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Capítulo 1 Fundamentos estruturais do Estado-Nação: elementos conceituais, teoria e

1.3 Estado e território na era das revoluções (1789 a 1914)

1.3.1 A interpretação da geografia política tradicional

Ao mesmo tempo em que o Estado se tornava mais complexo, a geografia expandia seu poder explicativo da sociedade, reivindicava a valorização do território frente ao Estado e fundava a escola da geografia política, inaugurada pela visão de Friedrich Ratzel (1844-1904). Este autor esteve presente à consolidação do Estado alemão, tendo escrito a maior parte de

seus trabalhos no período “bismarckiano” (final do século XIX) 12. A partir de sua própria vivência ele intuiu para o território um papel fundamental na constituição do Estado (composto por nação universalista autárquica, marcada pelo reconhecimento da ampla diversidade linguística, cultural, histórica, religiosa e de costumes) e do povo.

Ratzel (traduzido por MORAES, 1990) 13 identificou o Estado com um organismo dependente do solo. A base dessa relação orientava-se para o determinismo geográfico, consoante à capacidade da natureza de impor condições à história. Sua obra pioneira ganhou destaque ao defender a dimensão territorial como condição indispensável à existência e à sobrevivência do Estado nacional. Suas contribuições inovadoras derivaram da realização de uma leitura espacial da concepção maquiavélica de política por meio de uma metodologia científica positivista.

Desta maneira, Ratzel introduziu a crítica da ciência política, cujo edifício teórico, segundo ele, se esquivava de tecer qualquer consideração espacial. Ele mostrou na teoria sociológica e histórica uma abordagem do Estado como não mais “[...] do que uma forma superior de propriedade fundiária”. (RATZEL, apud HAESBAERT, s/d, p. 1). Seus estudos partiram da difusão dos povos na superfície da terra, das trocas entre os homens e os meios naturais, das redes construídas pelos fluxos humanos no espaço e da observação das variadas culturas, cujas diferenças ele atribuiu às condições naturais do “habitat” humano. Ele definiu civilização como o fator diferencial entre as sociedades: num extremo, posicionou os “povos

naturais”, submetidos à natureza. Já os “povos civilizados” seriam aqueles que acumulavam

vitórias na luta pelo domínio da natureza e assim geravam um produto histórico progressivo desse intercâmbio. Com a evolução cultural que ampliou o leque dos recursos utilizáveis o homem passava a submeter a natureza a si, tornando mais intensa e efetiva a relação entre sociedade e espaço.

Para Ratzel (idem, 1990), o processo civilizatório percorreu múltiplos caminhos em tempos diferentes. A mobilidade dos povos na superfície terrestre passou por vários estágios ambientais e contribuiu para o acúmulo de conhecimentos responsáveis por impulsionar o

12 A teoria “ratzeliana” fundamentou-se numa ideia de nação tipicamente alemã, fortemente romântica, ligada à terra. Diferiu profundamente da doutrina liberal dos iluministas franceses. Ratzel (1897) teve grande dificuldade

em compreender e aceitar o “universalismo abstrato”, o “cosmopolitismo uniformizador” e o “raciocínio

mecanicista”, (COSTA, 1992, p.31), conceitos afinados com a economia burguesa industrial nascente, orientada

pelo predomínio da razão e por presunções democráticas. Ele pôde testemunhar uma assistência à pobreza de amplitude notável para a época, se comparada com a praticada nos demais Estados. (BOSCHETTI, 2009). 13 Friedrich Ratzel (1844-1904) fundou a geografia política com a publicação “Politische Geographie” na

Alemanha em 1897, reeditada em 1902, sob o título: “Uma geografia do Estado, do comércio e da guerra”.

Outros autores de destaque desta vertente geográfica foram Vallaux, Bowman, Gottmann, Hartshore, Whittlesey, Weigert, entre outros.

progresso. Desta forma, ele percebeu a existência de um paradoxo nas relações dos povos com a natureza: ao mesmo tempo em que a civilização libertava o homem da natureza, o tornava mais dependente do meio. Daí, o autor, ao refletir sobre as condições impostas à história pela natureza, passe a considerar o domínio do espaço pelos povos uma questão central no referido processo.

Sua argumentação nesta direção o levou a formular dois conceitos fundamentais: (1) território: porção da superfície terrestre apropriada por um grupo humano, cuja identidade decorre do fato de ser possuído; e (2) espaço vital: necessidade territorial de uma sociedade, de acordo com seu equipamento tecnológico, seu efetivo demográfico e seus recursos naturais disponíveis (porção do planeta necessária para a reprodução de uma dada comunidade). (RATZEL, traduzido por MORAES, 1990, p.81).

Ratzel (idem, 1990) concluiu que a constituição do Estado foi uma decorrência do desenvolvimento histórico da humanidade, pois gerou uma forma de organização social fundamental ao processo civilizatório. A evolução da organização social para a forma estatal estabeleceu, portanto, o principal elemento diferenciador entre os povos naturais e os civilizados. Desse modo, a gênese do Estado foi um ponto de inflexão na história humana, ao requerer um dado patrimônio cultural acumulado e ao ter por pressuposto fronteiras bem delimitadas e defendidas contra o outro (a idéia da existência do “estrangeiro ameaçador” aumentava a coesão social do povo).

Ao centrar sua observação na relação povo/economia/território, Ratzel (idem, 1990) associou o desenvolvimento à expansão espacial. O crescimento dos povos nacionais, tanto por reprodução natural quanto por fluxos migratórios, e a nova economia industrial com sua demanda por matérias-primas, especialmente as minerais, exacerbaram a importância do tamanho e do crescimento do território face ao seu conteúdo material. A expansão espacial dos povos passou a ser um requisito do progresso, tornando “inevitável” o enfrentamento de povos diferentes pelo mesmo território.

Um povo decai quando sofre perdas territoriais. Ele pode decrescer em número, mas ainda assim manter o território no qual se concentram seus recursos, mas se começa a perder uma parte do território, esse é sem dúvida o princípio de sua decadência futura. (RATZEL, traduzido por MORAES, 1990, p. 72).

Em síntese, a concepção “ratzeliana” de Estado elegeu o espaço a variável determinante do poder político: “organismo territorial, espiritual e moral”. O Estado seria responsável por articular os elementos “povo” e “solo”: o primeiro com o seu “[...]

„espírito‟, cultura e, sobretudo, com o seu sentimento „territorial‟ obtido na sua ligação

permanente com o solo [; e o segundo, como representante da] permanência face ao Estado [...] transitório”. (COSTA, 1992, p. 34). Ele enfatizou também a importância das estratégias territoriais para a manutenção da “coesão interna” do Estado.

O Estado no seu conjunto não se identifica com o seu território, muito menos, pois com as partes periféricas deste, de verdadeiramente estável não há senão o centro político [...]. Deste irradia em direção à periferia [...] a força da coesão do Estado. [...] As zonas de fronteira permanecem livres [...]. São o refúgio dos refratários e dos desesperados [...] não raramente ocorre que sejam o berço de novas formações políticas. (RATZEL, traduzido por MORAES, 1990, p. 147-8).

Becker (2001) identificou na geografia política “ratzeliana” dois pressupostos básicos responsáveis por fundar o poder do Estado nas condições autárquicas proporcionadas pelo território: (1) o excepcionalismo nacional e (2) o determinismo geográfico. Em síntese, para a geografia política, o poder seria proporcionado ao Estado pelo espaço, particularmente pelo meio físico. Já Costa (1992) julgou Ratzel profundamente conservador e autoritário ao condicionar os processos sociais e políticos à natureza e, principalmente, ao idealizar a força do Estado como dependente de sua centralidade e de sua superioridade em relação à sociedade.

Por sua vez, Raffestin (1993, p. 16) criticou a idéia de que o Estado moderno seria a instância centralizadora, formadora do único núcleo de poder frente à sociedade: “[...] a ideologia subjacente [em Ratzel] é exatamente [a] do Estado triunfante [ou] do poder

estatal”. Para Raffestin (1993), na verdade, o poder antecedeu ao surgimento do Estado e

inúmeros poderes são identificáveis nas políticas regionais e locais. Além disso, na essência de quaisquer formas de organização se exercita o poder político. Este não seria, então, uma categoria espacial ou temporal. Na verdade, a população seria a fonte e o sujeito de todo o poder, o ator que se destaca por suas ações tanto de produção quanto de espaço (ou a geografia, conforme La Blache) e história.

Ratzel e o geógrafo francês Paul Vidal de La Blache (1845-1918) foram apontados por Demageon (1952, p. 25) como dois mestres da geografia humana, defensores das “relações constantes de causa e efeito [entre os] fenômenos físicos e os fenômenos da vida”. Enquanto o primeiro focava a ausência de espacialidade na definição política de Estado, o segundo apontava a negligência com que os historiadores tratavam o peso das “influências geográficas

sobre a história”. (idem, 1952, p. 25). Entretanto, durante a evolução dos estudos dos dois

La Blache14 desenvolveu um modelo para pensar a relação homem/natureza no qual a sociedade (e/ou o Estado) deveria atentar para as características de seu território, com vistas a realizar suas potencialidades, pois “aos homens cabem as escolhas diante do que o meio

oferece”. (COSTA, 1992, p. 148). A alternativa ideológica oferecida por La Blache15

, contrária ao “determinismo ratzeliano”, significou a adoção de estratégias de desenvolvimento que, ao focar o próprio território, proporcionavam o alargamento da

“insuficiência ratzeliana” relativa ao solo, com vistas a seu aproveitamento intensivo e

pacífico.

Para La Blache, “a emancipação pela qual o homem pouco a pouco se liberta do jugo

das condições locais é uma das lições mais instrutivas que nos proporciona a história”.

(apud HAESBAERT, s/d, p. 2). Em sua valorização do humano, La Blache resgatou o cidadão comum em sua lida rotineira com o lugar, como um ator “civilizado ou selvagem, ativo ou passivo, [que] não deixa de fazer parte integrante da fisionomia geográfica do globo [Mesmo nas escassas regiões onde ele não era encontrado...] a ação preponderante que exerce sobre o mundo da vida não deixa, em certa medida, de se fazer sentir”. (idem, s/d, p. 2). De fato, o homem “batalha [com a natureza] para dirigi-la segundo seus próprios fins”. (idem, s/d, p. 2).

Por último, é importante registrar que Ratzel aconselhou priorizar também na elaboração de um projeto geopolítico de Estado as políticas não territoriais (econômicas, sociais e culturais) para evitar a transformação destas em tão somente políticas expansionistas. Ao distinguir “conquista” de “colonização”, ele se tornou um crítico acerbo das políticas coloniais europeias. Para o objetivo colonizador, ele propôs um processo longo de valorização territorial e integração não só econômica, mas também política.