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3. O TERRITÓRIO QUILOMBOLA MANDIRA

3.6 Caça e agricultura

Antigamente, os Mandira costumavam manter uma cabana para a atividade de caça em lugares estratégicos, afastados dos núcleos de moradia. Nos meses de caça, um grupo de homens organizava excursões de alguns dias para praticar a caça e sociabilizar

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histórias e ensinamentos nestes locais. Um desses lugares era no Açungui, próximo ao Rio das Minas, também conhecido como Rio das Pratas ou Serra do Cadeado. Seu Chico conta que antigamente vinham parentes e amigos de Pindauva para acompanhar a excursão de caça no Açungui. Todos sabiam que a caça lá era abundante e ninguém voltava pra casa sem carne, principalmente carne de anta e porco-do-mato. Eles passavam dias acampados, secavam a carne pra trazer tudo seco. Hoje, a caça é proibida na região. Apesar disso, essa prática ainda está viva na memória dos moradores como um conhecimento ancestral significativo ao entendimento, uso e relacionamento com o território. A caça deve ser entendida como um conjunto de práticas expressivas sobre o modo de relacionamento do povo com seu espaço físico e extra-físico. Sua prática estava plenamente embasada na territorialidade própria dos Mandira.

Com exceção do porco-do-mato e do cateto, que procriam durante todo o ano, as outras caças tem o tempo e o lugar certo de caçada. Normalmente, caçava-se nos meses sem “R” (maio, junho, julho e agosto). Neste período de inverno, os animais não estão procriando e os Mandira podiam armar o mundéu, preparar as armadilhas na ceva e ficar a espreita das caças nos trepeiros. O mundéu é uma armadilha de caça para todo tipo de animal rasteiro, como paca, tatu, quati, raposa e cotia. O princípio do mundéu é uma arapuca armada para o animal, acionada pelo movimento da presa. Usa-se um tronco de madeira de cerne (pois são as mais

pesadas) ou uma laje de pedra, apoiada por um pequeno galho, a guisa da arapuca. Em baixo coloca- se uma isca e em volta constroem um cerco, com a única entrada na direção do galho de apoio. Assim, quando o animal entra no cerco para comer a isca, desloca o galho de apoio, sendo atingido pelo tronco.

Procuravam armar o mundéu nos carreiros. Os carreiros são pequenos rastros que sinalizam no solo a passagem de pequenos animais. Conforme seu formato, os Mandira sabem classificar o tipo de animal

Figura 61: Mundéu abandonado.

Figura 60: Carreador sinalizado.

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que passa no local. Já os animais maiores, como cateto, porco-do-mato e veado, deixam pegadas no solo e a dificuldade para abatê-los é maior. Normalmente faziam trepeiros perto das plantações, pois sabiam que o cateto, a paca e o veado frequentam os lugares de roças para comer feijão e folha de batata-doce e a cotia para se alimentar da mandioca. O trepeiro nada mais é do que uma escada construída entre duas árvores, onde o caçador pode ficar no topo a espreita do animal.

As cevas são pequenas clareiras na mata (sua extensão é proporcional ao tamanho do animal que se pretende caçar), onde é colocado algum alimento para servir de isca. Próximo à ceva o caçador fica de tocaia no trepeiro. Quando o animal entra na ceva pra comer a isca é abatido pela pontaria do caçador.

Outro tipo de armadilhas comum são as armadilhas de laço, que podem ser armadas de diferentes formas, apresentando técnicas e conhecimentos diversos, mas normalmente se usa o nó de correr (conforme desenho 1 da figura 61). Um tipo de laço são os armados no chão, em cima de um graveto que

aciona a armadilha; tudo é escondido com folhas secas por cima no meio do carreiro, para quando o animal passar, pisar no graveto, esticar a corda e ser agarrado na perna pelo laço. Existe também o laço de pegar gambá e paca: este é amarrado aberto na entrada de um cerco, em posição vertical, com um graveto no meio (conforme desenho 3 da figura 61). Dentro do cerco coloca a isca para atrair o animal. Quando ele entra no cerco, desloca o graveto, o laço arma e pega o bicho pelo pescoço.

Nos Mandira é muito comum as armadilhas de pegar passarinho. Uma delas era o mundéu Apique feito com uma vara enfiada em uma raiz onde coloca-se a isca e outra envergada para cima com auxílio de uma vara mais fina. Quando o passarinho ciscar na isca, movimenta a vara de apoio e é surpreendido pelo impacto da vara que estava envergada, atingindo-o com violência. Outra armadilha é a forca pra passarinho corta-se a embaúba, lasca-se uma parte da vara e abrem-se as extremidades com outra vareta. Na lasca que fica em baixo põe-se a comida e amarra-se uma corda que passa pela lasca de cima. O caçador fica na espreita. Quando o passarinho pousa para comer, ele puxa a corda e as duas lascas se juntam no pescoço do bicho.

Figura 62: Laço pra caçar gambá e paca. (Fonte: http://triboescoteira.blogspot.com.br/200

8/02/armadilha-ii-armadilha-de-lao-i-1- faa.html)

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Existe também a esparrela: em uma ripa fazem-se dois furos onde em um amarra-se a corda e em outro uma fruta de isca. Na corda faz-se um laço e coloca em uma vareta em frente a ripa, posicionada como um poleiro, onde o passarinha pousa para comer a fruta. Quando o passarinho pousar na vareta ela pende e o laço corre pegando o passarinho pela pata. Por fim, existe a arapulca convencional, conhecida de forma geral como uma gaiola piramidal, feita de ripas de madeira trançadas. A armadilha é armada com uma isca dentro da gaiola, que é levantada por um graveto apoiando um dos quatro lados. A pessoa fica a espreita segurando uma corda presa ao graveto. Quando o passarinho vai comer, o graveto é deslocado e a gaiola fecha com o animal dentro.

Antigamente os laços eram feitos com a corda fabricada do linho da folha do tucum. Com os materiais industrializados outras armadilhas foram criadas, como o Jequi e a rede. A rede é usada para capturar principalmente o tatu. Ao descobrir o buraco onde o tatu está escondido, arma-se um sistema de catapulta com a rede amarrada na ponta de um galho de árvore: escolhe-se um galho de árvore flexível o suficiente para envergar até a entrada do buraco e não quebrar; amarra-se a rede na extremidade do galho tampando-se a boca do buraco; por fim, prende-se o galho envergado com um sistema de gravetos para ser liberado quando o animal entrar na rede; ainda amarrada na ponta do galho, a rede é lançada no ar, desenhando uma meia esfera, tendo o galho como raio. Depois de bater de um lado à outro no chão e no mato ao redor, o animal fica preso na rede até ser retirado no dia seguinte.

Já o Jequía é uma armadilha que se coloca na toca do bicho feita de arame. Prende-se a boca da armadilha na toca do bicho, deixando a extremidade afunilada em pé, posicionada apenas com um graveto leve, onde prende a tampa também levantada por um fio. Quando o tatu sai da toca e entra na armadilha o graveto libera o fio que solta a tampa fechando a armadilha com o bicho dentro.

Muitas outras armadilhas devem ter sido inventadas e reinventadas por eles, compartilhando conhecimentos e práticas regionais. Desse modo, não nos foge a percepção de que a atividade de caça envolve um conjunto de regras e conhecimentos relacionados a lugares, períodos e recursos específicos que são sociabilizados. A prática do caçador revela um conjunto de saberes culturalmente estabelecido em torno de

Figura 63: Arapuca para pegar passarinhos.

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diferentes atividades, envolvendo os elementos da terra, que por essa relação do material e imaterial na territorialidade, formam os marcos no território dos Mandira.

Outra atividade que envolve o conhecimento dos recursos da terra e marca a paisagem do território Mandira é a agricultura.

Os lugares de roças antigas são denominados por eles de tiguera. Seu Bernardo se vangloria de seu tempo, quando todos trabalhavam na roça. Quando questionado onde encontrar tigueras hoje em dia, ele debocha: “faziamos roçar em

todos os lugares. Roçávamos tanto que chegava até próximo daqui [onde hoje é o atual núcleo de

moradia, distante aproximadamente quatro quilômetros do antigo núcleo]”. Ele explica que as roças eram feitas em forma de rodízio, para o descanso da terra. O sistema de plantio praticado era o da coivara realizado em cinco etapas: primeiro a limpeza do terreno com a foice e o machado para derrubar as árvores altas; depois a queima da matéria orgânica; seguido do período de enriquecimento da terra; em seguida carpia; para finalmente abrir as covas e semear. O material usado para abrir as covas é um pedaço de pau simples. O semeador carrega as sementes em uma bolsa feita de cipó timbopeva denominada saquipé. Conforme a mão direita finca o pau na terra e abre a cova, a mão esquerda saca as sementes do saquipé e lança-as no buraco, em seguida o mesmo pau que abriu torna a fechar a cova para que os pássaros não comam as sementes antes de germinarem.

Todo o processo da coivara tendia a se repetir por algumas vezes no mesmo lugar até a terra dar sinais de fraqueza, percebidos pela baixa produção de materiais orgânicos entre uma queimada e outra. Assim, seguia-se um período de pousio ou descanso desta área, que durava aproximadamente cinco a sete anos, até que ela estivesse reestabelecida para voltar a ser explorada. Durante este período outra área era utilizada.

Não existia divisão das terras ou lugares delimitados para o plantio. “A terra era

de todo mundo da família, era herança”. A roça era de quem trabalhava nela.

Dependendo da cultura que o agricultor iria trabalhar e dos lugares de plantio anteriores, os melhores lugares eram escolhidos. Nas partes mais alagadas plantavam arroz, nas partes mais secas plantavam milho, feijão, batata, cara, perto do morro e envolta das

Figura 64: Seu Chico semeando a terra.

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casas plantavam rama e ao longo do rio Mandira plantavam pé de café. Cana e banana plantavam em todos os lugares.

A produção agrícola era dividida pelos núcleos familiares em roçados de até cinco hectares dependendo do tamanho da família. Cada família organizava sua roça do tamanho que poderiam cuidar e alimentar as pessoas daquela área. As roças eram feitas pela prática do ajutório. Ajutório é o trabalho na roça com menos pessoas que o mutirão e não tem festa e dança no final, apenas o almoço ou jantar. Segundo Seu Frederico, os Mandira praticavam apenas o ajutório, talvez por que a família foi sempre grande na comunidade e não precisava convidar muitas pessoas de fora. Mas eles sempre foram aos mutirões de outras comunidades.

Hoje em dia os Mandira tendem a retomar a prática de fazer roça. Os mais velhos demonstram sinais de que não querem que esses conhecimentos se acabem com eles. Alguns moradores querem retomar as roças para ensinar seus filhos como se cultiva a terra para plantar milho, arroz, feijão, mandioca. As áreas procuradas para as novas roças são as mesmas de antes: próximas ao rio Mandira, na trilha das Áreias, onde inicialmente habitava a família Mandira. Vamos especificar a diante como se constituíram esses lugares na história do território Mandira e como esse processo influencia no modo como o território quilombola e seus elementos constitutivos, incluindo os sítios arqueológicos, são compreendidos e preservados como patrimônio cultural.

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4. AS DIVERSAS OCUPAÇÕES NO TERRITÓRIO MANDIRA