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De uma espiritualidade etérea para uma espiritualidade encarnada

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CAPÍTULO III: NO CAMINHO DA SUPERAÇÃO DO DUALISMO CORPO E ALMA

3.1 De uma espiritualidade etérea para uma espiritualidade encarnada

Como já referido, o corpo, dentro da visão bíblico-teológica, não é uma repartição como classificado pela filosofia helênica, mas, é uma unidade fundamental no ser humano. A Bíblia não conhece o dualismo corpo e alma, ainda que existam textos e expressões que dão margem para as interpretações dualistas. Esse modelo dualista entrou no discurso teológico sob a influência da filosofia grega. Assim, o ser humano é um ser multidimensional; tudo o que ocorre com ele inclui todas as suas dimensões. Deste modo, o discurso teológico-pastoral atual, para ser coerente com tais perspectivas bíblicas, deve superar esse dualismo platônico tendo em vista uma antropologia integrada do ser humano. As contribuições de Garcia Rubio, mencionadas em nosso trabalho, ajudarão a nossa pesquisa no sentido de oferecer à Comunidade Cristã Paz e Vida, a partir de sua própria vivência, com todas as ambiguidades nela existentes, uma percepção unitária do ser humano. É possível identificar que detrás da expressão corpo e alma, está a unidade do ser humano em toda a sua dimensão. Não se pretende afirmar um dualismo, mas, uma dimensão integrada do Ser, com toda a sua corporeidade. “É o homem todo inteiro, porque a corporeidade faz parte da própria subjetividade humana: na realidade eu jamais encontro em mim um espírito puro e concreto, mas sempre, em todo o lugar e em cada momento um espírito encarnado” (BOFF, 1972, p. 84). Para a teologia da Comunidade Cristã Paz e Vida percebe-se certa desvalorização do corpo, mas, ao mesmo tempo, contraditoriamente uma valorização dele por meio das curas e danças que a comunidade manifesta em seus cultos. Já comentamos isso no primeiro capítulo da nossa pesquisa, mas reforçaremos tal visão. De acordo com Pagliarin, líder desta denominação religiosa, "O pecado faz separação entre o homem e o seu Deus (Gn 3; Is 59:2; Lc 5:8; I Jo 2:28), e que como salário do pecado é a morte, o homem pecador está morto espiritualmente (Rm 5:12,21; 6:23) e que a exclusão definitiva e eterna do pecador da presença de Deus é a segunda morte (Mt 25:41; II Ts 1:9; Ap 20:11-15).”17

Pagliarin ainda comenta que é a “escolha que os vivos fazem aqui e agora, e o modo como vivem, é que vai determinar em que lugar eles esperarão o Juízo.” 18 Para a teologia da Comunidade Cristã paz e Vida tudo dependerá de que maneira nós vivemos a vida aqui na terra. Se negarmos as nossas vontades pecaminosas – e andarmos no caminho do espírito – vamos para o mundo eterno, onde não vai haver choro nem ranger de dentes. “O

17 Disponível em: < http://pazevida.org.br/em-que-cremos/14-6-o-homem-seu-estado-na-criacao-e-seu-estado- atual.html >. Acesso em: 13 nov. 2016.

18 Disponível em: < http://www.pazevida.org.br/estudos/4825-a-morte-do-rico-e-do-mendigo.html >. Acesso em: 13 nov. 2016.

75 Hades é o lugar de tormento para onde vão os ímpios e todos os que esquecem de Deus: Os ímpios irão para o Seol, sim, todas as nações que se esquecem de Deus” (Sl 9:17). 19 Observe um contraponto a esta visão. Segundo o teólogo Garcia Rubio, “o homem inteiro é criado por um Deus bom e o homem inteiro participa da salvação e da glorificação. A salvação cristã não permite a ruptura – oposição entre alma e corpo que os dualistas radicais propugnam” (GARCIA RUBIO, 1989, p. 275- 276). É possível afirmar que o ser humano não é uma parte e, sim, uma integração. Quando olhamos para o corpo não enxergamos o espírito e alma, mas, toda a sua extensão em sua corporeidade. O ser humano se realiza não apenas em uma dimensão, porém, em seu conjunto, em que é todo corpo e totalmente alma. Corpo e espírito não são dois componentes no ser humano, mas, dois primórdios que constituem um ser humano inteiro. O corpo é a realidade do espírito presente e se exprimindo; o espírito é semelhante à corporeidade dando-se conta de si mesmo.

Para Leonardo Boff, por exemplo, o magistério da Igreja Católica Romana sempre defendeu a integralidade do ser humano em suas dimensões, “no quinto concílio do Latrão (1513) contra o filósofo neo-aristotélico Pompanazzi (1464-1525) que afirmava ser o espírito não algo de pessoal, mas de universal, em comum, reafirmou-se que o espírito singular e individual” (BOFF, 1972, p. 91). Assim, essas dimensões do ser humano se encontram juntas e não divididas.

De acordo com Garcia Rubio, a distorção da vida cristã continua atual e presente nos discursos religiosos, “quando, no intuito de reagir contra o empobrecimento das acentuações unilaterais anteriormente indicadas, pessoas ou movimentos na Igreja passam a valorizar” (GARCIARUBIO, 2004, p. 31). As visões espiritualistas e platônicas ainda têm traços contundentes em movimentos cristãos, mais do que uma visão unitária de ser humano. Como vimos, as visões dicotômicas a respeito do ser humano, na Comunidade Cristã Paz e Vida, se encontram presentes no discurso de seu líder. Para Pagliarin, temos uma alma imortal e incorruptível, devemos entregá-la a Deus porque Ele nos emprestou e um dia teremos que devolvê-la. Não podemos agir com liberdade, mas, buscar sempre uma espiritualidade etérea para nos orientar e levar a nossa “alma” ao paraíso eterno.

Ao contrário disso, como Garcia Rubio afirma: “A pessoa humana é corpórea, assim, o corpo humano não deve ser considerado um mero instrumento da alma, como queria o platonismo. Também não é pura exterioridade, como afirmava o dualismo cartesiano” (GARCIA RUBIO, 1989, p. 280). Com isso, entendemos que o pensamento dualista a

19 Disponível em: < http://www.pazevida.org.br/estudos/4825-a-morte-do-rico-e-do-mendigo.html >. Acesso em: 13 nov. 2016.

76 respeito do ser humano não condiz com a antropologia judaico-cristã, que se caracteriza, como já mencionado, pelo ser humano em sua dimensão integradora e relacional com o mundo criado. Segundo Garcia Rubio: “Esta é a grandeza do ser humano e também o difícil desafio de viver as relações entre estas dimensões de maneira inclusiva e não exclusiva sem negar as diferenças e as tensões entre as mesmas” (GARCIARUBIO, 2004, p. 33). Não se pode desprezar a corporeidade do ser humano como o helenismo; não levou em conta a dimensão corpórea e integradora do ser humano criado a Imagem e Semelhança de Deus. Garcia Rubio destaca:

A mesma experiência pré-filosófica que percebe a unidade básica da pessoa humana, de tal maneira que o corpo é vivido como uma realidade própria da pessoa, percebe igualmente que esta não se identifica com aquele. Existe na pessoa humana uma dimensão que excede todas as possibilidades e virtualidades do corpo. O termo “alma” é utilizado tradicionalmente para designar esta dimensão, entendida como o princípio estruturante que enforma segundo a terminologia aristotélica o corpo humano. É este princípio que faz com que o corpo humano seja diferente de qualquer outro organismo vivo. É a dimensão da pessoa humana que a torna capaz de um conhecer de maneira ilimitada percebendo o sentido da realidade, capaz de um conhecimento reflexo, de auto possuir-se com liberdade e responsabilidade, de abrir aos outros seres pessoais especialmente a Deus no diálogo e no amor bem como ao mundo da natureza para transformá-lo em mundo humano pela cultura genuína (GARCIA RUBIO, 1989, p. 281).

Para a antropologia da Comunidade Cristã Paz e Vida essa divisão é feita pela aceitação que o ser humano faz de Deus. Ou seja, pelo arrependimento a pessoa se torna filho/filha e deixa de ser excluída, pertencendo à família celestial. Percebe-se um dualismo no qual o ser humano, em toda a sua concretude, passa a ser aceito como filho de Deus por aceitar Jesus:

Antes de se converter, o homem é apenas uma criatura para Deus. Depois que o ser humano aceita Jesus, pela graça do novo nascimento ele passa a ser Filho de Deus: “Mas a todos quantos o receberem, deu-lhes o poder de serem feitos Filhos de Deus; a saber: aos que creem no seu nome” (Jo 1:12).20

No discurso religioso da referida igreja há um dualismo presente no qual o corpo, frágil e pecador, torna-se separado do que é imortal; somente passa a ser aceito como

20 Disponível em: < http://www.pazevida.org.br/em-que-cremos/21-13-o-novo-nascimento--a-nova-vida--a- regeneracao.html >. Acesso em: 13 nov. 2016.

77 filho/filha de Deus por meio de uma mudança. Isso é o arrependimento no qual o ser humano deixa sua vida de pecados para se tornar uma nova criatura em Deus, aceito por meio da obediência. A superação desse dualismo só é real a partir da vivência integrada do ser humano. Desta forma, na experiência concreta da unidade deve ser desenvolvida uma articulação ou relação de integração-inclusão entre traço ou dimensões concretas vividas, em sua relação uns com os outros e com a realidade histórica e com o cosmo. O ser humano, em toda a sua concretude, está inserido ao corpóreo mudando, porém, isso não invalida a sua existência como filho de Deus, independentemente da situação religiosa, mas interage com toda a sua corporeidade, corpo e alma não como um dualismo, mas partes presentes em toda a criação. Desse modo, não deve haver uma separação entre o espiritual e o carnal, apenas uma transformação de condutas éticas. Garcia Rubio explica:

Este dualismo na vontade do homem é focalizado insistentemente e com toda clareza pela Sagrada Escritura, tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento. O que a visão cristã de homem não aceita é a passagem deste dualismo existente na vontade humana para um dualismo metafísico, seja lá qual for (GARCIA RUBIO, 1989, p. 85).

Apesar desse dualismo antropológico da Comunidade Cristã Paz e Vida há uma aceitação – ou uma aparente aproximação – de uma visão em que o corpo se faz presente se relacionando com outros. Podemos perceber isso no discurso da referida igreja: “O ministério não cobra por nada: distribui livros gratuitamente, bolsas de estudo em cursos gratuitos de teologia, mensagens em CD e DVD. Também leva este mesmo curso gratuito de teologia para dentro dos presídios do Brasil, inclusive o Complexo de Gericinó (Bangu/RJ).” 21Dessa forma observamos um cuidado para com o corpo e as questões sociais. Pagliarin comenta: “não precisa morrer para gozar vida eterna, porque esta vida passa a ser desfrutada aqui e agora, graças ao sacrifício feito por Cristo (Jo 5:24; 6:47), sendo, a vida após a morte, uma consequência lógica e justa de uma sábia escolha tomada durante esta vida, em favor da vida.” 22 Esta ênfase no "aqui-e-agora", embora não seja majoritária no pensamento de Pagliarin e na Comunidade Cristã Paz e Vida, pode representar um caminho de superação do dualismo.

O ser humano é vivido em sua realidade própria. Por ser um indivíduo corporal

21 Disponível em: <http://www.estjp.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=99:ultimas-vagas- &catid=42:novidadesindex> . Acesso em: 02 abr.2017.

22 Disponível em: < http://www.pazevida.org.br/em-que-cremos/21-13-o-novo-nascimento--a-nova-vida--a- regeneracao.html >. Acesso em: 13 out.2016.

78 se relaciona com o universo em sua volta e com as pessoas, contradizendo o pensamento da visão antropológica da Comunidade Cristã Paz e Vida: que o invés da união e do diálogo faz uma separação do salvo e do excluído do bem e do mal, típico do dualismo helênico.

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