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A integralidade do humano na antropologia bíblica

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CAPÍTULO II: A CONCEPÇÃO DE HUMANO INTEGRADO

2.1 A integralidade do humano na antropologia bíblica

Esta parte da nossa pesquisa abordará sobre a integralidade do humano na antropologia bíblica. De acordo com a Bíblia, a concepção de ser humano é uma unidade e de forma alguma essa maneira de pensar entra em contradições com o pensamento cristão. A maneira de olhar para o ser humano separadamente ou dualisticamente é oriunda da filosofia helênica e não dialoga com a maneira que as Escrituras apresentam. De forma geral, a Bíblia apresenta uma visão integrada, narrativa e proveniente de várias culturas. Os semitas e outros povos primitivos olhavam a realidade de maneira sintética. Embora reconheça o ser humano de várias dimensões, a concepção será sempre unitária do ser humano e não uma visão

48 dualista (GARCIA RUBIO, 1989, p. 259). Para o autor, a maneira que o Antigo Testamento narra sobre os temas alma, espírito não se trata de uma divisão e, sim, uma unidade. Por exemplo, a palavra nefesh tem sido traduzida por muito estudiosos como “alma”. Só que essa maneira de tradução no mundo grego não tem o mesmo significado que nefesh. Com isso, muitas leituras dicotômicas da Bíblia originam-se em traduções inexatas. De maneira mais detalhada mostraremos esta percepção integrada de ser humano nos próximos capítulos.

Wolff, em seu estudo sobre Antropologia do Antigo Testamento, a palavra nefesh designa a “garganta”, necessária para alimentação e a respiração. Também pode significar o pescoço, a parte exterior da garganta. Mas, os dois significados vão traduzir o ser humano como inteiro e não partes distintas uma das outras. Wolff explica que nefesh pode ser traduzido por “alma” e pode ser traduzido, também, por sentimentos sempre ligados ao emocional. Com isso entende o significado por “vida” (traduzido no Antigo Testamento), mas, vida no sentido concreto, o ser humano se tornando um ser vivente. Trata-se do ser humano inteiro como um ser à procura de sua sobrevivência. Assim, conclui-se que nefesh e “alma” não são termos que possam ser intercambiados (GARCIA RUBIO, 1989, p. 260). Para Wolff, ainda existe uma dificuldade da tradução do termo nefesh para a filosofia helênica.

Via de regra, as versões tradicionais da Bíblia traduzem por “alma” uma palavra fundamental da antropologia veterotestamentária: nefesh. Como no francês, ame, e no inglês, soul, elas lançam mão da tradução mais frequente de, por yuch (psyché) na Bíblia grega e na latina aparece 755 vezes no Antigo Testamento; a septuaginta traduz seiscentas vezes por yuch. Esta diferença estatística mostra que a significação diversa da palavra, em vários lugares, já chamou a atenção dos antigos. Hoje, é possível concluir que em muitas poucas passagens a tradução dessas palavras por “alma” corresponde ao significado de nefesh (WOLFF, 2007, p. 33).

Em sua riqueza de estudos no campo da linguística, Wolff comenta que no termo hebraico para nefesh há vários significados, por exemplo: garganta, no qual o autor designa a “vida” do ser humano, fome, sede e respiração (WOLFF, 2007, p. 36). Para o autor, o pescoço traduz o ser humano como necessitado em busca da sua sobrevivência, enquanto garganta diz respeito à vida e sua necessidade. O desejo do ser humano é expresso para dignar o anseio em conquistar as coisas (WOLFF, 2007, p. 43-44). A alma é semelhante ao desejo e sede das emoções (WOLFF, 2007, p. 44). Outro termo utilizado por Wolff é basar. Esta palavra hebraica pode significar carne de animais ou do ser humano e, também, pode significar o ser humano em sua integralidade (WOLFF, 2007, p. 57). Para Wolff, todos esses apontamentos indicam o ser humano integral, ou seja, para sua unidade e não para o dualismo

49 antropológico da filosofia helênica. A visão unitária de ser humano no Antigo Testamento manifesta-se de maneira evidente, diferentemente das representações dualistas antropológicas. Seus conceitos apresentam-se de tal maneira que as realidades são sempre concretas e representativas. Por isso, não cabe buscar uma explicação bíblica para ser humano, “corpo”, “alma”. Garcia Rubio mostra que decerto não se encontra na Sagrada Escritura, uma elaboração sistemática sobre a visão unitária ou dualista de ser humano. As indicações bíblicas a respeito de ser humano são expressas com a utilização de instrumentos narrativos e conceituais provenientes de várias culturas. É verdade que, globalmente considerada, a Sagrada Escritura pressupõe uma visão unitária de ser humano (GARCIA RUBIO, 1989, p. 259). A teologia do Antigo Testamento apresenta a criação e formação do ser humano: por um lado, parte do mundo material, enquanto, por outro, transcende a realidade material e animal precisamente porque é criado à Imagem e Semelhança de Deus. “O fato de pertencer ao mundo material não é um mal para o ser humano, mas simplesmente a sua condição natural” (GARCIA RUBIO, 1989, p. 275). O ser humano pertence ao mundo físico, mas, não se define só pelo espírito (espiritualismo) e nem só pela matéria (materialismo). O ser humano é espírito e matéria. Portanto, há uma unidade do ser humano junto às coisas criadas, porém, esta dualidade real não deve levar a uma ruptura-separação entre espírito e matéria. Não deve ser colocada numa tensão de dúvidas que na tradição cristã, aculturada no mundo helênico, a dualidade foi muito bem ressaltada. Pela tradição judaico-cristã há unidade fundamental do ser humano. Na tradição helênica, o perigo de separar dualisticamente espírito e matéria. Para Schmidt:

Tendências dualistas parecem ter sido intensificadas em Israel através da influência da religião persa. Esta explica o mundo a partir do confronto entre o bem e o mal, mais tarde representado pelo conflito entre Ormazd ou Ahura Mazda, o criador do bem, e o espírito do mal, Ahriman. Os israelitas da época pós-exílica foram súditos persas, tanto na pátria palestinense quanto no estrangeiro, durante dois séculos, de Ciro até Alexandre, o Grande. Assim, contados com a religião iraniana são bem possíveis. Conceitos surgidos do período tardio do AT, como reino de Deus, ressurreição, juízo mundial e angelogia, são familiares à religião persa. Porém, é difícil definir a idade precisa das concepções iranianas. Também não há como demonstrar, de modo inequívoco, que o ideário do AT dependa delas. Em todo caso, há certas semelhanças, talvez estímulos, e talvez também a adoção de determinados motivos isolados (SCHMIDT, 2004, p. 454).

50 (SCHMIDT, 2004, p.460). Já a antropologia helenista ganha força nas comunidades cristãs, influenciando com a sua mensagem dualista.

A visão bíblica, presente hoje nos movimentos evangélicos, permanece fiel a tradição filosófica platônica e neoplatônica: a separação do corpo com as coisas criadas. A matéria e o espírito e alma têm criado barreiras na unidade que o Antigo e o Novo Testamentos apontam. Verifica-se que no Antigo Testamento, a palavra nefesh, de certa maneira, tem sido traduzida normalmente por “alma”. Portanto, o termo “alma” no mundo ocidental, a começar pela filosofia helênica raramente significa a mesma coisa que nefesh. Muitas leituras dualistas da Sagrada Escritura originam-se em tradução inexatas (GARCIA RUBIO, 1989, p. 259-260). A maneira que o Antigo Testamento descreve o ser humano é no sentido integrado e não dualista, como já mencionado em capítulos anteriores neste estudo. É possível entender que os dualismos são trazidos por culturas gregas, semitas e egípcias. Schmidt comenta:

A ideia de uma vida após a morte, na época do AT, não era impossível. A religião egípcia era dominada fortemente pela esperança de um julgamento no além, e há um extenso acervo de ditos destinados ao morto (textos de pirâmides e túmulos, o Livro dos Mortos). Enquanto os egípcios esperavam uma participação do rei e, mais tarde, de cada pessoa no destino de Osíris, não se pode comprovar, na Mesopotâmia nem na Síria e Palestina, uma fé na ressurreição, mesmo que não faltem concepções sobre o além Gilgamesch, Inana-Ishtar, Tamuz. O retorno do Deus morto por exemplo de Baal à terra não foi equiparada ao destino da pessoa. Se de fato houve influência estrangeira no surgimento da esperança na ressurreição dos mortos no AT tardio, então elas devem ser procuradas no zoroastrismo (SCHMIDT, 2004, p. 457).

De acordo com Ildo Bohn Gass, os povos persas foram os primeiros a elaborar uma espiritualidade dualista (558-330 a.C.). Eles adotaram a doutrina de Zoroastro, versão grega de Zaratustra, que era do Irã no século 12 a.C. Seu discurso estava centrado na eterna guerra cósmica entre o bem e o mal (Ahura Mazda), de um lado, e, de outro o mal (Angra Mayniu). Neste duelo o bem seria vitorioso e o mal condenado juntamente com Angra Mayniu (BOHN, 2013, p. 27). Os persas acreditavam que o mal era vindo de forças externas como as desgraças, doenças, epidemias e demônios, da mesma forma como fariam os israelitas mais tarde. Percebe-se que outra cultura foi determinante para uma visão dualista de ser humano. Além disso, interpretações errôneas se estenderam em toda a história do cristianismo, com impactos nos movimentos pentecostais e neopentecostais. Schmidt salienta:

51 O AT compreende o ser humano “holisticamente” e não o separa entre corpo mortal e alma imortal, ou entre corpo e espírito. Conceitos antropológicos, como “carne” ou “corpo”, “coração” ou “alma”, significam menos uma parte do ser humano do que um aspecto ou uma dimensão do ser humano significam, em certo sentido, o próprio ser humano (Sl42): “Por que estás tão intranquila, alma minha” ou seja “meu eu”? (SCHMIDT, 2004, p. 485).

O Antigo Testamento não separa o ser humano em partes, mas, juntas, formam uma unidade. A visão integradora do ser humano tem sua origem no mundo cultural semita, que, como já sabemos, é o mundo no qual a Bíblia foi sendo elaborada e escrita. Desta forma, entendemos que o ser humano é um ser integral. Wolff afirma:

Para o Antigo Testamento, muito mais importante do que a "cabeça" é a "face" do ser humano que sempre se denomina com um plural, lembrando o múltiplo voltar-se do ser humano para seu interlocutor; o que acontece se reflete nos traços do rosto (Gn 4.5); apenas pela expressão do rosto se pode falar ao parceiro (Gn 31.2,5). Na "face", que constitui os "atos de voltar-se" do ser humano, estão reunidos seus órgãos de comunicação, entre os quais os olhos, a boca e os ouvidos são os principais. Não estaremos justamente aqui, entre todos os órgãos e membros, nos aproximando daquilo que constitui a essência do ser humano e o distingue de todas as outras criaturas? (WOLFF, 2007, p. 131).

Para Wolff, o ser humano não é uma parte distinta uma da outra, mas, entrelaçada entre membros, entendendo o ser como um todo. O que ele propõe, no seu estudo de Antropologia no Antigo Testamento é: “a partir do campo da linguística, sublinha a riqueza de significações do termo nefesh: primeiramente, designa a “garganta” necessária para a ingestão de alimentos e para a respiração”. Desta maneira pode também significar o “pescoço” e a parte exterior da garganta. “Nestas duas significações, todavia, estaria presente o ser humano inteiro, precisamente como ameaçado e necessitado de auxílio, de tal maneira que o desejo” (GARCIA RUBIO, p. 260), insatisfeito ou anelo do ser humano pode passar a ocupar o primeiro da significação de nefesh. Wolff explica que nefesh pode ser entendido muitas vezes por “alma” ou sentimento ou sede dos desejos ou no âmbito emocional. Assim, entendemos a passagem do significado de “vida” presente do Antigo Testamento. Nesse sentido, a palavra vida em sua concretude no relacionamento do ser humano com o cosmo criado. “Rûah, outro termo básico na antropologia do Antigo Testamento, apresenta igualmente pluralidade de significações: primeiramente é usado para designar o vento, normalmente vento forte a serviço do desígnio. Garcia Rubio comenta:

52 Quando aplicado ao ser humano o termo hebraico rûah significa “respiração”, a força vital do homem; com bastante frequência é referido a Iahweh para significar a sua força criadora que, comunica ao homem, confere-lhe dons e talentos diversos, concedidos para que este possa superar a importância e a fraqueza própria do basar, realizando, assim, tarefas especiais a serviço do desígnio salvífico de Iahweh; com arûah descrevem-se também sentimentos, disposições e estado do coração humano e, mais especificamente, a força e a energia da vontade, em conexão com a ação e a força que vêm de Iahweh (GARCIA RUBIO, 1989, p. 260-261).

Notamos que arûah não diz respeito de uma parte do ser humano, mas o ser humano inteiro com toda a sua dimensão integradora e sua relação de abertura a Iahweh. Outro termo do Antigo Testamento é a palavra leb ou lebab, traduzida em português por coração. “Também aqui a tradução não parece corresponder à riqueza de significados do termo hebraico. Certamente designa o órgão central do corpo humano que comanda a mobilidade de todos os membros” (GARCIA RUBIO, 1989, p. 261). Para Zilles “Leb ou coração, pois, segundo o pensamento semítico, o coração é a sede da razão. Com o termo leb designa-se, pois, muito mais intelecção, conhecimento e capacidade de discernimento” (ZILLES, 2011, p. 124). E por muitas vezes quer dizer estado de espírito como alegria e tristeza. Quando o hebreu fala de corporeidade está falando de ser humano em um todo, não uma parte separada do corpo. É possível concluir que o ser humano, de todas as terminologias usadas até aqui, corresponde sempre à unidade do ser humano no Antigo Testamento. Para Emil Brunner:

É um fato bem conhecido, pelo menos no interior da Igreja Cristã, e entre os leitores da Bíblia, que a Bíblia entende o homem como um todo, como uma entidade que consiste de “alma” ou “espírito” e “corpo”, A visão bíblica não dá azo para a noção dualista que pensa que o “espírito” ou “alma” seja de origem divina e divina em caráter, o corpo, por outro lado é algo abaixo e inferior. Mas é menos conhecido porque a Bíblia sustenta esta visão. De onde vem esta dignidade dada ao corpo como algo criado por, e, portanto desejado por Deus? Já sugerimos a resposta a esta importante questão, quando dissemos quão difícil é para o homem compreender-se a si mesmo como uma “criatura”. O homem que não conhece o Criador está sempre tentado ou negar Deus, ou considerar sua natureza física como algo que realmente não pertence a ele, a fim de estar apto para manter a divindade de sua “verdadeira” natureza espiritual (BRUNNER, 2006, p. 93-94)

53 glorificar o criador, por isso o antagônico. A mais elevada autointerlocução de Deus é a encarnação da Palavra num homem de carne e sangue. Nesse sentido, a relação do corpo e alma é determinada na pessoa humana, isso é Cristo. Para Tillich o centro do sistema por sua vez, revela uma forte concentração cristológica, nem sempre reconhecida na pesquisa. A verdade da qual ele fala tem um duplo acento. Primeiro, trata-se de uma verdade identificada com uma pessoa, com a vida e desta maneira ele não fala de uma alma e espírito, mas, de uma pessoa em toda a sua concretude. “A vida é a verdade. Deus é a verdade, o Deus vivo e pessoal” (MUELLER, 2005, p.43). Segundo, e em consequência direta do primeiro, a verdade é sempre uma verdade histórica: o aparecimento, no mundo e na história, do novo ser em Jesus como o Cristo. Para o teólogo Garcia Rubio não se pode reduzir o ser humano a um ser dualista de corpo e espírito, porque para a fé cristã, existiu primeiro o ser humano terrestre, fraco e pecador, o ser humano “psíquico”. “A afirmação é clara: o ser humano não é divino, o ser humano é criatura, se bem que crido à Imagem de Deus. É importante ressaltar esta afirmação bíblica” (GARCIA RUBIO, 2012, p. 138). Nesse sentido, o ser humano não é divino, mas terrestre e integral se relacionando com toda a natureza. É possível concluir que na percepção bíblica, o corpo é o ser humano. Desta maneira cada um é seu corpo. José Comblin comenta que “não há distinção entre espírito e corpo. O espírito está no corpo e o corpo é animado pelo espírito. Tudo é corpo, por isso a esperança cristã é a vitória sobre a morte corporal pela ressurreição dos corpos” (SOTER, 2005, p. 18-19).

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