própria vida, em prol de causa coletivamente estabele- cida. Pensando no exercício da profissão militar em tempos de paz, é possível que se subesti- me a importância deste aspecto, mas certamente ele é determinante de muitas das característi- cas que devem existir na formação do militar, porque afinal, se este chegar a atuar naquilo para que é preparado em última instância, uma situação de guerra, só terá determinação para agir de fato, agir com alguma calma, racionalidade e eficiência, e transmitir esta determinação a seus subordinados, se tiver sido submetido a forte carga de disciplina, de submissão a um objetivo coletivo tomado como fim maior, maior que objetivos pessoais. Uma discussão sobre este aspecto, feita de um posto de vista não de um militar, mas de um sociólogo, é a que se encontra em FERREIRA (2000, 33 e ss.), principalmente em seu capítulo V, “Patriotismo”. Considerações sobre a natureza da organização e da atuação militar especificamente em situa- ção de combate fogem ao objetivo deste trabalho; mas, para rápida revisão do assunto, é inte- ressante também o breve resumo “The „Hot‟ Organization”, do artigo “Military Culture”, de SOETERS et alli (2006, 247).

No documento moacyrmaiagitirana (páginas 92-94)