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3. O TERRITÓRIO QUILOMBOLA MANDIRA

3.3 As fronteiras

Na história de formação do território Mandira os dados apontam para um acontecimento curioso. Como vimos, existiu uma primeira divisão das terras originais da Fazenda Mandira ocasionada pelas brigas de João com seu irmão Antônio. Como ponto delimitador entre as duas partes de terra, o Salto do rio Mandira tornou-se um lugar significativo presente nas narrativas históricas.

Na primeira certidão arquivada no ex-Registro de Imobiliário da extinta

Comarca de Cananéia, referente às terras da fazenda Mandira, o salto também é apontado como um dos pontos limítrofes das terras. Denominado sítio Mandira, o documento do dia 14 de setembro de 1912 em nome de João Vicente Mandira (ver Certidão reproduzido em imagem no Anexo 2) apresenta o imóvel, situado no Rio das Minas, Distrito de Paz de Cananéia, dentro das seguintes confrontações: “Para cima

com terras de Anna Jacintha Peniche; para baixo com terrenos do “Boacica”; e fundos com terras do Salto. Benfeitorias existentes: casas de moradia, regod’água, cafeeiros, arvoredos de espinhos, bananeiras, mandiocal.”23

Percebe-se que, mesmo sendo uma descrição registrada em documento oficial, cujo intuito é definir legalmente os limites e extensão do território, os três marcos fronteiriços citados não apresentam uma escala cartográfica homogênea e apenas um deles pode ser considerado um ponto de referência para a demarcação do território: o

23 Certidão do sítio denominado Mandira, do Livro de Registro Facultativo de Terras e Domínio do Ex-

Registro Imobiliário da extinta Comarca de Cananéia, atualmente sob o arquivo e guarda do Oficial Registro de Imóveis, Titulos e Documentos, Civil de Pessoa Jurídica e Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas da sede Comarca de Cananéia. – Estado de São Paulo. 14 de setembro de 1912: página única (ver imagem no Anexo 2).

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Salto do rio Mandira. As terras de Anna Jacintha Peniche a oeste não apresentam nenhum marcador de fronteira bem definido, e a leste, os terrenos do Boacica, também não é exatamente uma marcação precisa. O fato de o documento pretender descrever o sítio Mandira com limites bem definidos demonstra o quanto João Mandira estava preocupado com a extensão e os limites do território, desde antes de 1912. Pressupõe-se que ele buscava os direitos de posse sobre essas terras, concedido pelo registro escrito, sobrepondo o direito de pertencimento formado pelo dinâmico processo de uso.

Neste sentido, segundo os relatos orais indicam, João apresentava os limites de baixo e de cima das terras com a pretensão de salvaguardar a porção de terras do Mandira que estava sob ameaça do Coronel Cabral, alem de criar oposição com a porção de terras além do Salto. Provavelmente, em decorrência dos fatores geográficos, como estar mais longe do mar, não ter acesso direto ao mangue e ter a maior porção de terra em declive agudo, as terras além do Salto não apresentavam grandes interesses. Por outro lado, João procurava os meios de restringir o uso das terras de baixo do salto a seus descendentes diretos. Isso leva a crer que as principais áreas de uso se concentravam na porção sul do território e que Antônio Mandira e seus descendentes também utilizavam essas áreas, inclusive para as atividades diárias, podendo vir a reivindicá-las por direito.

Fato é que João Vicente Mandira fez questão de registrar os limites e extensão do território, forjando assim um território denominado Mandira, em oposição a seu irmão Antônio, apesar deste carregar o mesmo sobrenome. Ao acionar a palavra escrita, João Vicente Mandira não só legitimou, como também perpetuou o acesso de seus descendentes ao seu universo particular das terras ao sul do Salto. O território Mandira foi definido então tendo o salto como marco fronteiriço, em oposição a seu parente Antônio Vicente Mandira, que também ocupava e explorava a mesma porção de terra.

Deste modo, não nos surpreende que, atualmente, quando questionados sobre os limites de seu território, os Mandira apresentem os mesmos marcos forjados na primeira Certidão Oficial de Registro de Imóveis do sítio Mandira, em nome de João Vicente Mandira. Assim, o Relatório Técnico-científico do ITESP delimita apenas a percepção territorial herdada de João Vicente Mandira, ou seja, metade de toda a área da fazenda – originalmente doada a Francisco Vicente Mandira – tendo o salto como o marco divisor das terras:

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“João Vicente Mandira estabeleceu-se na área situada ao sul do Salto do rio Mandira, delimitada pelo rio Acaraú, a oeste, e pelo rio Cambupuçava e a Serra da Boacica, a leste, até o encontro com o Mar de Dentro, pela frente” (TURATTI, 2002:27).

Cada marco descrito acima faz parte da representação histórica transmitida por João Vicente Mandira, que orientou as relações sociais de seus descendentes. Comumente, as fronteiras são dinâmicas, sendo constantemente negociadas e justificadas pelas atividades de uso e políticas de interesses, que acionam as atualizações destas representações simbólicas. Atualmente, com os processos de retomada das histórias de seus antepassados, os Mandira reconhecem a porção de terra a cima do salto como parte de seu território. Como veremos, essa região abriga uma das trilhas mais antigas, utilizadas pelos Mandira para visitar os parentes e vender peixes no município vizinho. Esses lugares de montanhas guardam também algumas antigas áreas de moradia e muitas histórias das caças de Antônio Mandira.

Entre os Mandira, o ato de caçar dentro do território contribuiu para a manutenção e preservação dos limites do território. Os locais de caça comumente utilizadas sempre foram afastados das áreas de moradia, por isso, não raramente, pessoas de fora também fazem uso velado desses lugares. Entretanto, eles não se configuram enquanto locais compartilhados com outros grupos regionais. Pela constante disputa de terras os limites e uso do território sempre foi muito preservado pelos Mandira. Os locais de caça compartilhados com outros grupos são fora dos limites territoriais do Mandira. Do mesmo modo ocorre com a pesca que pode ser feita nos inúmeros rios e riachos existentes no território ou em regiões distantes, em outros territórios ou em locais coletivos de rios e mares.

Contudo, durante nossas pesquisas, observamos que o território dos Mandira configura-se com os seguintes marcos fronteiriços: A leste, delimitado pela Serra da Boacica, a oeste, pelo rio Acaraú, a norte, pelo divisor da Serra do Mandira, onde nasce o rio e se estende até o encontro com o Mar-de-Dentro, no local denominado Barra do Rio.

A toponímia de alguns desses lugares confirma a função fronteiriça que eles exercem na paisagem. A Barra do Rio, por exemplo, é onde o rio Mandira e o rio Boacica encontram o Mar-de-dentro. O Mar-de-dentro, também conhecido como Mar

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de Itapitangui ou Cubatão24, separa a porção territorial do município da Ilha de Cananéia. Entre a terra firme e a Barra do Rio se estende uma longa faixa de paisagem intermitente, variando entre mangue e espelho d´água, fato geográfico que enriquece a beleza da cena pela sucessiva transformação diária da paisagem, imprimida pelo movimento da maré.

Nesta área está localizado a Reserva Extrativista (RESEX) do Mandira. Trata-se de uma importante porção do território, muito utilizado nas atividades de pesca e extração de ostra. Assim, a Barra do Rio é o marco limite referencial, pois formula a hidrografia do Território, incluindo toda a extensa porção da paisagem alagada, além de toda a área banhada pelo serpenteado do rio, que leva o nome da comunidade.

A hidrografia do território Mandira é um espaço formado por lugares de extrema beleza e magia. Procurando romper com a posição de afastamento da ciência positivista, vamos entrar nesse espaço pela cadência das águas, até atingir as trilhas nos morros, buscando entender o sentido dos lugares significativos na formação da paisagem cultural do Território Mandira.