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Constituição Federal e proteção jurídico-penal da economia

2.3 Tratamento Jurídico Penal da Ordem Econômica

2.3.1 Constituição Federal e proteção jurídico-penal da economia

Como visto, a criminalidade contemporânea caracteriza-se como uma criminalidade não convencional, apresentando-se sob as mais diversas formas de manifestação, dentre elas os delitos empresariais, o que tem exigido também novas formas de tutela penal e processual penal, notadamente contra os ataques a novos bens jurídicos coletivos, difusos ou supraindividuais, como a economia.

Conforme afirma Luis Gracia Martín:

Os Estados expandiram sua atuação para a dimensão social das relações de convivência e iniciaram assim o processo de conversão das democracias liberais, puramente formais, em verdadeiras sociedades democráticas no sentido real ou material.38

No cenário do neoliberalismo ou social-liberalismo contemporâneo, em que as empresas são detentoras de amplo poder na organização da Economia, o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, passou a considerar valores notadamente sociais na sua agenda de atuação, em especial mediante previsões constitucionais.

Em outras palavras, apesar da necessária preservação da livre-iniciativa, que estimula o desenvolvimento, o Estado passou a atuar materialmente junto à ordem econômica com o intuito de evitar as mais variadas formas de abuso do poder pelas organizações privadas (domínio de mercado, eliminação da concorrência, aumento arbitrário de lucros, etc.), de modo a garantir o interesse coletivo.

Eduardo Reale Ferrari aponta que a intervenção do Estado na Economia não é questão nova na doutrina:

analisando historicamente a evolução do Direito Penal Econômico em face das Constituições Federais ao longo do tempo, verificamos que o tema da tutela a Economia teve como fim proteger o

38

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal

patrimônio do povo em geral, ameaçado pela ganância dos que pretendiam se locupletar com a exploração das necessidades fundamentais de toda a coletividade, tentando reprimir a especulação gananciosa.39

A verificação de condutas lesivas aos interesses coletivos, cumulada com vários princípios constitucionais reitores da ordem econômica, influenciou o tratamento constitucional, estipulando inclusive a necessidade de intervenção penal “em comportamentos que buscam lesionar o sistema jurídico, com potencial de afetar núcleos vitais de mercado”.40

Luiz Regis Prado, por sua vez, verifica que no tocante à Constituição brasileira de 1988 estão consagradas as ideias de liberdade de iniciativa, as condições de consumo, de emprego e saúde, e ainda, a ideia de que o Estado possa intervir sempre que a liberdade de iniciativa não estiver sendo exercida em proveito da sociedade ou em desconformidade com os anseios sociais.41

Na mesma linha, Luciano Feldens explica que – embora seja elevada a carga de sensibilidade de que se reveste o trato do tema –, atualmente, a intervenção do Estado na economia mostra-se como uma necessidade imperiosa, ficando reduzida a discussão aos limites de extensão e profundidade dessa atuação estatal. A Constituição Federal de 1988 – assevera o autor – , no tocante à ordem econômica em sentido estrito (Título VII), admite expressamente esta intervenção, ainda que sob função regulatória ou de planejamento, estabelecida precipuamente para o fim de controle e correção dos abusos decorrentes do exercício da atividade econômica (artigo 173, caput e parágrafo 4º e 5º, e 174).42

Dessa forma. a ordem econômica prevista na Constituição Federal de 1988 é fundada na livre iniciativa, mas não de forma desregrada. Conforme o artigo 170,

39

FERRARI, Eduardo Reale. Legislação Penal Antitruste: Direito Penal Econômico e sua acepção constitucional. In COSTA, José de Faria, SILVA, Marco Antônio Marques (coord.). Direito Penal

Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais: Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin,

2006, p. 581.

40

PEREIRA, Cláudio José. O Direito Penal pós-moderno e a expansão econômica supranacional. In COSTA, José de Faria, SILVA, Marco Antônio Marques (coord.). Direito Penal Especial, Processo

Penal e Direitos Fundamentais: Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 807. 41

PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 30.

42

FELDENS, Luciano. Tutela penal de interesses difusos e crimes do colarinho branco: por uma relegitimação da atuação do Ministério Público. Uma investigação à luz dos valores constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 119-120.

caput, deve-se assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Tendo em vista o disposto na Ordem Constitucional Econômica (artigos 170 e seguintes da Constituição Federal), as propostas político-criminais decorrentes da criminalidade econômica devem se manter à luz do conteúdo axiológico da Constituição de 1988, cujo corolário é a submissão da ordem econômica aos ditames de justiça social.

Veja-se que o artigo 170, caput, da Constituição Federal, estipula como fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano, além da livre iniciativa. Não poderia ser diferente, uma vez que a ordem econômica deve fundamentar-se no capitalismo, que encontra alicerce justamente na valorização do trabalho humano, que em conjunto com os ditames de justiça social, também baliza a livre iniciativa.

Isso implica dizer que a Constituição admite a intervenção do Estado na Economia, que deve operar de forma justa, no sentido de garantir a existência digna. Fato é que, com a nova ordem constitucional de 1988, passou a existir uma interação mais forte entre Direito e Economia, principalmente no que se refere à repressão do abuso do poder econômico, a dominação de mercados, a defesa da concorrência e a obtenção de lucros ilícitos, conforme as expressas previsões acima citadas.

Valores coletivos e sociais passaram a justificar uma atuação estatal de controle, tanto para a tutela das relações sociais econômicas inerentes à organização da sociedade, quanto para a proteção do regular desenvolvimento do setor.

Em consonância com esta ideia, a legislação brasileira, seguindo tendência observada na maioria dos países que possuem arcabouço jurídico de proteção à concorrência, trouxe o regramento das relações econômicas, baseando-se tanto no aspecto preventivo da formação de estruturas concentradas de poder econômico, quanto na repressão aos abusos contra a ordem econômica:

Evidencia-se, a cada dia, que o sistema judicial não pode ser insensível ao que ocorre no sistema econômico e que o direito tem papel relevante na organização da atividade econômica. [...] Da mesma forma acentua-se a importância do novo papel do Estado como ente regulador da atividade econômica. Direito e economia, portanto, estão ligados umbilicalmente, principalmente após as reformas liberalizantes da década de 1990. O estabelecimento de um sistema legal que funcione adequadamente, que garanta os direitos de propriedade, promova a defesa da concorrência e viabilize bons níveis de investimento é condição essencial para um bom nível de crescimento econômico.43

A Constituição, como norma máxima, estabelece os contornos do exercício da atividade econômica e, compensando a livre iniciativa, constitui também um sistema de proteção contra condutas abusivas, que atingem indivíduos e toda a coletividade.

Cabe ao Estado, portanto, coordenar a atividade econômica, o que implica também na organização da legislação infraconstitucional, criação de órgãos públicos de tutela, estabelecimento de estratégias governamentais de prevenção44 e persecução de práticas ilícitas, dentre outras providências, proporcionando a concretização dos princípios previstos na Constituição.

O ideal capitalista está focado no desenvolvimento sob bases regradas, não se podendo incentivar ou deixar de punir condutas contrárias à organização social.

Neste sentido, conforme observa Cláudio José Pereira,

a preservação da ordem social e econômica passou a ser considerada como meio de produção de condições dignas de vida e afastamento das desigualdades sociais, integrando e sustentado direitos fundamentais, nos Estados Democráticos de Direito.45

43

Organização Direito Rio. Direito Econômico Regulatório, v. 1. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 153.

44

Goza de especial atenção a distinção entre prevenção “primária”, “secundária” e “terciária”. “As exigências de prevenção primária correspondem a estratégias de política cultural, econômica e social, cujo objetivo último é dotar os cidadãos [...] de capacidade social para superar de forma produtiva eventuais conflitos. [...]. A prevenção secundária conecta-se com a política legislativa penal, assim como com a ação policial, fortemente polarizada pelos interesses de prevenção geral. Programas de prevenção policial, de controle dos meios de comunicação, de ordenação urbana [...]. Das três modalidades de prevenção é a que possui o mais acentuado caráter punitivo. E os programas ‘reabilitadores’, ‘ressocializadores’, nos quais se concretiza – etiológica, cronológica e espacialmente distante das raízes últimas do problema criminal –, operam no próprio âmbito penitenciário”. GARCÍA- PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos : introdução às bases criminológicas da Lei n.º 9.099/95, lei dos juizados especiais criminais. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 399 e seguintes.

45

PEREIRA, Cláudio José. O Direito Penal pós-moderno e a expansão econômica supranacional. In COSTA, José de Faria, SILVA, Marco Antônio Marques (coord.). Direito Penal Especial, Processo

A repressão e prevenção podem, assim, ultimar-se pela proteção jurídico- penal, cabendo analisar inicialmente a teoria do bem jurídico para fins de tutela da ordem econômica e os limites de intervenção.