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Diferentes abordagens arqueológicas sobre comunidades quilombolas

1. ARCABOUÇO TEÓRICO E METODOLÓGICO

1.4 Diferentes abordagens arqueológicas sobre comunidades quilombolas

Com diferentes categorias envolvidas, o tema quilombola revela questões extremamente contemporâneas. Os debates entre historiadores e antropólogos giram em torno dos conceitos e parâmetros teóricos na tentativa de definir as subjetividades que caracterizam esses coletivos, diferenciando-os de outros coletivos que procuram da mesma forma terem sua alteridade reconhecida. Os estudos arqueológicos que trabalham com quilombos e comunidades quilombolas perpassam o igual desafio de investigar os processos históricos de formação dessas comunidades, na tentativa de apontar elementos de permanências e transformações, que legitimam, no presente, a esses coletivos se auto-denominarem comunidades quilombolas.

Com tal desafio as dificuldades são instigantes. Toda a documentação histórica que menciona o termo quilombo foi escrita por uma elite letrada que almejava o extermínio ou a permanente invisibilidade destes grupos. A maioria da população da época era analfabeta de escrita e leitura, às vezes muito distante tanto física como subjetivamente, cuja sociabilidade podia ser muito diversa daquelas do escritor (FUNARI & CARVALHO, 2005). A maioria dos registros escritos sobre o período da escravidão no Brasil foi destruído, incinerado sob a ordem do ilustre intelectual da elite nacional, Rui Barbosa. Além disso, durante todo o período colonial até as primeiras décadas da República, as manifestações rituais e costumes africanos eram proibidos no Brasil, pois não faziam parte do universo cultural europeu e não representavam a

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prosperidade nacional. Deste modo, assim como os objetos eram usados e percebidos de modo mutável ou ambivalente, o que sugere uma resistência escrava para promover coesão de grupo e identidade própria, os assentamentos de negros no Brasil também apresentam as mesmas propriedades.

Pesquisas dos últimos vinte anos vêm desconstruindo a imagem isolacionista dos quilombos. Historiadores e arqueólogos mostram através de pesquisas e estudos de caso específicos que a sobrevivência dos escravos fugitivos na sociedade brasileira se apoiou pela contradição do próprio sistema escravocrata, no qual, ao mesmo tempo em que esses fugitivos eram criminosos, interessavam economicamente à sociedade, fosse para complementar o abastecimento de insumos das cidades ou até mesmo para fomentar o comércio negreiro (BARBOSA, 1985; FUNARI,1991a; GOMES, 1996; REIS,1996; GUIMARÃES, 1996).

Flávio Gomes (1996) ao estudar os quilombos da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, estruturou as relações que os envolviam na teoria que chamou de “campo negro”. Segundo ele, este espaço social tecido pelos negros transcende os limites traçados pela dicotomia senhor e escravo fugido, calcada na lógica normativa da relação entre autoridade e ilegalidade. Sob um pretexto comercial ou mesmo ideológico, os antigos quilombos configurados como uma espécie de “comunidade camponesa” paralela à sociedade envolvente, embora a ela articulada, constituíram uma relação com as cidades que lhes garantiam algum acobertamento e uma convivência relativamente pacífica com a sociedade escravista (GOMES, 1996).

Entre as pesquisas arqueológicas sobre o espaço afro-brasileiro, Agostini (2002) investiga nas fazendas do município de Vassouras, no interior do Rio de Janeiro, os espaços sagrados das chamadas comunidades de escravos. Com vistas ao entendimento do processo de sociabilização de africanos e afro-brasileiros numa sociedade escravista e entre estes e uma sociedade mais abrangente, a autora aponta para a possibilidade da existência de um espaço de liminaridade na sociedade da época. Construído fundamentalmente por afro-brasileiros, estes espaços liminares teriam sido formados por pequenas comunidades intermediárias entre as comunidades das senzalas e dos quilombos, na forma de uma classe campesina miscigenada, que vive dos recursos da floresta estabelecendo relações comerciais e religiosas com os povoados do entorno. Teria, assim, constituído uma classe de antigos escravos fugidos, abandonados pelo Estado, não sendo oficialmente reconhecidos por seus mecanismos sociais. Aos poucos, essas “comunidades do mato”, como são denominados, encontravam espaços, sofriam

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pressões, institucionalizavam situações, que proporcionaram a possibilidade delas tecerem amplas redes de sociabilidade, permitindo sua permanência e presença na sociedade.

Outro estudo arqueológico sobre assentamentos quilombolas é a dissertação de João Rosa (2008) sobre os quilombos do Vale do Guaporé, ao redor do município de Vila Bela da Santíssima Trindade, no Mato Grosso. Segundo o autor:

“Parece haver uma confusão entre diferentes assuntos: 1) terras de remanescentes de quilombos e 2) indenização por serviços prestados por seus ancestrais (...) Conquanto os espaços de trabalho, dominação e poder dos escravizadores fossem a base de sua própria negação pelos trabalhos escravizados, a transformação atual naquilo que expressava o seu oposto – reafirmação de domínio sobre sua força de trabalho e de liberdade – parece não dar conta do sentido histórico que representaram as ações dessa negação. O entendimento de que esses espaços também são quilombos evidencia minimamente uma manipulação daquilo que simbolizaram as variadas resistências contra a opressão no período da escravização, ou, no pior das hipóteses, um parco domínio e até mesmo um desconhecimento do conceito em questão” (ROSA, 2008:163).

Como veremos mais pormenorizadamente durante os próximos capítulos, o modo como os indivíduos e grupos interagem com o ambiente e os vestígios arqueológicos presentes neste ambiente, manipulando, forjando, ressignificando e criando símbolos referentes a sua identidade, fornece uma importante chave para entender os aspectos sociais de formação das complexas redes de interação das comunidades quilombolas no passado e no presente. Relativizar e (re)significar o termo quilombo exige que o arqueólogo assuma o desafio de trabalhar com categorias sociais extremamente mutáveis e fluidas como artefato, identidade e território.

Neste sentido vemos a afirmação de Wagner Almeida (1998:16), quando escreve:

“(...) necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da definição

histórica strito senso e das outras definições que estão frigorificadas e funcionam como uma camisa de força. (..) a relativização desta força do

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inconsciente coletivo nos conduz ao repertório de práticas e as auto definições dos próprios agentes que vivem e construíram estas situações hoje denominadas como quilombos”.

Limitar o vetor da negação dos escravos ao espaço de trabalho, dominação e poder dos senhores negligencia o fato dos mesmos terem, em alguns casos, permanecido nas fazendas escravocratas após o abandono dos senhores, ou, em outros casos, ter ocorrido a compra das terras dos senhores falidos pelos seus próprios escravos. Do mesmo modo, achar que as ações e símbolos da resistência escrava projetadas no espaço não dão conta de processar a transformação de um espaço de repressão em um de libertação, ou seja, que os atuais quilombos não podem estar assentados no mesmo espaço das antigas fazendas escravistas é negar todas as teorias de reapropriação e ressignificação dos espaços. Fato este que, em nosso entendimento, é fundamental para entender as próprias táticas de resistência africana e afro-brasileira à escravidão. A transformação, ou até mesmo a dominação dos espaços escravizadores em espaços emancipadores faz com que estes lugares possam ser entendidos como territórios de resistência.

Para Sidney Chalhoub (1990) a participação dos próprios negros na resistência ao cativeiro e luta pela liberdade foi decisiva para o fim da escravidão. Nesse sentido, o quilombo configura-se como a expressão máxima das lutas pela desestruturação do sistema escravista, cuja formação foi a estratégia encontrada para quebrar efetivamente as relações de dependência e de dominação. Foi o momento em que o escravo, para recriar sua identidade, cria um território de liberdade.

O Projeto Fronteiras Ocidentais, desenvolvido pela empresa Zanettini Arqueologia, com subsídio da Lei de Incentivo a Cultura do Mato Grosso, coordenado pelo arqueólogo Paulo Zanettini, promoveu entre outras ações a Expedição aos Territórios Quilombolas do Vale do Guaporé, em 2007. Somados os dados arqueológicos e etnoarqueológicos levantados nas investigações iniciadas desde 1989, vislumbra-se o fato de que o núcleo urbano de Vila Bela da Santíssima Trindade foi palco de uma cidade quilombo. Segundo o Relatório Final da Fase 4, volume IV do projeto, após a transferência do poder político do estado para Cuiabá, em 1860, a cidade sofreu gradual abandono da camada branca dominante. Esse processo culminou na confirmação de uma comunidade negra na sede do município, composta por negros livres, escravos abandonados pelos senhores e escravos aquilombados que retornaram à

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cidade. É provável que a partir deste momento a cidade se transformou em um centro agregador das comunidades quilombolas que ocupavam o Vale do Guaporé (ZANETTINI, 2007:23-25).

Ainda segundo o mesmo relatório, os quilombos do Vale do Guaporé na época da colônia eram miscigenados entre negros e índios da região. Esse foi o caso do quilombo Piolho, que teria se formado desde os primeiros tempos da exploração das minas de Guaporé. Situado no norte da Vila Bela, à beira do rio Piolho, o quilombo foi batido pela primeira vez em 1770, por uma bandeira que capturou 79 negros e 30 índios. Ele foi destruído, mas logo depois reconstruído pelos membros que haviam conseguido fugir. Quando quinze anos depois nova bandeira abateu o mesmo quilombo, foram capturados 59 quilombolas dos quais existiam negros, índios e caburé5 nascidos no próprio aldeamento (ZANETTINI, 2007:21-22).

Outro estudo sobre quilombo já comentado nesse trabalho, é o Projeto Arqueologia da Serra da Barriga, em Alagoas, local onde se encontrava a maior área do Quilombo de Palmares. Com o objetivo de localizar e evidenciar aspectos da vida sócio- político-cultural de Palmares, o projeto logrou duas etapas de campo iniciais no ano de 1992 e 1993, com a coordenação dos professores Pedro Paulo Funari e Charles Orser Jr. e a participação do professor inglês Michael Rowland. Posteriormente, no ano de 1996, o assentamento foi escavado pelo norte-americano Scott Joseph Allen, mas, sem a participação dos outros três pesquisadores.

Segundo Carvalho (2005), as primeiras etapas interventivas nos sítios arqueológicos resultaram em diferentes interpretações sobre o modo como esses aquilombados foram capazes de organizar um assentamento que concentrou todo tipo de camada social excluída do regime colonial. Para Funari (1996a;b;d), o caráter original e sincrético dessa sociedade, teria se constituído dentro de um grande sistema regional, como uma cidade não isolada, mas compondo uma cultura e identidade, que interagiam com colonos e nativos. Dinamismo similar é sustentado pelas interpretações de Orser (1996), quando afirma que o quilombo estaria integrado ao “mundo moderno,

capitalista, europocêntrico, e marcado pelo colonialismo global”. Assim, Palmares

5 Segundo o Dicionário do Aurélio Online: Dicionário da Língua Portuguesa. Site:

http://www.dicionariodoaurelio.com/Cabure. “SIGNIFICADO DE CABURÈ - s.m. Bras. mestiço de

negro com índio; cafuzo./ Caipira, matuto./ Sertanejo./ Vaso de feitiço./ Sujeito feio e melancólico./ Indivíduo que só sai a noite; coruja./ Ave da família dos estrigídeos, noturna, que é uma espécie de mocho”.

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teria mantido relações estreitas com os colonos regionais, não apenas comerciais, mas também na esfera particular da vida cotidiana, pois compartilhavam de uma identidade mais próxima a dos palmarinos do que com a dos latifundiários ou as elites locais.

Por sua vez, Scott Allen (1998) decifra Palmares a partir do processo da etnogênese e da identidade multiétnica: os quilombolas teriam criado, em um ambiente natural e social desconhecido, uma nova cultura e identidade. Suas roupas, nomes, utensílios, dentre outras expressões culturais (materiais ou não), eram compostos a partir da articulação de elementos tradicionais e novos. Por fim, Michael Rowlands (1999) define Palmares como detentor de uma estrutura plural. Nessa linha argumentativa, o quilombo não seria constituído por uma sociedade multiétnica e harmoniosa. Ao contrário, se configuraria como uma sociedade muito próxima à existente no mundo colonial da época. Haveria distinções entre a elite palmarina e os outros habitantes dos quilombos; em outras palavras, distinções de classe, e diferenciações determinadas por gênero e etnia.

Assim, os estudos da cultura material e das estruturas evidenciadas forneceram indícios suficientes para afirmar (entre todas as interpretações, talvez seja a única conclusão unanime) que o assentamento de fugitivos abrigou não apenas negros, mas também índios fugidos da escravidão, mulçumanos, judeus, mulheres acusadas de bruxarias e todas as figuras sociais excluídas e perseguidas pelas autoridades do Estado (FUNARI, 1996d).

Importante salientar que os estudos arqueológicos em contextos como os de comunidades quilombolas devem atentar para os vestígios arqueológicos na formação de palimpsestos de ocupação. Como buscaremos demonstrar mais adiante, em muitos casos, faz parte da história dos territórios quilombolas as diversas ocupações, re- ocupações e abandonos territoriais através do tempo por sociedades culturalmente diferenciadas, ou ainda, de diversas maneiras pela mesma sociedade durante um determinado período, sendo que ambas as possibilidades podem resultar em conjuntos de vestígios arqueológicos diversos e dispostos espacialmente de modo muito complexo. Consequentemente, estudados enquanto palimpsestos de ocupação, os territórios quilombolas permitem pensar contextos de reutilização de estruturas e artefatos (PANJA, 2004:112).

Deste modo, o abandono da imagem dos quilombos propagada pelo senso comum, de comunidades homogêneas, formadas por escravos fugidos, assentados em locais isolados de difícil acesso e refugiados da sociedade escravocrata, vivendo na

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labuta pela subsistência - representada pela cultura material do pilão – resulta, talvez, no maior desafio para a arqueologia da resistência escrava, que trabalha com vestígios da cultura material. Por isso, trabalhos que pensem em práticas descolonizadoras e inclusivas da arqueologia em território quilombola, como forma de pensar as trajetórias históricas de formação dessas comunidades, apresentam-se relevantes no cenário contemporâneo da disciplina.