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Comunidade, negociação e aplicação metodológica

1. ARCABOUÇO TEÓRICO E METODOLÓGICO

1.7 Comunidade, negociação e aplicação metodológica

Nosso trabalho tem o cuidado de não assumir ‘comunidade’ e ‘patrimônio’ como termos confortáveis e ontologicamente fechados. Adotar esses termos seria reproduzir uma imagem atemporal e primitiva desses grupos que exigem o reconhecimento de sua alteridade. Antes disso, essas comunidades se apresentam como um agregado heterogêneo e alternativo de pessoas, com interesses diversos e disputas internas.

Também é importante salientar que um indivíduo pode pertencer a mais de uma comunidade ao mesmo tempo. Da mesma forma (como vamos ver), a comunidade como um todo pode ter mais de uma auto-denominação, tendo em vista as narrativas históricas e as relações cotidianas. Além disso, os próprios membros desses grupos, conscientes de sua condição marginalizada e do jogo político institucional, criam e utilizam essa imagem nostálgica da comunidade para estabelecer alianças com os especialistas que podem garantir seus direitos e assistências básicas.

Um dos argumentos centrais desse trabalho é discutir o fato do patrimônio ser um processo pelo qual grupos de comunidades estão envolvidos, devendo ser um processo aberto e acessível às diferenças, no sentido mais rico do termo. Essa orientação das diferenças suscita situações de conflitos sobre as definições e entendimentos de uma

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mesma coisa, solicitando trocas úteis e gratificantes de duas formas de ideias, experiências e interpretações sobre o patrimônio (SMITH & WATERTON, 2011:15).

A partir deste posicionamento teórico, concordamos com a ideia de que a comunidade deve ser a preocupação central para toda a prática arqueológica e patrimonial. Por conta disso, o presente trabalho não se retém sobre as relações particulares entre os membros do Mandira. Apesar de algumas situações históricas, casos e relatos transparecerem essas relações, as discussões do trabalho giram em torno do foco da pesquisa que busca o processo pelo qual os Mandira se constroem enquanto comunidade quilombola. O modo como eles constroem os discursos pelos quais reivindicam sua alteridade, principalmente as responsáveis pelos seus interesses agrários e patrimoniais.

Muitos dos conflitos e tensões existentes entre comunidades e os profissionais do patrimônio (sejam pesquisadores ou legisladores) giram em torno das posições diferenciadas na participação significativa que cada grupo tem sobre a administração do processo patrimonial. Isso faz com que a inter-relação com a comunidade esteja além da programação do pesquisador ou do trabalho de campo. Essa relação acontece a todo o momento e envolve diferentes interesses e agentes. Quando se almeja realizar um trabalho multivocal com pretensões descolonizadoras, o modo como o cientista se posiciona nesse jogo de interesses estabelecendo relações e marcando posições, deve ser muito bem cuidado desde antes do começo dos estudos.

Por isso, já durante a fase de elaboração da pesquisa foram realizadas visitas a campo para conversar sobre a proposta do trabalho e adaptar o projeto às suas exigências e interesses. Nesse período participamos de reuniões da Associação Quilombola dos Mandira e do Conselho da Reserva Extrativista, no intuito de conhecer os membros e deixar claro o interesse e relação de poder envolvida.Por ser uma área de preservação ambiental federal, a reunião do Conselho é presidida pelo funcionário do Instituto Chico Mendes, do IBAMA, Valtency Negrão da Silva. Além dele, o conselho é formado por representantes do quilombo, dois representantes da Fundação Florestal (um da sede de Cananéia e outro da capital) e por representantes de organizações civis interessadas no assunto, como, por exemplo, a EAACONE – Equipe de Assistência e Assessoria das Comunidades Negras do Vale do Ribeira.

Nas duas reuniões, realizamos uma explanação sobre Arqueologia e o trabalho do arqueólogo, utilizando os materiais arqueológicos do Kit de Educação Patrimonial do Setor de Difusão Cultural do MAE. A proposta não era propriamente fazer um

37 trabalho de educação patrimonial, mas usar as peças arqueológicas do kit como material de apoio interativo para despertar uma discussão sobre as possibilidades de pesquisa e uso do conhecimento arqueológico junto a comunidade. Desenvolver o projeto dentro dos interesses concreto da comunidade foi o primeiro desafio apresentado à pesquisa.

Enquanto pesquisador, então, conhecemos as pessoas, apresentamos nossa biografia e proposta de pesquisa, para depois

dar inicio a coleta e registro sistemático dos dados. Procuramos aplicar métodos de campo para abordar os moradores e conhecer as histórias à medida que participávamos das atividades pertinentes e das conversas informais e direcionadas: informações eram solicitadas, dúvidas retiradas, indicações coletadas, na tentativa de tornar nossa atuação e penetração no habitus da comunidade mais abrangente e menos agressiva.

Com isso, objetivamos documentar: 1) os processos de produção e uso de sua cultura material, incluindo a referência espacial; 2) o modo como a população quilombola usa o espaço territorial e doméstico em que vive, configurando as áreas de atividade; 3) a identificação e registro das estruturas e vestígios arqueológicos existentes em seu território; 4) as interpretações dos quilombolas sobre essas estruturas e vestígios arqueológicos; 5) o modo como esta população utiliza e se relaciona com os diferentes ambientes em que vivem, configurando uma paisagem cultural, composta de lugares significativos.

A partir da observação participante orientada arqueologicamente (living

archaeology) e do levantamento das tradições e histórias orais, foram obtidas as

informações possíveis sobre todos os elementos envolvendo essas práticas relacionadas. Desta forma, as prospecções arqueológicas não interventivas foram realizadas de forma assistemática, à medida que os lugares prospectados foram as áreas de atividades diárias e exponenciais dos moradores do Mandira e alguns lugares prospectados em momentos específicos levando em conta algumas informações levantadas nos relatos e histórias orais.

Figura 1: Reunião da RESEX Mandira, quando foi apresentado o Kit de Educação Patrimonial do MAE/USP

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As etapas de campo etnoarqueológico foram realizadas em etapas de campo de distintas durações: um período de mais de 30 dias seguidos, quatro etapas de campo de 15 dias e inúmeras visitas de uma semana a dois dias no quilombo, conciliando os diferentes períodos do ano. Seguindo a normalidade da comunidade, durante as estadas no Mandira, fomos hospedados sempre na casa de seu Chico e Dona Irene. Exceto os pesquisadores que chegam em grupos – por isso são instalados no galpão com colchonetes, mas fazem as refeições na casa de Dona Irene – a regra é o Seu Chico e Dona Irene receberem e hospedarem as pessoas de fora da comunidade que não são parentes.

Como não poderia deixar de ser, nossos informantes transitaram entre Seu Chico, Dona Irene, seus filhos Luis, Nei, Inácio e Agnaldo e uma de suas noras, a Thais6, além de outros mandirenses como Bill, Evaristo, Zacarias, Zé Abraão, Dona Creusa, Jango e o falecido Seu Henrique Bernardo Coutinho, todos com algum grau de parentesco, e Seu Leonardo, que mora ao lado da escola e trabalha como caseiro do proprietário das terras dos Mandira. Para acompanhar as atividades diárias e as ações de prospecções programadas tivemos a principal companhia do Seu Chico ou de seu filho Luis. Mas também contamos inúmeras vezes com a presença de Bill e Inácio e em ocasiões pontuais com Dona Creusa, Seu Jango e Nei.

A presença de Luis, Bill e Inácio como principais acompanhantes nas prospecções realizadas pelo território seguiu critérios sociais quanto a categoria de gênero e idade. Alem disso, procuramos o convívio mais próximo com outras pessoas da comunidade que pudessem variar o gênero e idade, entre estes devemos citar: Vardo, Nilso, Juca, Vui, Cassiane, Jose, os meninos Rodrigo, Bruno, Romário, Jean e Chapolin e as crianças Lais, Ruele, Gabriela, Otávio e Henrique.

Esse convívio possibilitou o acesso às diferentes paisagens do território podendo realizar vistorias assistemáticas, oportunísticas, orientadas pelo próprio modo de ocupação do espaço territorial dos moradores. Além disso, rotas de reconhecimento foram realizadas em momentos específicos, contando com as informações orais da população local, para registro e mapeamento dos sítios e estruturas arqueológicas existentes fora da área de acesso cotidiano da comunidade.

6 Durante minhas pesquisas no Mandira, o ISA (Instituto Socioambiental) realizou o levantamento dos

bens patrimoniais de natureza imaterial das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira. Nesta ocasião a Thais foi a principal interlocutora entre os Mandira e os pesquisadores do instituto, por isso tivemos algumas conversas sobre os bens patrimoniais da comunidade.

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As estruturas arqueológicas encontradas foram registradas com fotos e georreferenciamento (GPs – posições georreferenciadas), descritas e identificadas objetivando principalmente aferir sobre a forma, a extensão, a relação com o ambiente do entorno e o tipo do sítio em superfície, sem a intervenção na estrutura do mesmo (MORAES, 2006). Os locais que se configuraram como sítio arqueológico e não possuíam registro oficial foram devidamente catalogadas no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA), mantido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Todas as etapas foram georreferenciadas e a partir da comparação com outros mapas do território Mandira, produzidos pelo ITESP e pelo ISA, foram confeccionados três mapas temáticos do Território Mandira, dois históricos e um atual, um mapa da visão panorâmica do recôncavo de Cananéia e outro mapa geológico da região estuarino-lagunar. Na presente pesquisa os mapas temáticos são apresentados como instrumento comparativo do processo de ocupação do espaço e possíveis padrões de assentamento, quanto aos sistemas simbólicos que lhes são subjacentes e possibilitam a compreensão da inserção dos sítios na paisagem.

Deste modo as informações obtidas em campo pelas prospecções, observações, mapeamentos, conversas e entrevistas foram depuradas em laboratório. Essa etapa pós- campo consistiu no detalhado processo de examinar e sistematizar as anotações e fotos coletadas, sendo organizadas segundo o critério de classificação determinado pelo recorte do projeto de pesquisa. Desta forma, foi embutido na própria trajetória de transformar as expressões coletadas em campo em expressões próprias do discurso da pesquisa acadêmica, as abordagens de diferentes crivos avaliativos (MACEDO, 2006).

Por fim, este método de pesquisa é continuo na medida em que se retorna ao campo para submeter às interpretações e sínteses aos membros da comunidade quilombola dos Mandira. Como todo processo de campo, este momento também se apresenta como um momento de negociação. Procuramos adotar aqui a metodologia empregada por Jackson & Smith (2007), já exposta anteriormente, cuja prática de campo possibilitou desenvolver um parâmetro de consulta com as pessoas com quem trabalhavam na tentativa de adotar métodos não colonizadores e mais colaborativos ao estudo etnoarqueológico. Assim como a experiência no território aborígene, australiano, também no quilombo Mandira essa prática foi um dos fatores condicionantes na

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constante (re)avaliação crítica sobre o recorte do conteúdo pesquisado e (re)definição dos objetivos do projeto de pesquisa.

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