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O princípio da proibição da proteção deficiente

3 A LEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO PENAL QUANTO AOS DELITOS EMPRESARIAIS

3.1 Legitimidade da prevenção nos delitos empresariais

3.1.3 O princípio da proibição da proteção deficiente

A intervenção do Direito Penal com vistas à prevenção de condutas marcadas pela periculosidade social antecipou a tutela, atribuindo maior relevância ao desvalor da ação, numa dogmática em que se quer evitar a ocorrência da lesão ou até mesmo o risco a direitos coletivos, difusos e supraindividuais.

Não é incomum, por outro lado, posicionamentos que defendem somente a atuação subsidiária ou fragmentária, como verdadeira ultima ratio do sistema de controle social.

A assertiva é verdadeira, porém, como observa Douglas Fischer,

quando utilizada sem uma mínima fundamentação racional, de forma indiscriminada e como verdadeira frase-pronta (hipótese modernamente conhecida como copiar-colar) para situações em que não poderia incidir referido princípio.91

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FRANCO, Alberto Silva. Globalização e criminalidade dos poderosos. Revista Brasileira de

Ciências Criminais. n. 32. Outubro-Dezembro. 2000. Editora Revista dos Tribunais, p. 135. 91

FISCHER, Douglas. O custo social da criminalidade econômica. In Inovações no direito penal econômico: contribuições criminológicas, político-criminais e dogmáticas. Organizador: Artur de Brito

Se se pretende fazer uma compreensão do sistema, proporcional e integral das necessidades político-criminais, bem como dos comandos dos direitos fundamentais dispostos nas constituições e assim sedimentar a democracia, é necessário verificar que além dos direitos e garantias individuais estão previstos outros direitos (coletivos, difusos e supraindividuais), que igualmente demandam deveres de proteção estatal.

Conforme explica Luciano Feldens, os deveres de proteção apresentam-se como

a versão atual da contraprestação imputada ao – e assumida pelo – Estado em decorrência de um hipotético pacto de sujeição a que aderem os homens no precípuo desiderato de resguardarem sua liberdade e segurança no convívio social.92

A constatação da existência da criminalidade organizada e a necessidade de coibir práticas tão danosas vêm a exigir a intervenção ativa do Estado na realização dos direitos coletivos, difusos e supraindividuais mediante o Direito Penal, como um dos instrumentos para resguardá-los, precisamente nas expressões da liberdade, do livre desenvolvimento e da segurança, como vetores da sociedade moderna.

A estipulação de um critério positivo, não mais negativo, de direitos quanto à criminalidade passou a ser exigência diante da nova espécie de ilícitos com novas características especialmente danosas.

Neste cenário, a teoria dos deveres de proteção tem como nova perspectiva a garantia de proteção a que o Estado deve observar, protegendo direitos fundamentais, ainda que de caráter coletivo, difuso ou supraindividual contra abusos ou ameaças injustificadas.

Com efeito, dentro dessa perspectiva, Lenio Luiz Streck afirma:

Ter-se-ia então uma espécie de dupla face de proteção dos direitos fundamentais: a proteção positiva e a proteção contra omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente do excesso do Estado, como também por deficiência na proteção. Assim, por exemplo, a inconstitucionalidade pode advir de proteção Gueiros Souza – Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2011, p. 19. Disponível em: http://www3.esmpu.gov.br/linha-editorial/outras-publicacoes,. Acesso em 15 de julho de 2013.

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FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal: garantismo, deveres de proteção, princípio da proporcionalidade, jurisprudência constitucional penal, jurisprudência dos tribunais de direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 74.

insuficiente de um direito fundamental (nas suas diversas dimensões), como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Esta (nova) forma de entender a proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como consequência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador.93

Os chamados imperativos de tutela legitimam a adoção de medidas de caráter penal para o fim maior de proteção efetiva dos direitos fundamentais, reconhecidos valorativamente na vida dos indivíduos e da sociedade em desenvolvimento.

É neste cenário que a criminalidade econômica passa a ser objeto de valoração no domínio jurídico penal, no campo da precaução, visando a conter abusos ou ameaças de lesão no exercício dos direitos e das liberdades nos exatos limites constitucionais, exigidos pela própria coexistência de interesses.

Aliás, como já afirmado, num campo no qual falta a ordenação social, certamente a criminalidade organizada tem espaço para se instalar e promover atentados de grande relevância e contrários à coletividade e ao interesse público.

Essa interpretação de concreta aplicação dos direitos fundamentais como deveres de proteção nada mais é do que a extensão de proteção estatal a todos os detentores de direitos e garantias de caráter coletivo, difuso e supraindividual.

No caso dos crimes econômicos, de fato, as limitações legislativas a direitos individuais podem implicar num natural acréscimo de restrições. Porém o propósito maior é o interesse público no desenvolvimento regular da sociedade e na manutenção ordenada do crescimento econômico, o que se cumpre também materialmente, e de forma proporcional, mediante o Direito Penal. Este processo de criminalização de condutas no âmbito econômico não é outro senão o de reconhecer

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“Com efeito, para Sarlet, na seara do direito penal (e isto vale tanto para o direito penal material, quanto para o processo penal) resulta inequívoca vinculação entre os deveres de proteção (isto é, a função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela) e a teoria da proteção dos bens jurídicos fundamentais, como elemento legitimador da intervenção do Estado nesta seara, assim como não mais se questiona seriamente, apenas para referir outro aspecto, a necessária e correlata aplicação do princípio da proporcionalidade e da interpretação conforme a Constituição”. STRECK, Lenio Luiz. O princípio da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) e o cabimento do

mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico.

Disponível em

http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=40&Itemid=2. Acesso em 04 de março de 2013.

o conteúdo material do injusto de certas condutas, além do caráter meramente formal apresentado por tais crimes.

Tem-se, por outro lado, como propósito, estabelecer uma autêntica relação de unidade funcional entre os direitos e garantias individuais e os interesses de natureza coletiva, difusa e supraindividual.

Indiretamente, com a proteção positiva dos direitos, promove-se a elevação dos critérios de imputação penal, que passam ao juízo material da danosidade social e dos limites ético-sociais.

Cabe aqui a observação de Marc Ancel quanto à organização do sistema de proteção da comunidade:

Organizar o sistema de proteção da comunidade considerando o fato criminológico, mas sem se esquecer da necessidade de estabelecer um verdadeiro sistema de direito penal, é realizar o que

denominamos de política criminal.94

Nessa reorganização do Direito Penal não significa que deve ser utilizado como prima ratio, resultando na relativização de garantias materiais e processuais que aproveitam ao investigado ou acusado.

Aliás, nunca é demais reiterar que o Direito Penal somente deve ser utilizado subsidiariamente a outras formas de intervenção estatal, proporcional à danosidade da conduta apresentada, mantendo-se assentado em bases democráticas.

Todavia, é fato que para o desenvolvimento da política criminal atual, é necessário que o Direito Penal seja compreendido e utilizado partindo-se de uma metodologia também atual e não de outra época – a do Iluminismo – sob enfoque clássico da tutela de liberdades individuais.95

A implementação de novos riscos sociais e complexas situações com efeitos coletivos não podem ser apreendidos meramente a partir de pressupostos individualistas e causais-naturalistas.

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ANCEL, Marc. A nova defesa social: um movimento de política criminal humanista. Tradução do original da 2 ed. rev. e notas por Osvaldo Melo; prefácio de Heleno Claudio Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 10.

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Existem três critérios que impõem um dever de proteção de caráter penal, avaliados de forma dinâmica (não estático), que são: a) tutela de direito fundamental dentro dos limites de coexistência dos demais direitos, b) ilicitude do ataque e dependência de proteção, c) intensidade da ameaça. FELDENS, Luciano. Direito fundamentais e direito penal: garantismo, deveres de proteção, princípio da proporcionalidade, jurisprudência constitucional penal, jurisprudência dos tribunais de direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, 77-79.

Nestes termos, a intervenção penal e processual penal é a da intervenção funcionalmente necessária para a realização do Estado Democrático de Direito, onde se verifiquem lesões ou ameaças ao próprio desenvolvimento individual e coletivo.

Num Estado de Direito material, de cariz social e democrático, os deveres de proteção correspondem modernamente à eficácia dos direitos fundamentais. Vale dizer, o Estado deve adotar medidas ativas – inclusive de caráter penal – que protejam efetivamente os direitos fundamentais.

Nos casos de inequívoca danosidade social a prioridade às liberdades individuais deve sofrer uma revisão diante também da responsabilidade social e do dever de proteção, que impõe ao legislador a criação de sistemas preventivos e sancionatórios, na medida em que a sanção seja necessária para a prevenção dessas agressões.

Há que se verificar a chamada responsabilidade comunitária dos indivíduos, que consiste “no conceito instrumental que tende não à valorização do Estado, mas à do próprio ser enquanto ente de relação, detentor de direitos e deveres perante seus pares”.96

Outrossim, não se pode esquecer três dos mais importantes instrumentos internacionais que atribuem deveres fundamentais de proteção. Primeiro, a Declaração dos Direitos do Homem e Do Cidadão, de 1789, nos seus artigos 4º e 5º, que dispõem, respectivamente:

Artigo 4º- A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei.

Artigo 5º- A Lei não proíbe senão as ações prejudiciais à sociedade. Tudo aquilo que não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.

Também a Convenção Americana de Direitos Humanos, o chamado Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, que no seu artigo 32 dispõe:

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FELDENS, Luciano. Tutela penal de interesses difusos e crimes do colarinho branco: por uma relegitimação da atuação do Ministério Público. Uma investigação à luz dos valores constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 84.

Artigo 32 - Correlação entre deveres e direitos

1. Toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade.

2. Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, em uma sociedade democrática.

De se notar por fim a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma:

Artigo 29

§1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. §2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas por lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências... da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.

A teoria dos deveres de proteção, à luz dos direitos humanos, é explanada através da doutrina das positive obligations (obrigações positivas), pela qual a efetivação dos direitos fundamentais exige uma legislação adequada, no caso referente à punição e prevenção de atos que superem o risco permitido.

Vale dizer que há também o dever jurídico, não apenas político, dos Estados signatários de Declarações e Convenções Internacionais de utilizarem positivamente dos instrumentos legislativos para coibir a violação de direitos fundamentais, incluindo os direitos coletivos, difusos e supraindividuais, que não significa necessariamente a criação de um Direito Penal simbólico, mas um Direito Penal que não compactue com uma proteção insuficiente.

Não se pode mais, nesta altura de evolução histórica dos direitos fundamentais, defender a atuação estatal somente como guardião das liberdades negativas.97

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“Um Estado de direito material guia-se, nas palavras de Figueiredo Dias, por <<considerações axiológicas de justiça na promoção e realização de todas as condições – sociais, culturais, e econômicas – de livre desenvolvimento da personalidade de cada homem>>. Merecerá esse qualificativo <<todo o Estado que simultânea e porventura paradoxalmente reconheça ao homem a liberdade de o ser e lhe queira possibilitar a liberdade para o ser>>. Assim, tal concepção terá influência e, relação aos valores protegíveis pelo Direito Penal, que poderão abarcar o domínio econômico, social e cultural. Neste sentido diz-nos ainda Figueiredo Dias que, num Estado de Direito material se dá a <<eticização de uma boa parte das providências destinadas a melhorar a condição social dos homens>> (no domínio do trabalho, saúde pública, economia, educação e cultura). [...] Em sentido convergente considera Roxin que num Estado moderno também é função do Estado

Adiante, no que diz respeito à Constituição brasileira, há certamente uma série de deveres fundamentais que implicam na manutenção de valores cunhados por esta mesma ordem constitucional, cuja implementação material justifica a atuação do Estado contra a criminalidade moderna, dentro do respeito à dignidade humana e com a preocupação de assegurar a paz social.

Como pontua Maria da Conceição Ferreira da Cunha,

parece-nos que a Constituição, desde a concepção de Estado aos princípios organizatórios, com especial incidência na delimitação de competências (separação de poderes); desde os tradicionais direitos fundamentais – direitos, liberdades e garantias pessoais – aos direitos de participação política e aos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, até a própria organização económica, assim como a unidade de sentido que de todos os seus princípios e normas resulta, deverá ter influência no Direito Penal.98

A bem da verdade, a Constituição Federal de 1988 é dirigente, o que significa dizer que contém um projeto político de Estado a ser desenvolvido, com o cumprimento de metas estabelecidas, inclusive por meio de imperativos à atividade legislativa.

Assim, dentre os objetivos a serem assegurados no Estado Democrático de Direito, além dos direitos individuais, estão o exercício dos direitos sociais, difusos e supraindividuais, tais como a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, baseando-se na ordem interna e internacional.

Portanto, na mencionada dupla perspectiva dos direitos fundamentais, não é somente a dimensão negativa de direitos subjetivos individuais exercitáveis contra a atuação arbitrária do poder estatal que deve prevalecer.

Uma efetiva proteção positiva do Estado contra intervenções de terceiros também é expressão dos direitos fundamentais e a legitimidade da intervenção penal está justamente neste dever de proteção.

assegurar, se necessário através de tutela penal, prestações públicas, no domínio da assistência social”. FERREIRA DA CUNHA, Maria da Conceição. Constituição e Crime. Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 153. “De facto, em termos de responsabilidade internacional, o que aí está em causa é uma apreciação, sobretudo política, acerca da forma e do alcance com que determinado Estado está a cumprir as obrigações internacionais que assumiu relativamente à realização progressiva dos direitos sociais, ou seja, está em causa, no fundo, uma avaliação política, por parte de instâncias internacionais, de políticas públicas estaduais relativas a esse fim”. ALEXANDRINO, José de Melo. A indivisibilidade dos direitos do homem à luz da dogmática constitucional. Disponível em: http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/793-1198.pdf. Acesso em 10 de abril de 2013.

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CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime: Uma perspectiva da Criminalização e da Descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 154.

Convém lembrar que dentro dos princípios gerais da atividade econômica, o constituinte estabeleceu limites e responsabilidades nos atos praticados contra a ordem econômica, financeira e contra a economia popular (artigo 173, parágrafos 4º e 5º, da Constituição Federal), com vistas a cumprir os ditames da justiça social (artigo 170) e garantir o bem estar e desenvolvimento tratados no preâmbulo.

Destaque-se também que, no tocante ao Sistema Financeiro Nacional, há a exigência de promover o desenvolvimento equilibrado do país e de servir aos interesses da coletividade (artigo 192, da Constituição Federal), sem descurar da ordem social (artigo 193), que tem como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

Nesta perspectiva, aos abusos econômicos, pela periculosidade social que apresentam, atentando, até mesmo, contra os mais caros objetivos e fundamentos do Estado Democrático de Direito, reserva-se a intervenção penal, como forma de tutela inclusive no campo da precaução.

Alessandro Baratta denominou essa perspectiva como política integral de proteção de direitos, da seguinte maneira:

Ampliar a perspectiva do direito penal da Constituição na perspectiva de uma política integral de proteção dos direitos significa também definir o garantismo não somente no sentido negativo como limite do sistema punitivo, ou seja, como expressão dos direitos de proteção, senão também como garantismo positivo. Isso significa a resposta às necessidades de segurança de todos os direitos, também dos direitos de prestação por parte do Estado (direitos econômicos, sociais e culturais) e não só daquela parte deles, que poderíamos denominar de

direitos de prestação de proteção, em particular contra agressões

provenientes de determinadas pessoas.99

O Direito Penal e também o Direito Processual Penal convivem, portanto, com a limitação da intervenção do Estado na esfera de liberdade individual (Estado de Direito e protetor da liberdade individual), porém, não podem deixar de combater condutas individuais abusivas e socialmente danosas, diante do seu caráter de Estado Social preservador do interesse social.

Enfim, a teoria dos deveres de proteção não exclui a aplicação das garantias antes existentes, na verdade, justifica-se a partir delas, porquanto ancorada na positividade de direitos fundamentais, em sua dupla função, positiva e negativa.

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BARATTA, Alessandro. La política Criminal y el Derecho Penal de la Constitución: Nuevas Reflexiones sobre el modelo integrado de las Ciencias Penales. Revista Brasileira de Ciências