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A institucionalização da “Gestão do Patrimônio Arqueológico”

5. ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO QUILOMBOLA

5.3 A institucionalização da “Gestão do Patrimônio Arqueológico”

A biodiversidade ainda é tecnicamente valorizada enquanto um produto da natureza, desvinculada do processo cultural de ocupação da humanidade. Isso é facilmente comprovado tendo em vista o tamanho dos parques nacionais como grandes áreas geográficas, enquanto os sítios de patrimônio cultural e territórios de povos tradicionais são pequenas áreas de ocupação. Apesar de existirem alguns parques arqueológicos de grande importância no mundo, os valores culturais continuam sendo vistos de importância secundária nesse processo.

No entanto, de alguma forma, isso tem começado a mudar nas últimas décadas e os valores culturais dos parques nacionais começam a ser reconhecidos. Novas nomenclaturas são criadas para estabelecer áreas de preservação ambiental onde é permitida a permanência dos antigos moradores. Terras indígenas e territórios quilombolas são demarcados por seu valor histórico-cultural, associados a modelos não agressivos de ocupação.

De acordo com Laurajane Smith (2006), foi após a “National Environment Policy Act” ou NEPA, editada no fim da década de 1960, nos Estados Unidos que a expressão “Cultural Resource Management” ou CRM se tornou amplamente conhecida. Com as crescentes opiniões da época sobre a conservação tanto do patrimônio natural quanto cultural, os arqueólogos também começaram a engrossar as vozes pela conservação dos recursos arqueológicos. Arqueólogos dos EUA, UK e Austrália agitaram as décadas de 1960 e 1970 com propostas para a preservação e proteção dos

comunidades tradicionais caiçaras de Cananéia”, Cleber Rocha Chiquinho, “Saberes Caiçaras: A cultura caiçara na história de Cananéia”, entre outros. Ver referência completa na bibliografia.

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recursos arqueológicos e o desenvolvimento de legislações governamentais que protegessem tanto o patrimônio cultural indígena quanto não indígena33.

As mesmas décadas foram marcadas na arqueologia pela “perda da inocência” (CLARKE, 1973). A Arqueologia começou a desenvolver abordagens teóricas voltadas à busca pelos princípios gerais do comportamento humano. A pesquisa arqueológica procurava ser mais explícita e científica, estabelecendo-se firmemente como uma ciência de métodos rigorosos e sistemáticos, com modelos inspirados nas ciências exatas. Calcando-se em pressupostos teóricos do funcionalismo, neo-evolucionismo e ecologia cultural, definiu-se um novo rumo das pesquisas arqueológicas, inaugurando a chamada Nova Arqueologia.

Esse debate ajudou a reforçar a proclamação da arqueologia como uma disciplina e prática intelectual dotada de legitimidade científica. Segundo Smith (2008:68), os direitos da arqueologia como uma ciência de dados, na concepção de ciência como conhecimento universal, reforça a autoridade da intelectualidade arqueológica frente às demandas do patrimônio cultural. A legitimação da arqueologia como ciência, pela Nova Arqueologia ocorreu junto com a concernência cada vez maior do Estado quanto ao patrimônio cultural. A maior consequência desse fenômeno foi a institucionalização da ciência arqueológica no aparato estatal como discurso responsável pelo gerenciamento do patrimônio cultural.

Essa estrutura do discurso patrimonial é denominada por Smith (2006) como

Authorised Heritage Discourse (AHD). Para a autora esse discurso é construído

tomando como referência a materialidade do patrimônio que passa a ser entendido como coisa e como uma herança que pertence a toda a humanidade. “O sentido de que

herança (leia-se patrimônio) é entendido como coisa é também reforçado pela naturalização das apropriações arqueológicas a respeito da herança (leia-se

patrimônio) nos instrumentos legais e políticos” (SMITH & WALTERTON, 2011:43). É isso que legitima as ações de gestão do patrimônio a partir de uma percepção universal.

Alguns autores que refletem sobre essa perspectiva naturalizante do patrimônio chamam a atenção para sua agência, por considerarem que as relações sociais não se

33 O termo “Gestão de Recursos Culturais, cunhado inicialmente, foi gradualmente sendo substituído por

“Gestão de Patrimônio Cultural”. Segundo Heather Burke & Claire Smith (2010:29) essa mudança terminológica respondeu a críticas de povos aborígenes, que argumentavam contra a ideia de cultura ser associada a concepção de recurso. Para eles recurso significa algo passivo de exploração ou salvamento, com conotação universal. Patrimônio, por sua vez reconhece a relação de herança cultural de um grupo específico e favorece a ideia de preservação.

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dão apenas entre pessoas e grupos, mas elas perpassam e envolvem os bens materiais. Assim, se por um lado, a preservação de objetos em museus ou a preservação de sítios e lugares cumprem uma importância social, cultural e política na sociedade ocidental, na medida em que essa materialidade é determinante para o reconhecimento de identidades individuais, sociais, culturais e históricas em âmbito regional, nacional ou global, por outro, a preservação desses patrimônios culturais, ao contrário do que o discurso oficial prega, é importante não para a preservação do passado, mas sobretudo para o presente, pois ele ocupa lugar central nos processos de socialização e conflitos sociais (FERREIRA, 2008:86).

Deste modo, o aspecto político desse processo é intensificado quando o discurso do gerenciamento patrimonial fornece estrutura e coerência às políticas e legislações do Estado. Nos gabinetes da administração estatal, esse fenômeno adquire roupagem autoritária, particularmente, quando tal política obscurece desigualdades e divisões sociais. A estrutura política deixa de ser democrática quando as instituições responsáveis pelo gerenciamento técnico do patrimônio cultural tendem a formular políticas públicas no intuito de capturar toda a sociedade dentro de um único entendimento de patrimônio, deixando de considerar a diferença e a dissonância (SMITH & WALTERTON, 2011:30).

Segundo Smith (2008:66) esse processo formaliza a atuação profissional do arqueólogo estatal em duas funções: ‘legislador’ e/ou ‘intérprete’. O ‘legislador’ atua como autoridade técnica através do poder institucional. Ele faz afirmações autoritárias que respaldadas pela autoridade do Estado, podem arbitrar sobre as regras processuais que assegurem a consecução da verdade. Já o ‘intérprete’ objetiva facilitar a comunicação entre os diferentes grupos da ordem social, no intuito de incluir suas exigências e contextos culturais entre as variáveis que estabelecem as políticas patrimoniais. Nesse sentido, o intérprete apresenta uma prática intelectual orientada pelos pressupostos teóricos da pós-modernidade. De qualquer forma, não é fácil para o intérprete escapar da postura autoritária do legislador e, às vezes, pode mesmo contribuir para afirmá-la, pois na medida em que reconhece as subjetividades dos grupos sociais, torna-se mais fácil manipulá-los.

O ponto é que a institucionalização do conhecimento arqueológico pelas agências estatais faz com que qualquer debate em torno do uso do patrimônio cultural seja intensamente político. O resultado de tal debate acarreta reais consequências a todas as partes envolvidas.

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