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CRISE DAS FONTES NORMATIVAS NO ESTADO SOCIAL E O DIREITO CIVIL

No documento DE ENERGIA ELÉTRICA (páginas 31-37)

PARTE I – DISCIPLINA JURÍDICA DO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO

1 ORDEM ECONÔMICA, DINÂMICAS DE ATUAÇÃO DO ESTADO NA

1.1 CRISE DAS FONTES NORMATIVAS NO ESTADO SOCIAL E O DIREITO CIVIL

As mudanças demonstradas no tópico anterior, com a progressiva intervenção do Estado no espaço econômico, até então privado, geram uma série de repercussões para o âmbito jurídico. As soluções jurídicas do modelo codificado do liberalismo moderno mostram-se insuficientes para dar conta da realidade econômica e política de tal período.

Há, portanto, no processo de passagem do Estado Liberal para o Estado Social um processo de “crise das fontes normativas”, a partir da dissociação do discurso jurídico da codificação civil com a prática dos fatos sociais.31 Mostrando-se, assim, uma necessária reconstrução do direito privado.

30 GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. rev. ampl. São Paulo:

Malheiros, 2005, p. 25.

31 TEPEDINO, Gustavo. Crise das fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In: _____. (org.). A parte geral do novo Código Civil. 3. ed. Rio de Janeiro:

Renovar, 2007. p. xv.

Esse modelo de Estado Social, refletido no Brasil com a Constituição Federal de 1988, incorporou, além das funções clássicas de organização do Estado e de garantia das liberdades individuais, a função de regulador da ordem econômica e social.32

A Constituição modifica, assim, sua função ordenadora do sistema jurídico como um todo, construindo-se em tal modelo uma mudança na relação Estado-indíviduo, na qual o sujeito deixa de ser mero detentor de direitos frente ao Poder Público, passando este último a também possuir a obrigação de garantir níveis mínimos de efetividade desses direitos. Desta forma, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 1°, III, eleva a dignidade da pes soa humana a fundamento da República e supremo valor do sistema jurídico e, em especial, dos direitos fundamentais. No mesmo sentido, o art. 170, da CF/1988, estabelece que os princípios gerais da ordem econômica terão por finalidade garantir a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social.33 Sob a perspectiva, dá-se a construção de um modelo econômico de bem-estar.34

O modelo codificado, assentado na noção de completude e atemporalidade do positivismo do século XIX, perde, assim, sua centralidade no ordenamento.

Ademais, fragmenta-se com a emergência de microssistemas no regramento da atividade privada, cuja unificação e orientação axiológica passa a ser dada pelo texto constitucional e não pela codificação.35

32 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 36, n. 141, jan./mar. 1999, p. 99-109.

33 “Justiça social, inicialmente, quer significar superação das injustiças na repartição, em nível pessoal, do produto econômico. Com o passar do tempo, contudo, passa a conotar cuidados referidos à repartição do produto econômico, não apenas inspirados razões micro, porém macroeconômicas: as correções na injustiça da repartição deixam de ser apenas uma imposição ética, passando a consubstanciar exigência de qualquer política econômica capitalista.” GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1998. 8. ed. rev. ampl. São Paulo Malheiros, 2003, p. 204.

34 Ibidem, p. 37.

35 “As codificações cumpriram sua missão histórica de assegurar a manutenção dos poderes adquiridos. Assistimos, entre as duas grandes guerras a um movimento de socialização do direito, seguido de novos ramos do direito privado e público, dotados de princípios próprios reconhecidos como ‘microssistemas’. Não mais se pode reconhecer ao Código Civil o valor de direito comum. É tempo de se reconhecer que a posição ocupada pelos princípios gerais de direito passou a ser preenchida pelas normas constitucionais, notadamente, pelos direitos fundamentais.” PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 1998, v.

1, p. 18.

Paulo LÔBO, a propósito, entende a constitucionalização do direito civil, como inserção constitucional dos fundamentos de validade jurídica das relações privadas. Considera que é mais do que um critério hermenêutico formal. Mas sim, que consiste na etapa mais importante do processo de transformação paradigmática que passou o Direito Civil, na travessia do Estado Liberal para o Estado Social.36

No ensaio “A Caminho de um Direito Civil Constitucional”, Maria Celina Bodin de Moraes, trata da crise da civilística clássica, a partir da mudança para um papel mais intervencionista do Estado, da seguinte forma:

O sustentáculo fundamental do liberalismo que, pressuposta a separação entre o Estado e a sociedade civil, relegava ao Estado a tarefa de manter a coexistência pacífica entre as esferas individuais, para que atuassem livremente, conforme suas próprias regras, entrou em crise desde que o Poder Público passou a intervir quotidianamente na economia. Diante de um Estado intervencionista e regulamentador, que dita as regras do jogo, o direito civil viu modificadas as suas funções e não pode mais ser estimado segundo os moldes do direito individualista dos séculos anteriores.37

Em tal contexto, nota-se a publicização do direito privado, com a incidência crescente de caracteres de direito público nas relações jurídicas entabuladas por agentes privados.38 Na mesma toada, a constitucionalização do Direito Civil, que implica no reconhecimento da força normativa da Constituição e de sua incidência nas relações de direito privado.39 Assim, percebe-se o processo de progressiva de

36 LÔBO, Paulo. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 22.

37 TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional.

Revista de Direito Civil Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, v. 65, a. 17, p. 21-32, jul./set.

1993.

38 O processo de publicização do Direito Civil não é imune a críticas, em especial, da doutrina mais conservadora, no que se refere à manutenção da dicotomia público/privado. A título de exemplo: “A intromissão cada dia mais intensa do Estado nos negócios privados, quer motivada ideologicamente, quer com fins pragmáticos ou decorrente da simples inércia de crescimento público coloca sérios problemas à distinção [público/privado].” CUNHA, Paulo Ferreira da. Introdução à teoria do direito. Coimbra: Resjurídica, 1980, p. 169.

39 Luís Roberto Barroso ressalta que a constitucionalização do Direito Privado não implica na transformação da Constituição em nova codificação, ou na transferência das normas infraconstitucionais para o seu texto, mas, na reinterpretação dessas normas à luz dos valores nela consagrados: “Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus realizar os valores nela consagrados. Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito infraconstitucional não tem

interpenetração das esferas do público e do privado, superando-se em boa medida a perspectiva dicotômica da Modernidade, que considerava verdadeira invasão tal fenômeno.40

A rigor, é possível constatar a artificialidade na separação dicotômica entre as esferas pública e privada, servindo tão somente para justificar a limitação da atividade do Estado, a fim de garantir o estabelecimento de um círculo de proteção em torno dos interesses particulares – em especial a atuação econômica da burguesia.

Porquanto, resta caracterizado um maior intervencionismo estatal no controle dos poderes privados. A autonomia individual, ao invés de ser um mecanismo de limitação do poder estatal é relativizada em sentido inverso, com a imposição de restrições públicas aos poderes econômicos privados.41 Verifica-se, desta forma, na travessia do Estado Liberal para o Estado Social, a emergência de um direito civil constitucionalizado, com assento no princípio da dignidade da pessoa humana, em um movimento de publicização do direito privado. Sob tal aspecto, utilizando-se da visão axiológica de Bobbio relativa à distinção entre o público e o privado, há em tal contexto o primado do público sobre o privado.

Na seara contratual tais mudanças geraram alterações significativas em relação ao modelo clássico de outrora.42 Judith Martins Costa aponta que em tal

como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.” BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em:

<http://jus.com.br/revista/texto/7547>. Acesso em: 21 out. 2012.

40 “Para tanto, no puede hablarse sinceramente una tal invasión, y si más acertadamente – como evidencia Alvaro d´ Ors - de la marcha paulatina hacia la formación de um nuevo Derecho civil que, rompiendo con los moldes clásicos individualistas, se eleva resueltamente a la colaboración estrecha del hombre y la sociedad.” BUSTAMANTE, Lino Rodriguez-Arias. La distinción entre lo publico y lo privado, segun la concepcion comunitária del derecho. Madrid: Reus, 1951, p. 10.

41 LÔBO, Paulo. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 41. Ainda, de acordo com o magistério de Serpa Lopes: “Essa influência do Direito Público se traduz pela restrição à liberdade que dela decorre. Passa-se da liberdade ilimitada a uma liberdade menor.” LOPES, Miguel Maria Serpa. Curso de direito civil. 7. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989, p. 25.

42 Eros Grau destaca que as mudanças na atuação estatal sobre a economia ensejaram alterações especialmente no âmbito dos contratos, ante a sua íntima relação com o direito de propriedade: “A atuação estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito acarretou uma série de transformações no direito. Um dos flancos mais atingidos foi justamente o do direito dos contratos. Tem-se afirmado, sistematicamente, que os dois valores fundamentais juridicamente protegidos nas economias do tipo capitalista são, simetricamente, o da propriedade dos bens de produção – leia-se propriedade privada dos bens de produção – e o da liberdade de contratar –

contexto, “as relações econômicas de troca de bens – produtos e serviços – são instrumentalizadas, por sua vez, por institutos jurídicos do direito das obrigações - notadamente os negócios jurídicos”.43 O aspecto de maior relevo se dá com a redução da autonomia individual e aumento da intervenção estatal no contrato, de modo a ultrapassar os limites da justiça comutativa (em que se dá a cada um o que é seu, de modo a considerar a todos formalmente iguais), em prol não apenas de uma justiça distributiva (em que cada um deve receber o que é seu, levando-se em consideração suas desigualdades), mas, principalmente, da construção de uma justiça social, que visa a transformação da sociedade de modo a reduzir as desigualdades sociais (na forma do art. 3º, III e art. 170, VII, da CF/88).44 Em tal contexto, na passagem do Código Civil de 1916 para o Código Civil de 2002, Teresa Ancona Lopez ressalta a conformação de novos alicerces principiológicos sobre os quais devem se assentar a interpretação e a criação dos contratos, destacando:

eticidade; socialidade; confiança; operabilidade.45

Embora a função individual clássica do contrato permaneça, esta passa a ser conformada por uma função social. Nesta última, os interesses individuais dos contratantes devem ser exercidos em conformidade com os interesses sociais, representando, assim, no plano negocial a orientação da relação ao princípio constitucional da justiça social.46 Paulo Nalin indica a existência de duas dimensões para a função social do contrato. Uma primeira de caráter extrínseco, que tem por fim a coletividade, mitigando a relatividade dos efeitos do contrato, preocupando-se

(ainda que se entenda que tais valores são preservados não em regime absoluto, mas relativo). A verdade, no entanto, é que tais valores não estão dispostos em situação, sendo mais correto observar que a liberdade de contratar não é senão um corolário da propriedade privada dos bens de produção. Isso porque a liberdade de contratar tem o sentido precípuo de viabilizar a realização dos efeitos e virtualidades da propriedade privada individual dos bens de produção. Em outros termos: o princípio da liberdade de contratar é instrumental do princípio da propriedade privada dos bens de produção. A atuação do Estado sobre o domínio econômico, por isso mesmo, impacta de modo extramente sensível sobre o regime dos contratos.” GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1998. 8. ed. rev. ampl. São Paulo Malheiros, 2003, p. 83.

43 MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e solidariedade social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de consumo. In: ___________ (org.) A reconstrução do direito privado. São Paulo: RT, 2002, p. 631 (p. 611-661).

44 LÔBO, Paulo. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 42.

45 LOPEZ, Teresa Ancona. Princípios contratuais. In: FERNANDES, Wanderley (coord.).

Contratos empresariais – fundamentos e princípios. Série GVLAW. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 3-8.

46 LÔBO, Paulo. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 67-70.

com suas repercussões no âmbito das relações sociais, de caráter transindividual.

De outra monta, há também um perfil intrínseco, de caráter interpartes, em que se dá a ressignificação dos princípios liberais do contrato e a imposição de outros novos, como a igualdade material, equidade e boa-fé objetiva.47 Esse perfil interno da função social implica na vedação de condutas abusivas entre as partes, de forma a garantir materialmente o equilíbrio contratual, a equivalência das prestações, e a observância de deveres de condutas decorrentes da boa-fé objetiva.48

As liberdades negativas decorrentes da autonomia da vontade passam a sofrer maiores limitações de caráter positivo em relação ao Estado. A liberdade de escolher o outro contratante ou da conclusão do contrato são limitadas, por exemplo, na prestação de serviços públicos ou monopolizados. Em relação à escolha do tipo contratual, há uma maior incidência de tipos exclusivos para determinados setores da atividade econômica. Por sua vez, quanto à liberdade de determinação do conteúdo do contrato, se dá menor espaço ao consensualismo das partes com a imposição de obrigações que decorrem de normas cogentes.49

Entretanto, esse modelo de Estado sofre rupturas e mutações no contexto das reformas neoliberais ocorridas principalmente a partir dos anos 1990, que ensejam a reorganização dos espaços públicos e privados e, consequentemente, em novas mutações na disciplina contratual.

47 NALIN, Paulo. Do contrato – conceito pós-moderno (em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional). 2. ed. rev. ampl. Curitiba: Juruá, 2006, p. 223-224.

48 Carlos Eduardo Pianoviski Ruzyk ressalta que o aspecto intrínseco da função social do contrato, embora enseje limitações à autonomia privada, se dão para a garantia de outras liberdades:

“Embora não se descarte a função social intrínseca tomada como equilíbrio entre as partes, o que [...]

traz aspectos pertinentes à noção mais ampla de autodeterminação, pode-se afirmar que o acesso a bens fundamentais por meio do contrato é o que pode trazer de mais relevante na compreensão da relação entre função social e liberdade. [...] Pode-se, é certo criticar o que se está a desenvolver sob o argumento de que essa incidência de direitos fundamentais importa intervenção legislativa e jurisdicional sobre a autonomia privada. Consiste, entretanto, em restrição à autonomia privada com o fim de realizar liberdades(s). A limitação a uma dada liberdade – e a própria vinculação dos particulares aos direitos fundamentais antes referidos – encontrariam fundamento no incremento de outra liberdade. Isso não reduz o sentido da liberdade ao mero exercício aquisitivo de bens, ou, menos ainda, ao consumo: revela um direcionamento funcional, como se vê, se dá em termos de ampliação de liberdade(s), notadamente da liberdade como efetividade [ou substancial].” RUZYK, Carlos Eduardo Pianoviski. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s) – repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ, 2011, p. 291-292.

49 LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos – parte general. Buenos Aires:

Rubinzal Culzoni, 2004, p. 25-27. LÔBO, Paulo. Contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 62.

1.2 REFORMAS, PRIVATIZAÇÃO E LIBERALIZAÇÃO NA ATIVIDADE

No documento DE ENERGIA ELÉTRICA (páginas 31-37)