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1. ARCABOUÇO TEÓRICO E METODOLÓGICO

1.5 Etnoarqueologia e Arqueologia do Presente

Estudos etnoarqueológicos em consistente diálogo com as atuais teorias científicas exigem, entre outras coisas, que sejam expostas questões políticas envolvidas aos temas abordados, provocando um posicionamento crítico e ético do pesquisador. Para isso, adotamos a perspectiva teórica da Arqueologia do Presente, descrita por Gonzalez-Ruibal (2009), para pensar no desenvolvimento do trabalho de pesquisa etnoarqueológico na comunidade quilombola do Mandira.

Como sabemos, a Etnoarqueologia surgiu com o advento da Arqueologia Processual na década de 1960, quando Binford (1968) começou a discutir de maneira sistemática o uso de dados etnográficos para os trabalhos arqueológicos. Posteriormente, os arqueólogos processualistas desenvolveram o campo de pesquisa e definiram as bases metodológicas da etnoarqueologia a partir dos pressupostos processuais. Neste sentido, a etnoarqueologia transformou-se em uma das mais importantes sub-disciplinas da Arqueologia por promover uma base de dados etnográficos arqueologicamente relevantes para desenvolver modelos interpretativos sobre os processos culturais de formação do registro arqueológico (KENT, 1987; DAVID & KRAMER, 2001; TRIGGER, 2004; POLITIS, 2004; SILVA, 2009).

Desta forma, a etnoarqueologia surge pela valorização dos estudos etnográficos com um olhar arqueológico para explicar a formação do registro arqueológico. Os arqueólogos que seguem esse campo de pesquisa procuram formular generalizações interculturais sobre a relação dos homens com o mundo material e procuram evidenciar os resultados materiais dessa relação (POLITIS, 2004).

Entretanto, no começo da década de 1980, a etnoarqueologia já ampliava seu enfoque para além da abordagem processualista. Guiada pelo pós-processualismo, a

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etnoarqueologia expandiu seu campo de interesse buscando discernir a maior complexidade das relações existentes entre os correlatos materiais e os aspectos cognitivos, sociais e ideológicos dos grupos sociais. Dentro do novo marco conceitual da arqueologia, a etnoarqueologia passou a investigar os aspectos superestruturais da cultura material nas sociedades. Desta maneira, o enfoque voltou-se para o estudo dos significados simbólicos e as dimensões não funcionais da cultura material dentro da rede de relações sociais. Assim, os estudos etnoarqueológicos tomaram um rumo hermenêutico (POLITIS, 2004:89-90).

A partir dos debates que se desenrolaram entre a Arqueologia Processual e Pós- processual, torna-se crescente a diversidade de percepções e leituras sobre os dados arqueológicos. Aumenta expressivamente o número de pesquisas etnoarqueológicas, contemplando uma diversidade de contextos sociais, com diferentes tipos de abordagens (DAVID & KRAMER, 2001). O passado começa a ser percebido a partir de uma realidade mais complexa, que incluem as percepções do próprio pesquisador e os interesses do presente (HODDER, 1982a; 1986). Isso torna cada vez mais evidente que os problemas arqueológicos não podem ser solucionados apenas por um ou outro referencial teórico (TRIGGER, 2004).

No início do século XXI, os debates arqueológicos incorporam as questões de dimensão política. Essa tendência se faz explícita principalmente através dos trabalhos etnoarqueológicos (POLITIS, 2004:91). No centro desse debate político sobre a prática descolonialista no desenvolvimento das pesquisas arqueológicas, Gonzalez-Ruibal (2003:12) define etnoarqueologia como:

“o estudo arqueológico de sociedades geralmente pré-industriais, com o objetivo de produzir uma arqueologia mais crítica e menos restringida culturalmente, de gerar ideias que favoreçam o debate arqueológico e de contribuir para o conhecimento das sociedades com as quais se trabalha, tendo em conta suas tradições, ideias e pontos de vista”.

Empenhado na sofisticação dos estudos de sociedades do presente, Gonzalez- Ruibal (2008) debate os problemas epistemológicos e éticos que os estudos etnoarqueológicos enfrentam. O primeiro refere-se à realidade de que nenhum arqueólogo se utiliza dos trabalhos etnoarqueológicos para compreender o registro arqueológico. No caso dos arqueólogos processualistas, voltados ao estudo dos padrões

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tecnológicos da cultura material, o autor sugere que isso se deve ao fato da opinião comum supor que diferentes especializações vinculadas à disciplina promovem o refinamento da abordagem arqueológica. Pela arqueometria, por exemplo, poderíamos controlar variáveis de procedimentos físico-químicos da fabricação de objetos, que minimizam a necessidade de observar os procedimentos específicos dos artesãos tradicionais.

Por outro lado, quando se trata de questões mais específicas do universo simbólico ou sociopolítico, os pós-processualistas preferem recorrer a pesquisas que revelam aspectos amplos da cosmologia dos grupos estudados. Com essa exigência, os arqueólogos buscam comparações com estudos históricos, antropológicos e etno- históricos, que apresentam uma visão holística da vida social de comunidades específicas ou aspectos específicos da vida social de diferentes grupos. Entretanto, o autor alerta para o fato de que os trabalhos dessas disciplinas apenas mencionam alguns aspectos da cultura material. A materialidade presente nos contextos das sociedades estudadas não é o ponto de partida e tão pouco o ponto central das pesquisas. O que se torna também uma das críticas dirigidas à arqueologia pós-processual: a ênfase nos sistemas sociais faz com que negligenciem os aspectos mais puramente materiais da existência humana.

Além do que, o fato das variáveis dos processos de fabricação dos objetos serem mais precisamente controlados por experiências em laboratório do que pelos trabalhos de campo está relacionado, entre outras coisas, pelas barreiras de linguagem que envolve a prática de campo etnoarqueológico. A vivência dos arqueólogos com os grupos sociais estudados implica em longos períodos de aprendizagem da comunicação local e representações simbólicas em torno do mundo material. Compreender estas representações implica no melhor entendimento das variáveis presentes no processo de fabricação dos objetos.

Esse debate nos leva a outro questionamento enfrentado pela etnoarqueologia, neste caso de caráter ético: é lícito pesquisar as sociedades tradicionais do presente apenas como objetos de estudos para melhor compreender o passado? No mundo globalizado, onde a prática democrática é valorizada, o cientista é levado a rever sua postura aristocrata de detentor do conhecimento. Como vimos, ao arqueólogo é exigido rever sua postura colonialista de detentor do conhecimento sobre o passado, construída no século XIX. Neste sentido, Gonzalez-Ruibal (2008:19) propõe que os arqueólogos

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uma fonte de analogias”. Trata-se, em certa maneira, de resgatar a dimensão

antropológica da arqueologia. Assim, ao invés de se fazer uma etnografia do passado (o que é impossível, pois etnografia envolve observação do tempo presente), o autor propõe que seja produzida uma Arqueologia do Presente. Desde uma perspectiva arqueológica, que parte do mundo material, a Arqueologia do Presente produz estudos arqueológicos do mundo contemporâneo, que nos permite compreender melhor as sociedades vivas.

Deste modo, Gonzalez-Ruibal apresenta três pontos chaves dos princípios teóricos e metodológicos da Arqueologia do Presente que, segundo ele, se diferencia da abordagem etnoarqueológica:

Primeiro, a Arqueologia do Presente não está preocupada em elaborar modelos e padrões sobre o comportamento Humano que servem como parâmetro comparativo para se pensar a formação do registro arqueológico. O objetivo final da Arqueologia do Presente não é o analógico - apesar de seus resultados poderem ser aplicados desta forma em outros trabalhos comparativos. Antes disso, procuramos entender o modo como os contatos culturais ocorrem, as mudanças sociais são conduzidas e a noção do hibridismo emerge. O arqueólogo do presente parte da consciência de que os povos que estudam são comunidades contemporâneas que não permaneceram isoladas e inalteradas no tempo. São coletividades formadas por agentes de seus destinos e, por isso, dotadas de uma noção própria de tempo histórico que envolve relações diversas e conhecimentos aplicados. A Arqueologia do Presente constrói uma pesquisa que leva em conta a complexidade de interações culturais de um povo, entre diferentes necessidades e formações políticas no presente e no passado, facilitando as relações étnicas ou criando barreiras (GONZALEZ-RUIBAL, op cit:19).

Como discutimos anteriormente, as comunidades quilombolas no presente, por mais arcaicas e exóticas que possam vir a ser interpretadas pelo senso comum – denominadas por termos como comunidades remanescentes de quilombo – não foram formadas por uma cultura insular durante mais de cem anos. Pela postura crítica da Arqueologia do Presente tomamos como parte dos objetivos da pesquisa na comunidade quilombola dos Mandira “abordar questões relacionadas com a globalização, a

violência política, as interferências estatais” (GONZALEZ-RUIBAL, op. cit:18) que

fazem parte do processo de formação do território dessa comunidade auto-denominada quilombola. Trata-se de entender, assim, as possibilidades de respostas do comportamento humano frente às exigências do modo de vida contemporâneo

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globalizado e que apontam para as mudanças e continuidades que se processam na dinâmica de formação do território quilombola dos Mandira.

O segundo ponto é que a Arqueologia do Presente “estuda potencialmente todo

o mundo atual: tanto sociedades não modernas como capitalistas. Não estabelece uma distinção rígida entre nós e os outros” (Gonzalez-Ruibal, op. cit:20). Respeitando os

diferentes discursos, procura entender os diferentes contextos sociais a partir do mundo material. Deste modo, a Arqueologia do Presente adota uma postura política à medida que procura estabelecer relações menos assimétricas com os povos com que trabalha. Evita assim, de um ponto de vista Ético, converter os povos com que trabalha em meros objetos neutros de analogias arqueológicas.

Para isso, utilizamos como método de pesquisa de campo a investigação participativa e democrática da arqueologia colaborativa. Isso implicou, primeiramente, na apresentação formal do projeto de pesquisa à comunidade e na consulta sobre sua importância e seus interesses no desenvolvimento da pesquisa. Para além disso, não buscamos o consentimento e/ou convencimento da comunidade sobre a relevância da pesquisa, mas o engajamento crítico e a interação durante todo o processo de construção do conhecimento arqueológico. Na tentativa de superar o modelo colonialista tradicional da prática arqueológica, investimos na incorporação de perspectivas culturais plurais para a investigação e interpretação do passado. Essa prática busca diversificar as vozes interpretativas sobre o passado e os significados do registro arqueológico, construindo uma educação mútua entre arqueólogos e comunidade (SILVA, 2009:208).

Por último, o terceiro ponto específico da Arqueologia do Presente que pretendemos adotar em nossa pesquisa, “não contempla uma distinção drástica entre

passado e presente: em vez de considerar um a serviço do outro, como faz a etnoarqueologia, [essa nova perspectiva científica] acredita que ambos, passado e presente, estão intrinsecamente unidos” (GONZALEZ-RUIBAL, op. cit:20).

Como já abordamos anteriormente, muitos trabalhos com comunidades não industriais demonstram que a história é acionada como parte do processo de vida dessas comunidades que fazem do passado uma referência para o presente e da paisagem uma parte da sua memória. Como vimos, podemos pensar então, em histórias construídas a partir de questões e interesses impostos pelo presente. É essa questão que trataremos agora, expondo o método de investigação adotado.

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