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COMPETIÇÃO NO VAREJO

No documento DE ENERGIA ELÉTRICA (páginas 83-89)

PARTE I – DISCIPLINA JURÍDICA DO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO

3 ESTRUTURAÇÃO DO SETOR ELÉTRICO A PARTIR DO MODELO HUNT-

3.4 COMPETIÇÃO NO VAREJO

O estágio mais avançado numa estrutura competitiva no setor elétrico se dá, segundo Hunt e Shuttleworth, no modelo de competição no varejo. Nele, todos os consumidores podem escolher o seu fornecedor de energia, sendo garantido o acesso a todos os geradores, aumentando, assim, a pressão na estrutura competitiva do mercado. Em síntese, segundo os próprios autores, a ideia central é:

“Muitos consumidores fazem um mercado mais competitivo do que poucos consumidores – eles procurarão novos fornecedores e pressionarão os atuais.”158

Há, dessa forma, um mercado de atacado, tal qual no modelo anterior, em que os compradores irão competir pela compra da energia dos agentes geradores, e estes últimos, respectivamente, pela venda de tal energia.

A existência de um mercado spot, embora seja preferível no modelo de competição no atacado, pois este apenas terá compradores, é essencial no modelo de competição do varejo. De acordo com o ponto de vista de Hunt e Shuttleworth, um mercado spot sempre será necessário quando operações de comercialização de energia se derem numa rede de propriedade alheia. Razão pela qual os operadores da rede precisam se garantir e balizar os montantes contratados e com a quantidade de energia que trafegará em sua rede.

Torna-se assim necessário um agente externo com a função de

158 Tradução livre de: “Many costumers make a more competitive market than few costumers – they will search out new suppliers and put pressure on incumbents.” HUNT, Sally;

SHUTTLEWORTH, Graham. Competition and Choice in Electricity. Nova York: John Wiley and Sons, 1996, p. 70.

intermediação, coordenação e a contabilização das operações realizadas no mercado de atacado – ressalte-se que esta função não é de comprador único como no segundo modelo, pois tal agente não tem a finalidade de adquirir energia.

Desta forma, ocorre nesse modelo a separação completa das operações de compra e venda em relação ao transporte de energia elétrica em níveis de alta e baixa voltagem – atividades de transmissão e distribuição, respectivamente.

Já na competição no varejo, as empresas distribuidoras não detêm o monopólio de suprimento dos mercados locais, mesmo estando estes cobertos somente pela sua rede. No caso, o livre acesso às redes ocorrerá tanto na transmissão quanto na distribuição, restando apenas o monopólio de manutenção e operação destas redes.159 Distribuição e venda não precisam necessariamente estar juntas, sendo opcional nesse modelo. Aliás, cumpre destacar a importância da separação entre a atividade de distribuição e a de comercialização neste modelo, uma vez que o distribuidor-comercializador naturalmente tenderá a favorecer seus consumidores.160 Como exemplo do problema das distribuidoras serem simultaneamente comercializadoras, pode ser mencionado que, em casos de danos aos sistemas por decorrência de intempéries, estas tenderão a reestabelecer primeiro as ligações de seus clientes em casos de problemas, havendo, por conseguinte, forte necessidade de regulação.

Não obstante, a dificuldade do self dealing resta mitigado no modelo em tela, pois o distribuidor não detém mais o monopólio sobre os consumidores atendidos por sua rede e possuirá dificuldades em repassar preços mais altos que os da média de mercado.

Nessa estrutura, há a nova função do agente comercializador de energia, que irá comprar energia no atacado e revendê-la no mercado de varejo, inclusive para pequenos consumidores.

Todavia, devido aos altos custos de transação, apenas os consumidores de maior porte tendem a comprar energia diretamente dos agentes geradores no

159 KIRSCHEN, Daniel; STRBAC, Goran. Fundamentals of power system economics.

Chichester: John Wiley and Sons, 2004, p. 6.

160 JAMISON, Mark A. Industry structure and pricing: the new rivalry in infrastructure.

Norwell: Kluwer Academic Publishers, 2000, p. 64.

mercado de atacado.161 Os consumidores de menor e médio porte irão adquirir energia dos referidos agentes comercializadores, que irão atuar em regime de competição, revendendo energia contratada no mercado de atacado.162

Nas atividades de geração, Hunt e Shuttleworth entendem que deve ser garantida a livre entrada e saída do mercado, sem haver regulação para obrigatoriedade de aumento ou manutenção da capacidade, bem como, para a instalação de novos empreendimentos.

O principal aspecto positivo deste modelo decorre do aumento da concorrência no lado do suprimento da demanda e no lado do consumo, incrementando no longo e curto prazo a eficiência na produção, aumentando investimentos e melhorando o perfil de consumo. Assim, uma vez estabelecido, as tarifas ao consumidor final não mais serão necessariamente reguladas. Haverá competição entre os comercializadores para o fornecimento de energia aos consumidores de menor porte, pressionando para baixo o valor das tarifas e formando preços efetivamente de mercado – decorrentes de interações entre oferta e demanda. Serão reguladas apenas as tarifas de transporte de energia (transmissão e distribuição), uma vez que tais atividades ainda seriam exercidas em regime de monopólio – por configurarem monopólios naturais.163

Ademais, acaba por gerar uma maior pressão junto às empresas de distribuição de energia no que toca o repasse de preços aos seus consumidores,

161 KIRSCHEN, Daniel; STRBAC, Goran. Fundamentals of power system economics.

Chichester: John Wiley and Sons, 2004, p. 6.

162 Ibidem, loc. cit.

163 Ibidem, loc. cit. Por ser um setor de economia de escala com altas exigências mínimas de capital, restam configuradas elevadas barreiras de entrada que impedem ou dificultam a competição, assim, em diversos segmentos de sua cadeia produtiva estão presentes monopólios naturais da atividade. Fábio Nusdeo aponta a necessidade de regulação estatal de monopólios naturais para evitar malefícios ao mercado consumidor: “Seriam as próprias condições estruturais-tecnológicas desses setores a impedirem a sua organização em regime de concorrência. A existência de monopólios naturais exige a proteção dos consumidores contra os seus malefícios, o que leva à inescapável necessidade de regulação, para lidar com essas estruturas de mercado. As formas mais comumente adotadas no caso de monopólios naturais são a nacionalização das empresas atuantes no setor e/ou a criação de órgãos reguladores especiais, quando mantidas elas em direito privado.

Em termos substantivos, isto implica o estabelecimento de mecanismos diretos ou indiretos de preços administrados e o controle da entrada de novos agentes no setor, a fim de permitir o aproveitamento dos ganhos de eficiência, presumivelmente associados à exploração da atividade por apenas uma única unidade econômica. Nesses casos extremos não se pode falar em concorrência, muito embora existam casos intermediários onde ela se mostra viável e deve ser estimulada pelos reguladores.”

NUSDEO, Fábio. Curso de economia. São Paulo: RT, 1997, p. 274-275.

ante a possibilidade de perda de grandes clientes (e bons clientes) ao mercado atacadista de energia.164 Isso é considerado um avanço em relação ao modelo de competição no atacado, porque o monopólio das distribuidoras sobre os consumidores cativos em tal estrutura não incentiva que estas adquiram energia a custo baixo ou repassem ganhos de eficiência.

No mesmo sentido, ao tornar visível o valor de disponibilidade de energia no sistema, permite que os grandes consumidores tenham maior flexibilidade para responder ao preço em tempo real, alterando seus padrões de consumo para enfrentar aumentos repentinos de preço fora da curva histórica do mercado.

De forma geral, ao passo em que há por um lado teoricamente o aumento máximo da competição entre os agentes de mercado, por outro, restam reduzidos os mecanismos de intervenção estatal no setor elétrico.

Sob o ponto de vista da geração, com a menor possibilidade de intervenção estatal, o modelo promove o fechamento de plantas geradoras menos eficientes, incentivando o investimento em plantas novas e mais eficientes. ?

Além disso, é dificultada a imposição de obrigações de suprimento nesse modelo, uma vez que não há agentes monopolistas na comercialização de energia – sendo mantidos apenas os monopólios naturais na transmissão e distribuição. De igual forma, programas de políticas públicas apenas podem ser impostos com mecanismos específicos de subsídio e com os impostos normais sobre as operações econômicas. Os incentivos para energias renováveis ou outras fontes de interesse nacional devem se dar a partir de compras governamentais específicas de energia elétrica para tais fontes, que devem ser revendidas a preço de mercado. São também reduzidas as possibilidades de incentivos tarifários para consumidores específicos, como grandes consumidores industriais e população de baixa renda, uma vez que estes são obrigados a adquirir sua energia no mercado. No plano conceitual, entende-se que o incentivo a novas tecnologias ocorrerá naturalmente, por decorrência da pressão competitiva.

Ainda, ocorre nesse modelo incremento dos custos de transação e de metrificação. O aumento dos custos de transação decorre, obviamente, da

164 CAMARGO, Ivan. Análise do processo de reestruturação do setor elétrico brasileiro.

Revista Brasileira de Energia, Itajubá, v.11, n. 2, jul./dez. 2008.

necessidade de se estabelecer mecanismos contratuais nos sistemas de alta e baixa voltagem, além de contratos de comercialização de energia. Por sua vez, a ampliação dos custos de medição decorre da necessidade de se estabelecer mecanismos que variem os períodos de aferição, de acordo com o regime de contratação, podendo ser, inclusive, a cada meia hora.

Para os grandes consumidores esses custos são mais facilmente absorvidos. Não obstante, para os consumidores de menor porte, os benefícios potenciais de tal modelo podem ser perdidos por decorrência de tais custos.

Destarte, sob o ponto de vista dos pequenos consumidores, tendo em vista a perda pelas distribuidoras da exclusividade de comercialização de energia em relação a eles, resta dificultada a definição de responsáveis por possíveis falhas no fornecimento.

De qualquer forma, os mencionados autores entendem que esse seria o modelo mais avançado, resultando numa estrutura de mercado mais eficiente e transparente. Verifica-se em sua obra claramente uma tendência “evolutiva” entre os diferentes tipos de estruturas setoriais propostas, que culmina na proposta assentada na ideia de que “mais consumidores aumentam a competição do que poucos consumidores”.

De acordo com o posicionamento dos autores, a adoção desse modelo pode ser o pivô ideal para livrar-se das ineficiências dos modelos anteriores, principalmente aquelas ligadas ao favorecimento de indústrias nacionais, políticas sociais e estruturas burocráticas antiquadas.

Assim, verifica-se que os modelos de competição no setor elétrico utilizados pelos referidos autores são na verdade uma valsa em dois compassos: de um lado, há progressivamente a criação de uma estrutura de mercado competitivo onde antes havia uma estrutura monopolista fortemente apoiada no Estado; de outro, há um decréscimo do espaço de atuação do Estado no setor, com a redução da possibilidade de utilização das estruturas setoriais para a implantação de políticas públicas.

Ou seja, verifica-se que os diferentes modelos expostos possuem progressivamente um viés liberalizante, deixando cada vez mais ao mercado a responsabilidade pela definição da alocação de recursos e investimentos ao setor,

assentada no fundamento econômico da eficiência. Caberá ao Estado, principalmente, a atuação regulatória com fins de corrigir potenciais ineficiências do mercado, em especial, aquelas ligadas ao acesso às redes e ao controle de monopólios naturais.

Cumpre agora analisar se tal perspectiva se cumpriu na realidade fática, observando, a partir dos modelos indicados, como se deu historicamente a conformação do setor elétrico brasileiro, ainda que de maneira sucinta, nos tópicos a seguir apresentados.

4 FORMAÇÃO DO ATUAL MODELO REGULATÓRIO DO SETOR ELÉTRICO

No documento DE ENERGIA ELÉTRICA (páginas 83-89)