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Direitos e garantias individuais e a ordem econômica

2.3 Tratamento Jurídico Penal da Ordem Econômica

2.3.3 Direitos e garantias individuais e a ordem econômica

O desenvolvimento econômico nos moldes como exposto é pautado em regras consagradas e asseguradas na Constituição, que revela o compromisso não só com a tutela de direitos coletivos, difusos e supraindividuais, mas notadamente

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SOUSA, Susana Aires. Os crimes fiscais. Análise dogmática e reflexões sobre a legitimidade do discurso criminalizador. Coimbra Editora, 2009, p. 193.

com os ideais liberais e respectivos instrumentos, previstos no artigo 5º da Carta Magna.

Porém, o surgimento da tutela penal de interesses coletivos, difusos e supraindividuais e as próprias características da criminalidade econômica passaram a exigir medidas adaptativas daquelas categorias científicas para a realização de uma eficaz prevenção dos riscos de tais condutas criminosas e também para uma eficaz persecução penal.

Na atualidade, diante do desenvolvimento econômico, não há como deixar de observar a dicotomia existente entre as garantias constitucionais e a atuação do Estado contra condutas consideradas como delitos econômicos, seja no âmbito da dogmática penal ou no seu aspecto processual.

Pode-se dizer que as principais dificuldades enfrentadas na justificação do Direito Penal Econômico referem-se justamente às liberdades e garantias individuais, bem como suas consequências práticas.

De maneira sucinta, veja-se que as características especiais da criminalidade econômica refletem na própria construção típica, afetando de modo sensível a estrutura do Direito Penal, e também a persecução penal no âmbito do Direito Processual Penal voltado às garantias individuais do investigado ou acusado.

No aspecto estritamente dogmático, a introdução de bens jurídicos coletivos, difusos ou supraindividuais como objeto de tutela, em última análise, passou a contar com o uso de previsões penais típicas de perigo (formas de conduta perigosa), mormente de perigo abstrato, com a concentração do desvalor na ação, bem como com descrições de tipos penais abertos ou normas penais em branco.

Com efeito, diante das características da criminalidade moderna, em especial a complexidade, danosidade e a difusão das vítimas e resultados, entendeu-se ser permitido socorrer-se das técnicas de crime de perigo, concreto e abstrato, diversas da construção tradicional do Direito Penal – de resultado –, que, segundo Renato de Mello Jorge Silveira, é por “onde procurar-se-á resguardar o interesse de todo e qualquer atentado, e não só àqueles realmente danosos”.57

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SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. O Risco bancário e o direito penal econômico. Valor Econômico, 05/09/2012.

De modo geral, para os crimes de perigo no âmbito da criminalidade moderna, entende-se que não é aplicável de maneira radical o critério da comprovação danosa, como tratado pela dogmática tradicional.

Isso porque, em primeiro lugar, diante da relevância de novos bens jurídicos protegidos, a mera disposição ao risco e a probabilidade da lesão são suficientes à incriminação da conduta. Em segundo lugar, porque os danos decorrentes de novas modalidades criminosas atingiriam resultados incontroláveis, admitindo-se a utilização dos crimes de perigo para a prevenção, na medida exata da proibição.58

Conforme Paulo José da Costa Júnior, o crime de perigo se verifica sempre que

[...] a lei transfira o momento consumativo do crime da 'lesão' para aquele da 'ameaça', aperfeiçoando-se o crime no instante em que o bem tutelado encontrar-se numa condição objetiva de possível ou provável lesão. Obtém-se dessa forma a confortadora perspectiva de avançar a fronteira protetora de bens e valores, merecedores de especial tutela. De um ponto de vista político-cultural, portanto, o recurso dos crimes de perigo permite realizar conjuntamente finalidades de repressão e prevenção, sendo certo que o progresso da vida moderna está aumentado em demasia as oportunidades de perigo comum, não estando a sociedade em condições essenciais do desenvolvimento que se processa. Em tal contexto, torna-se evidente que uma técnica normativa assentada na incriminação do perigo é a mais adequada a enfrentar as ameaças multíplices trazidas de muitas partes.59

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“Há uma relação estreita entre dogmática jurídica e política criminal, num sistema de direito penal, a partir da colaboração de Claus Roxin, em 1971, o que deve manifestar-se na construção da teoria do delito e, portanto, nas categorias e tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. A política criminal, no dizer de Claus Roxin, de acordo com a situação política e constitucional tem por objeto, não a luta contra a criminalidade a qualquer preço, mas a luta contra o crime no marco de um Estado de Direito. Neste sentido, a política criminal e a dogmática jurídico penal devem determinar proveitos nas suas orientações preventivas, observando os princípios constitucionais que norteiam a intervenção do Estado, na apuração da criminalidade, em especial, na interpretação de diversos delitos de ação ou de infração do dever. Tem em vista, ainda, que a imputação objetiva é um meio político-criminal desta delimitação típica. Importante ressaltar que a política criminal, nesta visão de adequar a luta contra a criminalidade a uma ação mais preventiva do que repressiva, se une à dogmática penal para cumprir estes objetivos, e, no caso em estudo, ter por objeto o bem jurídico protegido pelo direito penal econômico, que é um bem difuso”. SILVA, Marco Antonio Marques da. Globalização e Direito Penal Econômico. In COSTA, José de Faria, SILVA, Marco Antônio Marques (coords.). Direito Penal

Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais: Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin,

2006, p. 425-426. Nos mesmos termos: “Apesar da tendência liberal do Direito Penal, ponderações existem no sentido de se ter, por orientação político-criminal no campo supra-individual, a ideia relativamente à prevenção de resultados violadores do bem jurídico. Isso vem justificar a utilização da técnica do delito obstáculo, configurada no recurso dos crimes de perigo”. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supra-individual: interesses difusos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 181.

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COSTA, Paulo José da. Direito penal ecológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 74- 75.

Nestes casos, o Direito penal constrói um perigo essencialmente normativo, que conforme explica Marco Antonio Marques da Silva, é utilizado:

[...] de modo a poder satisfazer certas exigências determinadas pelo vetor da política criminal, mas também uma noção que, não obstante sua normatividade não deixa de ter raízes na dimensão onto- antropológica que a relação de cuidado devido solidifica. É uma realidade construída a nível de Direito – e é nessa dimensão, frise- se, que o percebemos como categoria normativa – que em atitude reversa vai servir de centro gerador de normatividade, na medida em que, arrancado dele, pode-se fazer um juízo de imputação’. A tipicidade no crime de perigo, e no caso, no crime econômico, deverá levar em conta a gravidade do perigo, devendo o legislador avaliar o grau de probabilidade da lesão, a qualidade desse risco, bens jurídicos, etc. E com base nestes elementos determinar as modalidades de condutas que possibilitarão a previsão normativa em abstrato como objeto de uma norma penal.60

Apesar de a doutrina tradicional afirmar que os crimes de perigo atentam contra direitos e garantias fundamentais, em especial o princípio da danosidade, fato é que existem situações nas quais a comprovação danosa não é factual, presente e evidente, porém, na prática, o resultado devastador é de conhecimento comum, apesar de não ser mensurável.61

Justamente devido aos delitos de perigo, em especial de perigo abstrato, não exigirem o resultado lesivo (e nexo de causalidade), faz-se necessária a demonstração da prática do comportamento proibido e da sua periculosidade,62 na qualidade de potencialidade de afetação do bem jurídico.

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SILVA, Marco Antonio Marques da. Globalização e Direito Penal Econômico. In COSTA, José de Faria, SILVA, Marco Antônio Marques (coords.). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos

Fundamentais: Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 418. 61

D’URSO, Luiz Flávio Borges. Proteção Penal dos Mercados Financeiros: a tipificação do insider

trading. In COSTA, José de Faria, SILVA, Marco Antônio Marques (coords.). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais: Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p.

796.

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“Kindhäuser entende que, nos delitos de perigo abstrato, vislumbra-se uma ‘lesão sui-generis’, considerando que a lesão à segurança de um bem equivaleria à perigosidade da conduta. [...] Nesse sentido, tem-se que essas novas criminalizações, presentes nos últimos anos, e os projetos de lei para um futuro próximo têm um denominador comum: introduzem novos bens jurídicos difusos ou reforçam a tutela dos bens que, por um adequado conceito de bem jurídico, resultam muito vagos: crimes tributários, crimes na formação de balanços, na utilização de subvenções, contra o ambiente, em matéria de calculadoras eletrônicas e de estupefacientes. [...] ainda que possam ser legítimos, não são bens jurídicos no sentido tradicional. Seria, sim, objetivo de organizações políticas, sociais e econômicas”. Ibidem, p. 795.

Nestes casos, não será necessária a prova do dano ou do nexo causal, mas deve ser demonstrada essa capacidade abstrata de afetação de bens jurídicos, para que o princípio da lesividade não seja mitigado.63

De fato, em favor deste tipo de incriminação, tem-se dito que constitui um expediente inarredável se se quiser obter algum sucesso não tanto na punição, mas sim na prevenção de danos gravíssimos.

Todavia, dos direitos e garantias individuais deriva a necessidade de se evitar uma legislação simbólica e de urgência, porém sem qualquer efetividade prática preventiva.

Cumpre advertir que as novas tipificações de crimes de perigo em uma sociedade de risco devem contar com o devido cuidado em sua elaboração, com uma precisa fundamentação quanto ao desvalor da conduta para que não implique em uma quebra do princípio da intervenção mínima.

Quanto aos tipos penais abertos e normas penais em branco, caracterizam-se por serem normas que não trazem consigo a descrição completa da conduta proibida, necessitando de outra norma para complementá-la. Pode-se dizer, portanto, que tipos penais abertos e leis penais em branco são aquelas cujo fato deve ser completado por outra norma produzida por uma fonte jurídica legítima, que no caso dos crimes econômicos, acaba por ser necessário diante dos mais diversos órgãos envolvidos no controle da regularidade das atividades econômicas.

Essas técnicas também são legítimas, desde que utilizadas com cautela e desde que o legislador não abdique de descrever a base do comportamento delitivo, bem como remeta a outras instâncias apenas a complementação de partes específicas do tipo penal.

Para que não se tornem instrumentos perigosos no campo do Direito Penal, deve-se limitar o uso dessas modernas técnicas ao núcleo essencial de tutela dos bens jurídicos coletivos, difusos e supraindividuais, conforme as previsões constitucionais, de modo a não intervir desproporcionalmente nos direitos e garantias individuais.

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Nesse sentido, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), Habeas Corpus 90.779/PR, Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28HC%24%2ES CLA%2E+E+90779%2ENUME%2E%29+OU+%28HC%2EACMS%2E+ADJ2+90779%2EACMS%2 E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/c5lmobc, acesso em 27 de agosto de 2013.

É certo que, conforme observação de Marco Antonio Marques da Silva,

o direito penal, no combate e prevenção da criminalidade econômica, não pode apresentar-se como um instrumento além dos limites do controle social, evitando-se, quanto possível, a técnica legislativa de expansão do direito penal, de forma simbólica.64

Porém, como dito, ocorre que os riscos e danos da criminalidade moderna e especialmente da criminalidade empresarial não são individuais como os crimes considerados clássicos, e, por questões político-criminais e de competente tutela de reconhecidos bens jurídicos coletivos, difusos e supraindividuais, exigem a antecipação da tutela penal, por mais controvertida que seja para que se evitem os danos ou se reduzam os mesmos.

Além das questões político-criminais, é inquestionável que as limitações na órbita individual das pessoas investigadas ou acusadas devem observar os direitos constitucionais – especialmente os princípios constitucionais do processo – assegurados no âmbito de defesa contra as intervenções estatais, que são as denominadas liberdades negativas, dentre os quais o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a legalidade, o estado de inocência e impossibilidade de antecipação dos efeitos da condenação, a fundamentação das decisões, a garantia do juiz natural, a vedação das provas ilícitas, dentre outros.

Para além da necessidade de observância das referidas garantias fundamentais, é imprescindível a análise dos mandamentos constitucionais no tocante à efetiva criminalização de novas condutas atentatórias aos bens jurídicos coletivos, difusos ou supraindividuais, cabendo também aos tribunais constitucionais a interpretação e direcionamento da intervenção penal.

O fato é que em razão de todo o exposto, não pode ser recebida e dever ser rechaçada de pronto a desqualificação do Direito Penal moderno como contrário às garantias penais do Estado de Direito, conforme explica Luis Gracia Martín:

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SILVA, Marco Antonio Marques da. Globalização e Direito Penal Econômico. In COSTA, José de Faria, SILVA, Marco Antônio Marques (coords.). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos

Fundamentais – Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 433. Nestes termos,

“Quanto a própria criação de crimes de perigo abstrato, básicos e substanciais nesta rama de avaliação jurídica, é de se ter todo o cuidado. Conforme se verá, eles devem ser estritos a um mínimo indispensável, sob pena de, alem de um notada expansão penal, ter-se presente, também, uma quebra de princípios fragmentários e de ultima ratio, tão duramente alcançados pelo Direito Penal”.

As garantias não só permanecem intactas nele, mas são superiores às do Estado liberal por estar injetadas de conteúdos de justiça material. No Estado social de Direito, as garantias só podem ser derivadas e compreendidas a partir de princípios normativos, mas de base necessariamente ontológica, cheios de conteúdos materiais de igualdade e de justiça social, e em absoluto são meras formas liberais que, até agora, funcionaram materialmente só e exclusivamente a serviço da definição, classificação, disciplina e repressão do comportamento desviado de classes sociais economicamente despossuídas e, por isso, politicamente dominadas e subjugadas, e a serviço, ao mesmo tempo, da exclusão do discurso da criminalidade da quase totalidade da criminalidade material das classes sociais poderosas [...].65

Enfim, os direitos e garantias individuais do Direito Penal liberal podem e devem ser mantidas no Direito Penal moderno, porém, com uma reanálise material, dotando-lhes de conteúdo econômico e social, indo além da concepção liberal de mera contraposição formal à intervenção penal.

2.3.4 Dignidade humana, criminalidade econômica e tutela constitucional

O desenvolvimento econômico e consequentemente da criminalidade organizada gerou uma revolução com implicações na dogmática penal, no que se denominou Direito Penal Econômico.

A inclusão de novos indivíduos antes afastados das relações econômicas no sistema e a superveniência de crimes altamente danosos praticados neste âmbito retomou, sob novo aspecto, a tutela de direitos sociais como a ordem econômica e a segurança, como direitos fundamentais das pessoas.

No Estado Democrático de Direito, fundamentado na dignidade humana, a ordem econômica e segurança são dotados de caráter humanista, de notável ideal humano, não podendo ser reduzidos à noção de ordem e defesa de interesses dominantes.

Como demonstrado, os crimes econômicos e financeiros afetam a economia e a segurança, especialmente porque envolvem toda uma estrutura econômico-social que sustenta o Estado.

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GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal