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ABORDAGENS DA INTELIGÊNCIA E SUAS IMPLICAÇÕES NA AVALIAÇÃO DO FUNCIONAMENTO

1.1. Abordagem Psicométrica

1.1.2. A inteligência como aptidões diferenciadas

Em alternativa à abordagem eminentemente singular dominante na Europa, alguns psicólogos americanos apresentam a inteligência numa perspetiva pluralista, propondo a existência de várias aptidões diferenciadas entre si, cada uma das quais podendo entrar com pesos diferentes (saturação fatorial) em vários testes. Também aqui, temos autores que, defendendo várias aptidões não as

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interligam, por exemplo, em função de influências recíprocas; e, temos autores que, defendendo várias aptidões cognitivas, não defendem a sua total autonomia, antes as sequencializam numa cadeia hierárquica de interações e reciprocidades (Almeida, 2002; Almeida et al., 2009).

1.1.2.1. As aptidões autónomas entre si

Thurstone (1938) considera que a inteligência é melhor compreendida como um conjunto de aptidões mentais autónomas entre si, que devem ser medidas através de instrumentos baseados em tarefas diferentes. No seu entender, o fator geral é um artefacto estatístico que descreve de forma muito pobre a estrutura da inteligência. Ao invés, apresenta um conjunto de sete aptidões diferenciadas (ou fatores primários): a compreensão verbal (V), a fluência verbal (W), a aptidão numérica (N), a aptidão espacial (S), a memória (M), a velocidade percetiva (P) e o raciocínio (R).

Ainda que empiricamente Thurstone não tenha conseguido verificar a total independência dos fatores, o autor defende que os mesmos reúnem especificidade suficiente para serem concebidos como unidades funcionais independentes, que explicam ou estão na base das diferenças individuais nas situações de realização cognitiva (Almeida, 1988b, 2002; Almeida et al., 2008). Neste sentido, Thurstone desenvolveu uma bateria para avaliar as sete aptidões primárias, designada por Primary

Mental Abilities (PMA), que se encontra aferida para a população portuguesa (Rocha & Coelho, 2012).

Duas outras baterias que surgiram no âmbito deste quadro teórico são a Differential Aptitudes

Tests (DAT) e a General Aptidude Test Battery (GATB). Esta última foi adaptada e aferida para a

população portuguesa por Helena Rebelo Pinto na sequência do seu doutoramento (Pinto, 1992). Ainda na linha de Thurstone, ou seja, apresentando uma conceção multifatorial da inteligência, ou uma inteligência definida através de múltiplas aptidões autónomas entre si, Guilford (1967) propõe 120 aptidões no seu modelo estrutural da inteligência, resultantes da combinação simultânea de três dimensões: (i) a dimensão operações, que compreende os processos mentais envolvidos numa dada tarefa (por exemplo, memória); (ii) a dimensão conteúdos, relacionada com o tipo de informação em que a tarefa se expressa (por exemplo, figurativo); e, (iii) a dimensão produtos, relacionada com o tipo de resposta exigido (por exemplo, relações) . Mais tarde, com a introdução de alterações no seu modelo, propondo subdivisões de algumas categorias nas três dimensões supra mencionadas, Guilford avança com uma explicação da inteligência com base em 180 aptidões (Almeida, 1994).

Ao contrário dos seus antecessores que usaram a análise fatorial para descobrir um modelo explicativo da estrutura intelectual, Guilford utilizou esta técnica para testar um modelo hipotético-

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dedutivo, previamente elaborado. Apesar das críticas à complexidade do seu modelo, nomeadamente na sua verificação empírica, os trabalhos de Guilford trouxeram contribuições indiretas para o estudo da inteligência, tais como: a inclusão de processos cognitivos mais associados à criatividade (produção divergente) e complementares aos processos de raciocínio (produção convergente); a distinção entre operação e conteúdo que ajudou a esclarecer os fatores identificados através da análise fatorial e os processos investigados através da psicologia cognitiva, bem como a relação entre ambos; e, a introdução do conteúdo comportamental entre os conteúdos que poderão diversificar as aptidões intelectuais dos indivíduos, que remete para o estudo da inteligência social (Almeida, 1988b; Almeida et al., 2009; Anastasi & Urbina, 2000).

1.1.2.2. As teorias hierárquicas da inteligência

Progressivamente, surgem esquemas alternativos para a organização dos fatores, que concetualizam a inteligência não numa perspetiva essencialmente unitária, nem numa visão eminentemente plural, identificando-se mais como um todo diverso harmonioso, assente em funções ou processos cognitivos com diferentes níveis de generalidade (uns mais gerais ou comuns a várias tarefas e outros mais específicos de uma dada tarefa), dando origem aos designados modelos hierárquicos da inteligência (Almeida, 1988b, 2002; Almeida et al., 2009; Eysenck, 1979).

Cattell (1963,1971) propõe a Teoria da Inteligência Fluida e Cristalizada, que pode ser vista como uma síntese dos trabalhos fatoriais de Spearman e de Thurnstone (Almeida, 1994; Brody, 2000; Sternberg & Powell, 1982). Neste sentido, Cattell sugere que um importante fator geral emerge a partir da maior parte dos estudos de correlação entre testes cognitivos e que esse fator geral pode subdividir- se numa inteligência fluida (mais confinada ao próprio fator geral de Spearman) e numa inteligência

cristalizada (capacidades assentes no uso das habilidades). Por sua vez, bastante na linha de

Thurnstone, Cattell defende a existência de dezanove fatores primários ou de primeira ordem: compreensão verbal (V), aptidão numérica (N), fator espacial (S), velocidade percetiva (P), velocidade de encerramento (Cs), raciocínio indutivo (I), memória associativa (Ma), aptidão mecânica (Mk), flexibilidade de encerramento (Cf), memória de curto-prazo (Ms), ortografia (Sp), avaliação estética (E), memória significativa (Mm), originalidade I (O1), fluência ideacional (Fi), fluência de palavras (W), originalidade II (O2), precisão (A) e representação gráfica (Rd)

.

De acordo com a teoria de Cattell, a inteligência fluida (Gf) apresenta-se como uma capacidade intelectual mais global e mais diretamente ligada ao substrato neurológico do indivíduo, que se manifesta no desempenho de tarefas que envolvem a perceção de relações, o pensamento abstrato, o raciocínio analítico e não-verbal, a formação e a transferência de conceitos, a compreensão de novas relações e a resolução de problemas, ou a adaptação a novas situações de aprendizagem

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(Almeida, 1988b; Primi & Almeida, 2002). Neste sentido, o Teste das Matrizes Progressivas Coloridas de Raven é considerado uma medida da inteligência fluida (Simões, 2000).

A inteligência cristalizada (Gc) corresponde, no seu conteúdo, a muitos dos testes tradicionais de QI com fortes saturações em «aptidão verbal» e «aptidão numérica» (Simões, 2000). Representa os conceitos, as aptidões e as estratégias adquiridas sob a influência da educação e do ambiente cultural, ou por outras palavras, reflete, num grau importante, fatores como a aculturação e a experiência (ou seja, a aprendizagem) (Almeida, 1988b; Primi & Almeida, 2002; Simões, 2000).

Apesar da inteligência fluida e da inteligência cristalizada terem origem e natureza diferentes elas encontram-se intercorrelacionadas de forma moderada e positiva (Brody, 2000; Brody & Brody, 1976). Nesta óptica, o desenvolvimento e a aquisição de aptidões depende, não só das experiências educativas, como também do potencial intelectual do indivíduo, responsável pelo proveito dessas experiências (Almeida, 1988b, 2002; Almeida et al., 2009).

Ainda no quadro das teorias hierárquicas da inteligência, Carroll (1993) reuniu cerca de meio milhar de estudos da estrutura da inteligência feitos pela abordagem fatorial, e efetuou uma reanálise que resultou num modelo da inteligência chamado teoria dos três estratos.

A expressão “estrato” (stractum) refere-se à ideia de camadas dispostas em três níveis em função do grau de generalidade dos respetivos componentes, em que o nível de generalização de um fator é representado pela ordem em que o mesmo fator emerge na análise fatorial. Assim, no Estrato I, correspondente à base da hierarquia, encontram-se pouco mais do que 65 fatores específicos ou de 1ª ordem, fortemente associados às dimensões avaliadas pela maior parte das baterias multifatoriais disponíveis. No Estrato II, aqueles fatores básicos são agrupados em oito fatores ou aptidões mais gerais (fatores de grande grupo ou de 2ª ordem). Por último, o Estrato III corresponde ao fator g que ocupa o topo da hierarquia (fator de 3ª ordem). Este fator geral reflete as diferenças de realização dos sujeitos em classes gerais de tarefas (Carroll, 1993).

Por último, procurando integrar a perspetiva de inteligência fluida e inteligência cristalizada proposta por Cattell (1963), as extensões dessa teoria elaboradas por Horn e Cattell (1966), e a teoria dos três estratos de Carroll (1993), McGrew e Flanagan (1998) propõem a teoria Cattell-Horn-Carroll (CHC) das habilidades cognitivas, que constitui-se como um dos modelos hierárquicos mais recentes.

Esta teoria defende igualmente uma estrutura hierárquica das aptidões cognitivas em três estratos, de crescente generalidade. Assim, no primeiro estrato, encontramos aproximadamente setenta fatores de nível inferior (fatores de 1ª ordem), que estão ligados às capacidades específicas avaliadas pelos testes de inteligência. No segundo estrato, temos os fatores amplos ou de 2ª ordem, que refletem

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comunalidades entre os fatores de 1ª ordem em termos de processos cognitivos ou de conteúdos comuns, e que passam a ser dez, nomeadamente: inteligência fluida ou raciocínio (Gf), conhecimento quantitativo (Gq), conhecimento-linguagem ou inteligência cristalizada (Gc), leitura e escrita (Grw), memória-aprendizagem ou memória de curto-prazo (Gsm), perceção ou processamento visual (Gv), perceção ou processamento auditivo (Ga), produção de ideias ou armazenamento e recuperação da memória a longo prazo (Glr), velocidade cognitiva geral (Gs) e velocidade de processamento ou rapidez de decisão (Gt). Num terceiro estrato, surge então um fator geral de nível superior que corresponde à inteligência geral ou fator g (fator de 3ª ordem), abarcando processos cognitivos ditos mais gerais ou comuns às diferentes atividades mentais. O movimento do nível mais alto da hierarquia (fator geral) para o nível mais baixo (fatores específicos) indica o progressivo aumento da especialização das capacidades cognitivas (McGrew & Flanagan 1998).

A riqueza deste modelo emerge não só das análises fatoriais exploratórias e confirmatórias que têm vindo reforçar a sua estrutura, mas também porque os fatores propostos refletem alguma margem de generalidade de certos processos ou de certos conteúdos na resolução cognitiva de uma multiplicidade de problemas ou tarefas (Almeida et al., 2009; Flanagan, Alfonso & Ortiz, 2012; Primi & Almeida, 2002).

Em síntese, a Teoria CHC enfatiza a natureza multidimensional da inteligência ao invés da visão unidimensional que dominou o início do desenvolvimento dos testes psicométricos. Esta teoria reconhece a existência do fator g (que continua a explicar a maior parte da variância nas diferenças individuais), mas, em termos práticos, enfatiza as capacidades amplas (ou fatores de 2ª ordem), por não serem demasiado genéricas, nem demasiado específicas (Almeida et al., 2009; Primi, 2003). Ainda que, a distinção entre fator g (estrato III) e inteligência fluida (estrato II) careça de um maior esclarecimento (Almeida et al., 2008).

Atualmente, a teoria CHC parece reunir algum consenso entre os investigadores, tendo vindo a ser utilizada em estudos de validação de instrumentos de avaliação da inteligência (Almeida et al., 2008; Canivez, 2011a; Floid & Kranzler, 2012; Primi, 2003; Schneider & McGrew, 2012). Por exemplo, várias investigações têm sido conduzidas procurando verificar em que medida algumas baterias de inteligência disponíveis se aproximam deste modelo teórico (e.g. Canivez, 2008, 2011a; Flanagan, McGrew & Ortiz, 2000; Keith & Reynolds, 2012; Keith, Kranzler & Flanagan, 2001; Roid & Pomplum, 2012; Watkins, 2006, 2010). Alguns estudos conduziram, inclusivamente, à revisão de instrumentos, através da inclusão de novas provas em versões mais recentes (e.g. McGrew & Woodckock, 2001; Kaufman-Singer, Lichtenberger, Kaufman, Kaufman, & Kaufman, 2012; Roid, 2003). Mas, como das baterias disponíveis nos EUA nenhuma avaliava todos os fatores amplos da inteligência, alguns investigadores sugeriram um procedimento chamado “Composição ou

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Cruzamento de Baterias” (Cross Battery Approach) que propõe a seleção de subtestes de baterias diferentes guiada pelo modelo CHC propiciando, assim, uma otimização da avaliação dos fatores amplos (e.g. Flanagan, Alfonso & Ortiz, 2012; Flanagan & Ortiz, 2001; McGrew & Flanagan, 1998; Tulsky & Price, 2003).

Apesar da Teoria CHC mostrar-se importante para compreender o que os testes criados pela psicometria avaliam, na opinião de Primi (2003), ela não esgota a definição de todas as possíveis maneiras que a inteligência pode se manifestar. Por sua vez, Wasserman (2012) salienta que, apesar da publicação de Carroll em 1993, ter estimulado uma nova escola de pensamento sobre a avaliação da inteligência, a história ainda não está terminada.

Almeida (2002) refere, ainda, que uma teoria da inteligência assente na abordagem fatorial incorre em alguns perigos dado que esta metodologia não apresenta uma solução única, dependendo muito do tipo de testes que são utilizados para se fazer a matriz inicial de correlações, assim como do método de análise fatorial utilizado para extrair os fatores, razão pela qual têm sido propostas tantas e diversas teorias sobre a estrutura da inteligência, o que contradiz o objetivo da investigação científica no sentido de explicar e replicar os fenómenos em estudo.