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A INSERÇÃO DOS CONTRATOS DE COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA

No documento DE ENERGIA ELÉTRICA (páginas 196-200)

Parte II – COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA NO BRASIL

2 ELEMENTOS CENTRAIS DA OPERAÇÃO ECONÔMICA DE

4.2 A INSERÇÃO DOS CONTRATOS DE COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA

CONTRATUAIS

Os contratos que permitem a realização da operação econômica de comercialização de energia estão necessariamente interligados, sendo impossível a explicação do funcionamento de tal sistema a partir da consideração de quaisquer deles analisados isoladamente. Isso porque, a operação econômica de comercialização de energia elétrica é mais ampla do que conteúdo abrangido por determinada modalidade de contratos atomisticamente considerada.

Ressalte-se que as diferentes espécies contratuais que permitem a compra e venda de energia elétrica não são apenas os contratos de comercialização per se.

Existem ainda diversas outras modalidades de contrato que estabelecem diferentes vinculações necessárias para o funcionamento do sistema como um todo, como por exemplo: os diversos contratos de concessão de serviços públicos de geração, transmissão e distribuição; contrato de conexão; contratos de uso dos sistemas de transmissão e distribuição; contrato de prestação de serviços de transmissão;

contratos de serviços ancilares (CSA); dentre outros.380 Destarte, a matriz de contratos que une a indústria desagregada, aludida por Hunt e Shuttleworth, é formada por diversas espécies contratuais que se encontram integradas em uma estrutura sistêmica única.

Eduardo Katemi Kataoka aponta a insuficiência da teoria contratual tradicional em explicar a pluralidade de contratos necessária para abranger as operações econômicas da contemporaneidade. Nesse sentido, ressalta:

As práticas dos atores do tráfego contratual mudaram radicalmente. De contratos isolados e relativamente enxutos em seu clausulado, passou-se a uma prática de vários contratos, todos se dirigindo à estruturação da mesma operação econômica de clausulado mais longo.

[...]

Parece, portanto, lícito dizer que o esquema doutrinário da tipicidade e atipicidade contratual não está apto a dar conta dos problemas relativos à coligação contratual. Essa classificação foi pensada para resolver as questões relativas a um contrato isoladamente, compreendido

380 Essas outras espécies contratuais, ainda que relevantes para tornar a comercialização de eletricidade, não constituem objeto de análise do presente estudo. Assim, essas formas são aqui apenas mencionadas, a fim de exemplificar a complexidade da estrutura contratual, que constitui a fundação do sistema em sua integralidade.

no seu atomismo obrigacional, e não inserido na complexidade econômica resultante da pluralidade contratual.381

Ou seja, considerando o conceito de Roppo, o atomismo obrigacional da civilística clássica se mostra insuficiente à construção de representações juridicamente formalizadas, que sejam suficientes para albergar a complexidade das operações de transferência de riqueza contemporâneas. Desta forma, mostra-se usual a utilização de pluralidades de contratos para a concretização de uma mesma operação econômica. Esta pluralidade tem recebido diversas nomenclaturas pela literatura jurídica, como: contratos conexos; contratos coligados; coligação negocial;

grupos de contratos; redes contratuais; dentre outros.

A expressão contratos conexos é utilizada por Carlos Nelson Konder como gênero para designar o grupo de contratos “que para além de sua função individual específica, apresentam juntos uma função ulterior”. De acordo com o autor, esse gênero comporta duas diferentes espécies, sendo elas: os contratos coligados, que consistem em “contratos conexos cujas vicissitudes de um, como a invalidade ou ineficácia por causa superveniente, afetam o outro”, embora possam comportar diversidade de partes, os contratos coligados, em geral são compostos pelas mesmas partes segundo o autor; inspirados pela doutrina francesa, os grupos de contratos são aqueles “com partes diversas que impõem o regime da responsabilidade contratual para as ações entre os co-contratantes”, de forma geral estes são mais restritos, por exigir certa homologia entre os contratos.382

Tal conceito é criticado por Francisco de Paulo De Crecenzo Marino, que considera pouco operacional a noção de “função ulterior”. Cumpre mencionar, ainda, que haveria inconsistência na inclusão dos grupos de contratos como espécie do gênero contratos conexos, uma vez que a doutrina francesa indica diversas hipóteses de tais modalidades de contratos em que inexiste a referida “função ulterior”. Prefere Marino a nomenclatura "contratos coligados", que conceitua como os “contratos que, por força de disposição legal da natureza acessória de um deles

381 KATAOKA, Eduardo Katemi. A coligação contratual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 55-59.

382 KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 189;

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ou do conteúdo contratual (expresso ou implícito), encontram-se em relação de dependência unilateral ou recíproca.” O autor indica a existência de dois elementos essenciais para os contratos coligados: a pluralidade de contratos e o vínculo de dependência unilateral ou recíproca. O primeiro distinguiria o contrato coligado de outras modalidades contratuais semelhantes, mas que há apenas um único vínculo contratual, como os contratos complexos, mistos e plurilaterais. O segundo, por sua vez, distingue os contratos coligados das pluralidades de contratos independentes, ao possuir um vínculo contratual com aptidão de produzir efeitos jurídicos específicos.383 A coligação decorreria de força de lei ou da existência de deveres laterais de conduta atinentes à boa-fé objetiva.

Outra nomenclatura possível é a de redes contratuais, utilizada por Ricardo Lorenzetti. Segundo essa teoria, as redes contratuais surgem da união de vários contratos em torno de uma mesma operação econômica. Tais contratos, embora possuam tipicidade, causa e objetos próprios, somente possuem razão de ser caso estejam unidos em sistema comum que lhes dê sentido único.384

Rodrigo Xavier Leonardo, embora se utilize da nomenclatura de Lorenzetti, ressalta a existência de caracteres comuns às denominações adotadas pela literatura:

No pensamento exposto dos autores supracitados - apesar da atribuição da diversidade de enfoques para um fenômeno semelhante [contratos coligados, contratos conexos, grupos de contratos, contratos ligados, networks contratuais, redes contratuais] – é possível destacar alguns pontos em comum: a) coexistência de dois ou mais contratos estruturalmente diferenciados, mantidas as respectivas causas objetivas desses contratos; b) existência de um nexo funcional entre os contratos diferenciados; c) existência de um nexo econômico entre esses contratos ; d) relevância jurídica da ligação entre estes contratos, seja em razão da motivação (perspectiva subjetivista), seja em razão da correspectividade de prestações (perspectiva objetivista).385

383 MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Contratos coligados. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 98-99.

384 LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos – parte general. Bueno Aires:

Rubinzal-Culzoni, 2004, p. 715-716.

385 Ainda que se fundamente na perspectiva de Lorenzetti, o autor se utiliza de um conceito próprio de redes contratuais: “Entende-se por redes contratuais a coordenação de contratos, diferenciados estruturalmente, porém interligados por um articulado e estável nexo econômico, funcional e sistemático.” LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional.

São Paulo: RT, 2003, p. 132; 137. Não obstante, Francisco Marino ressalta a autonomia teórica da categoria redes contratuais, apontando a existência de elementos distintivos claros entre os contratos coligados e estas: “Muito embora não seja objeto deste trabalho tratar da rede contratual, enquanto figura dotada de autonomia teórica, parece possível distingui-la dos demais contratos coligados ao

Ainda que estejam presentes caracteres comuns às diferentes formas de pluralidade contratual, a perspectiva a ser adotada no presente trabalho será a das redes contratuais, por entender que esta melhor se adéqua ao objeto do estudo ora proposto. Primeiramente, essa teoria ressalta o caráter sistêmico e funcional da pluralidade contratual aqui enfrentada, uma vez que não há mera coligação de contratos, mas sim, a constituição de um sistema complexo que envolve uma multiplicidade de atores. Ademais, a teoria das redes contratuais apresenta explicitamente a abertura da rede e a criação de deveres às partes em relação ao sistema, por decorrência do surgimento de uma causa sistêmica distinta das causas individuais dos contratos. Ambos os aspectos são relevantes ao objeto aqui estudado, pois permitem o ingresso de novos entrantes com deveres frente a todos os agentes do mercado. Pode-se, portanto, afirmar que a invalidade ou ineficácia de determinado contrato, embora possa produzir repercussões jurídicas no sistema, não será determinante para tornar inválido ou ineficaz o sistema como um todo.

Todas essas características e outras mais serão apresentadas na sequência, bem como sua aplicabilidade à operação econômica aqui analisada.

As redes contratuais representam um fenômeno decorrente de uma realidade econômica muito diversa da teoria contratual clássica, que era fundada em relações contratuais atomísticas e imediatas. Insere-se, assim, em um novo paradigma dos contratos, mais adequado à contemporaneidade. Ao passo em que persiste a existência de contratos individualizados com causa jurídica própria, estruturados no modelo clássico de relação jurídica obrigacional (partes, objeto, causa e garantia), sob o aspecto funcional há a vinculação de diversos instrumentos a uma finalidade unificada, sistematizada e funcionalizada, necessária para a

menos em três pontos. Em primeiro lugar, as redes correspondem, necessariamente, a fenômeno de contratação empresarial em massa. Já os contratos coligados podem mostrar-se totalmente desvinculados da realidade empresarial e da contratação em massa. Em segundo lugar, as redes contratuais são, necessariamente, estruturadas por uma parte, à qual se ligam diversos outros contratantes. A rede é, portanto, aberta, comportando um a multiplicidade quase infinita de contratos, fungíveis sob a ótica do promotor da rede. Na coligação contratual stricto sensu, tal característica inexiste. Por fim, a abertura da rede faz com que ela se torne divisível no sentido de a invalidade ou a ineficácia de um dos contratos da rede não afetar os demais, pois, ela permanece, via de regra, perfeitamente viável na perspectiva do empresário organizador da rede. Ao contrário, um dos principais efeitos da coligação contratual é precisamente a repercussão da invalidade e da ineficácia de um contrato aos demais contratos a ele coligados.” MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo.

Contratos coligados. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 96-97.

concretização de uma operação econômica global.386 Logo, “a função de cada contrato não pode abrir mão da função que estes perseguem juntos”.387 Tais funções se dão em dois diferentes níveis, um primeiro de caráter abstrato e principiológico, representando a instrumentalidade que todo instituto jurídico deve observar; e um segundo, relativo à função concreta que as partes buscam ao estabelecer o conteúdo do negócio jurídico. Ambos os níveis complementam-se, de modo a funcionalizar a autonomia dos contratantes aos valores emanados pelos preceitos constitucionais, a fim de garantir a tutela desses atos pelo ordenamento.388

Sob a perspectiva empresarial, as estruturas de redes contratuais implicam em um processo de colaboração estratégica. Neste, cada um dos contratantes aporta suas características e interesses próprios para a construção de um processo de cooperação necessário para a conformação de uma operação econômica desejada por todos eles – ainda que estes atuem de modo competitivo entre si.389 Não se trata da formação de um vínculo societário ante as especificidades e características próprias das partes, que estas desejam manter. Mas sim, do alcance de um interesse comum, transversal em relação aos diferentes polos de interesses particulares.

No setor de eletricidade, esse interesse comum é a circulação do bem

"energia elétrica", de modo a garantir sua geração até a efetiva entrega ao consumidor final. Esse interesse de colaboração estratégica é funcionalizado pela estrutura regulatória setorial, com vistas a direcionar a referida operação econômica à persecução de objetivos coletivos, constitucionalmente assegurados, que transcendem o interesse comum imediato dos participantes da rede.

O elemento de conjunção que une esses contratos é a sua conexão objetiva, compreendida como a causa-objetiva, no sentido de “razão econômica”.390 Isso

386 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo:

RT, 2003, p. 133; 138.

387 MORAES, Maria Celina Bodin de. Prefácio. In: KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. [sn].

388 Ibidem, loc. cit.

389 LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos – parte general. Bueno Aires:

Rubinzal-Culzoni, 2004, p. 718.

390 Ibidem, loc.cit. Segundo Enzo Roppo, a causa irá identificar-se com a operação jurídico-econômica realizada pelo contrato. “A causa do contrato identifica-se, então, afinal, com a operação jurídico-económica realizada tipicamente por cada contrato, com o conjunto dos resultados e dos

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