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4. AS DIVERSAS OCUPAÇÕES NO TERRITÓRIO MANDIRA

4.1 Lugares de histórias e histórias dos lugares: os sítios arqueológicos

4.1.3 O Abacateiro/ O Sambaqui/ O dilúvio

Outro lugar muito significativo na paisagem cultural do quilombo Mandira é a região localizada entre a trilha do Porto-de-fora e o rio Mandira, denominada entre eles de Abacateiro (ver mapas no Anexo 1). Contam que:

“no tempo dos escravos, existia um negro valente que não gostava do

cativeiro. Certo dia, cansado das crueldades do capataz, ele surpreendeu o feitor e bateu-lhe muito até quase matá-lo. Como repressão, o senhor da fazenda matou esse negro e mandou enterrá-lo próximo a sede da fazenda, plantando um pé de laranja em cima da cova. Dizem que essa laranjeira estava sempre carregada de frutas, mas nunca ninguém comeu nem uma laranja desse pé”.

Hoje o pé de laranja não existe mais, mas a história permanece ativa na memória dos Mandira. As interdições com relação aos frutos do pé de laranja, como ato de preservação, indica o modo de apropriação desse elemento da paisagem, significado como marco de resistência. No processo de significância desse marco, a região do Abacateiro adquire status de lugar patrimonial da resistência escrava. O lugar ficou marcado como símbolo da trajetória histórica de resistência impressa no Território Quilombola dos Mandira.

Nesse mesmo lugar encontramos também um dos mais antigos sítios arqueológicos presentes no Território: o sambaqui Mandira (UTM 22J 0796710/ 7231163). Trata-se de um sítio arqueológico

bem conhecido pelos Mandira, mas que ainda não possui estudos sistemáticos. Pelas informações coletadas, grande parte do sambaqui foi removida quando ocorreu a ampliação da Trilha do Porto-de-fora, na década de 1970. A FOSFASA (antiga empresa

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de Fomento Industrial e Fertilizantes S/A), com a intenção de lotear o local para fins comerciais ampliou a Trilha do Porto-de-fora, cortando parte do sambaqui e utilizando suas conchas como material para pavimentação.

Alguns moradores do Mandira trabalharam para a Fosfasa e participaram da obra de ampliação da trilha do Porto-de-fora. Contam que quando abriram a trilha e cortaram parte do sambaqui, encontraram mandíbulas e outros ossos humanos. Questionados sobre a procedência destes ossos, afirmam ser dos antigos moradores da região, as pessoas que habitavam esse espaço antes de ocorrer o dilúvio que ocasionou a formação do Sambaqui.

Para eles, o sambaqui é a prova do “dilúvio do Mandira”. Segundo seu Chico, este evento aconteceu realmente e está relatado em um livro histórico da região28, apresentado pelo falecido padre de Cananéia, Padre Jan Van Der Heijden, mais conhecido como Padre João 30. Seus livros se encontram em posse de sua antiga secretária, Dona Maria Aparecida Ranjel, que disse ter conhecimento do evento do dilúvio. Dona Cida (como é chamada) compara o evento com as enchentes e deslocamento de terras que castigaram o interior do estado do Rio de Janeiro em 2010, a cidade de São Luiz do Paraitinga em 2009 e o Vale do Itajaí em 2008 e 2011.

Em muitas cosmologias ameríndias e africanas encontramos mitos sobre dilúvios e inundações (SCHADEN, 1953; SILVA, 2002; LIMA, 1972). Mesquitela Lima, antropólogo nascido em Cabo Verde, realizou em 1972, quando era diretor do Museu de Angola, um estudo comparativo entre alguns mitos etiológicos sobre a origem da formação de lagos e lagoas de Angola e o texto bíblico do dilúvio. O resultado dessa pesquisa é uma completa semelhança na morfologia estrutural das narrativas apresentadas. Todas as narrativas descrevem uma situação inicial de desordem; um segundo momento onde as narrativas apresentam três eventos em ordens diversas: a catástrofe pelo dilúvio, a punição dos maus e a salvação dos bons; e por fim a transformação com o desaparecimento dos maus e a presença dos bons (LIMA, 1972).

Nosso trabalho com os Mandira não permitiu um maior aprofundamento na cosmologia desse grupo. Entretanto, é inevitável perceber como o evento de um dilúvio faz parte da história de formação do Território. A forma como explicam a presença de conchas e ossos humanos na morfologia do sambaqui – associados ao evento do dilúvio que “limpou” os antigos habitantes e alguns resíduos da superfície da região, deixando o

28 Trata-se do livro de Paulino de Almeida “Memórias Memoráveis de Cananéia”, publicado

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local livre para os Mandira ocupá-lo – apresenta semelhança surpreendente com a estrutura formal das narrativas angolanas expostas por Mesquitela Lima.

Portanto, assim como nós arqueólogos não nos surpreendemos com esse tipo de interpretação, pois quem já trabalhou em áreas com sambaqui sabe que essa explicação é popularmente difundida, Seu Francisco também não se abala com as interpretações científicas sobre o sambaqui. Ele sabe que os cientistas acham que o sambaqui foi feito pelos índios pré-históricos, utilizando conchas e terra, para ser um cemitério. Mas para ele essa interpretação não explica o “dilúvio do Mandira”. Fato real dos Mandira, contado de geração em geração e documentado em livros, o dilúvio é explicado pela presença do sambaqui na parte mais baixa do terreno, em uma área facilmente alagada em época de chuva, para onde teria escoado a água.

Segundo o mapa do levantamento topográfico realizado no Sambaqui pelo ITESP (imagem 02 no anexo) e prospecções não interventivas realizadas no sítio, verificamos que seu formato original foi alterado. Todo seu flanco norte permanece preservado, entretanto, o flanco sul está comprometido, com parte de sua estrutura removida na ocasião da ampliação da trilha, acima referida. Contudo, nota-se uma elevação de forma arredondada, em formato monticular, de aproximadamente 10m de altura, com uma base, estimada, de 46x60 metros. É composto por conchas de diferentes espécies, com aparente predomínio das ostras (Ostrea sp.), conchas de berbigão (Anomalocardia brasiliana) e de alguns gastrópodes terrestres (Megalobolimus ). Além das conchas, como vimos pelos relatos dos Mandira é possível que sepultamentos façam parte de sua constituição. Da mesma forma, louças e outros vestígios de ocupação histórica são encontrados em superfície (falaremos desses vestígios mais a diante).