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Capítulo 1 Fundamentos estruturais do Estado-Nação: elementos conceituais, teoria e

1.1 Introdução

O Estado-nação constitui a forma de organização sociopolítica predominante no mundo atual.

O tipo histórico desse Estado [nacional], que surgiu pela primeira vez com as revoluções Americana [1776] e Francesa [1789], espalhou-se pelo mundo inteiro. Depois da Segunda Guerra Mundial uma terceira geração de Estados nacionais emergiu dos processos de descolonização. Essa tendência continua desde a implosão do império soviético. Os Estados nacionais revelaram-se superiores às cidades- Estado (ou suas federações) e aos herdeiros modernos dos antigos impérios. (HABERMAS, 2000, p. 297).

Após um longo período de gestação, o modelo de organização social constituído pelo Estado-nação tornou-se hegemônico e assumiu características muito semelhantes nos vários países, especialmente do Ocidente. Assim, no fim do século XVIII, “o Estado moderno e a

nação moderna” fundiram-se e criaram o Estado nacional. A despeito de “nação” ser um

termo fundado na tradição e dotado de grande amplitude sob os pontos de vista jurídico e político, nação e povo sob o ponto de vista do Estado passaram a ser conceitos percebidos como de mesmo significado. Os burocratas governamentais (juristas, diplomatas e oficiais) e os intelectuais (escritores, historiadores e jornalistas), membros da sociedade civil, contribuíam para a formação do Estado moderno ao se dedicarem à afirmação cultural de um povo homogêneo que soubesse superar as idiossincrasias próprias das nações. Estes esforços culminaram no Estado europeu do século XIX, modelo normativo para o Estado constitucional contemporâneo. (HABERMAS, 2000, p. 298). Em virtude da precedência das nações no tempo, antes de tratar da evolução do Estado é interessante conhecer o processo aglutinador que gerou um único povo, sustentáculo do Estado-nação.

Habermas (2000, p. 298) definiu nação como uma “comunidade moldada pela

descendência”, caracterizada por cultura, história e, muito frequentemente, por língua

comum. A nação teve origem nos primeiros agrupamentos familiares constituídos para solucionar de forma cooperativa a sobrevivência. Assim, na categoria Estado-nação, o Estado carrega o lado racional dessa composição, enquanto a nação guarda o conteúdo da emoção. Já o conceito de povo é moderno, envolvendo o direito de pertencer e o dever de participar, responsável pela coesão indispensável à sobrevivência do Estado-nação.

O conceito de nação concretiza-se no espaço, mas sua delimitação geográfica nunca foi simples, pois é função da distância máxima possível ao contato freqüente em favor da uniformidade dos costumes, da cultura e da linguagem. Por este motivo, no interior das fronteiras da maioria dos Estados-nações reúne-se mais de uma nação. Donde se pergunta: como se organizou este Estado de modo a submeter tantas nações quanto as que ele abriga?

Para Gellner (2000), o Estado-nação somente se tornou uma entidade completa quando as suas fronteiras se equivaleram às da nação. Sendo esta uma categoria derivada dos vínculos produzidos por mesmos traços culturais e lingüísticos, a estratégia adotada para fazer coincidir as fronteiras do Estado com os limites da nação forjara uma cultura “superior”, ou elevara alguma das existentes a este nível. Assim estabelecida, esta cultura submetera as várias nações à centralização “necessária” do poder junto ao Estado, tornando-se um pré- requisito ao usufruto dos benefícios advindos do sentimento e do reconhecimento de pertencer ao sistema. Sua disseminação e a transformação do membro do povo em cidadão foram dois instrumentos de constituição do Estado moderno que viabilizaram a constituição de um novo Estado, mais democrático.

Na sociedade feudal, as nações se expressavam por meio de valores identitários arraigados, dentro de nítidos contornos regionais e no conjunto dos territórios dominados pelas mesmas famílias. Seus conteúdos eram dotados de especificidades compartilhadas, de coincidências de modos de vida, de códigos de honra, de lealdade e de cultura. No conjunto, os costumes feudais admitiam variações regionais, e o processo de “[...] fortalecimento dessas obrigações ao longo de uma extensa hierarquia de vassalos numa região muito grande [...] acabou levando ao aparecimento das modernas nações-estado”. (HUNT, 1989, p. 30).

O Estado-nação, diferentemente da organização feudal agrária, estabeleceu-se como uma sociedade industrial avançada, baseada num sistema de inovação tecnológica e no crescimento exponencial da produção e dos recursos produtivos. Seus princípios de legitimação foram a riqueza, a nacionalidade e o crescimento econômico. Este Estado tornou- se cada vez mais dependente do trabalho “semantizado”, da função da escolarização formal e

criou meios de produção substitutos do trabalho braçal. A educação, desde então, visava a dotar o trabalhador de sensibilidade apurada, sintonizada e padronizada para saber restringir a mensagem (ou extrair dela) ao (o) que era relevante.

O setor educacional tornou-se parte do aparato burocrático do Estado, com a função de disseminar a cultura “superior” – operacional, homogênea e espacialmente ampla – demandada pelo povo. A universalização da educação transformou esta cultura em instrumento de coesão por excelência. “O acesso à cultura superior apropriada e a

aceitabilidade dentro dela são o bem mais importante e valioso da pessoa”. (GELLNER,

2000, p.117). O cumprimento dessa função educativa em todo o território do Estado contribuiu para fazer coincidirem os limites da nação com as fronteiras do Estado, sem, entretanto, eliminar as culturas locais pré-existentes, mas tendendo a fazê-las declinar.

Os Estados-nações adentravam sua maturidade ainda no século XVIII. Entretanto, sua evolução no sentido de acomodar as nações em seus territórios continuava. Antes e durante a Primeira Guerra Mundial (1815-1918), período denominado por Gellner (2000) de

“irredentismo nacionalista” 1

, observava-se a atuação da etnia como princípio político com vistas a conceder ao Estado a sua correspondência nacional. Nesta fase, priorizava-se tornar congruentes as fronteiras lingüísticas com as culturais por meio de diversos métodos de homogeneização de população2. Contudo, tais métodos não resultavam em grande avanço pois a Europa Oriental continuava dividida em três impérios multiétnicos, quais sejam: o Russo, o Austro-húngaro e o Otomano.

A partir de meados do século XIX, os projetos nacionais passaram a focar o ambiente internacional, ao mesmo tempo em que as fronteiras dos Estados tendiam a acomodar as diferentes etnias. A elite burguesa, alçada ao poder por seus interesses econômicos, impunha ao Estado a implementação de políticas econômicas imperialistas. Estas políticas retrocederam os progressos realizados na direção da legalidade jurídica pelas Revoluções, a saber: a Gloriosa Inglesa e a Francesa. Com o avanço do neocolonialismo de corte imperialista, ao contrário da evolução das relações sociais no interior dos Estados para a constituição de um só povo, as diferenças iam sendo acentuadas e valorizadas as separações étnicas de nação e raça. O Estado era conquistado pela nação, tornando impossível ao Governo permanecer acima das classes e dos partidos.

1 Irredentismo: movimento nacional italiano, com a finalidade de integrar territórios dispersos, com base no princípio da nacionalidade, língua, costumes e outras características raciais.

2 Formas de assimilação da cultura dominante: espontaneamente, isto é, por meio de políticas educacionais oficiais ou por iniciativa de ativistas culturais autônomos; ou impositivamente, ou seja, por meio de assassinatos, deslocamento compulsório ou em fuga ou ajustamento das fronteiras.

Arendt (1989), avessa à expansão imperialista, realçou o fato de que não é da natureza do Estado-nação o crescimento ilimitado, dado que sua base de sustentação encontra-se junto ao consentimento genuíno da nação. Em caso de conquista, não se podia esperar que os povos vencidos se submetessem voluntariamente a uma liderança imposta. Verificava-se, ao contrário, uma exacerbação dos sentimentos nacionalistas e de soberania . A eclosão da Primeira Guerra Mundial deveu-se, portanto, à expansão imperialista dos Estados europeus mais desenvolvidos que se encontravam em disputa por novos territórios econômicos. Estes países empreendiam movimentos extraterritoriais movidos tanto por interesses de ampliação dos mercados consumidores, quanto pela busca dos recursos escassos em seus territórios.

Movimentos totalitários de massa ganhavam poder no período entre as guerras, especialmente na Alemanha e na Rússia, postergando a unificação das nações dentro das fronteiras do Estado. Assim, tendo em vista o critério de completude da transição para o Estado-nação moderno estabelecido por Gellner (2000), este somente se estabeleceu após a Segunda Grande Guerra. Na verdade, depois de 1945, observou-se uma diminuição significativa da intensidade dos sentimentos étnicos. O nacionalismo restrito às comunidades dominantes definidas por afinidades foi derrotado em combate, dando início a uma era de prosperidade econômica.

No pós-guerra, o avanço da industrialização, independentemente de regionalismos, tornou-se precondição da cidadania moral e da participação econômica. Todavia, a generalização de uma cultura dominante introduziu o biculturalismo, condição potencialmente conflituosa em caso de privação de renda. De qualquer forma, neste estágio, “as fronteiras políticas passam a ser menos importantes [...] parece suficiente que a mobilidade e o acesso às vantagens sejam mais ou menos equanimente distribuídos entre as categorias culturais, e

que cada cultura tenha a sua base doméstica segura”. (GELLNER, 2000, p.135-136).

Um estágio avançado da evolução da nação sob a égide do Estado se deu sob o modelo

“keynesiano” de Estado. Com seu caráter intervencionista, este Estado obteve grande sucesso

na neutralização dos antagonismos étnicos e de classe social por meio da ampliação da seguridade social, da concretização de políticas de igualdade de oportunidades, da reforma da educação, da saúde pública, do sistema jurídico etc. Sua ação fortaleceu a cidadania e conscientizou o indivíduo dos seus direitos fundamentais.

Assim, a gestação, o crescimento e o amadurecimento dos Estados-nações ao longo dos últimos oito séculos forjaram uma organização social sustentada em um território legalmente reconhecido. Estavam presentes fronteiras bem delimitadas e protegidas, e a legitimação do seu poder pelo povo se fundamentava na expectativa de cada indivíduo de se

tornar membro cidadão do Estado. A consolidação deste espaço era acompanhada por intensos deslocamentos populacionais mobilizados por forças centrípetas associadas à industrialização e à urbanização. Certamente, neste processo, as nações fundadas exclusivamente na economia agromercantil se desagregaram.

Os fluxos populacionais mobilizados pela nova economia industrial, e que desta, voluntariamente ou não, passaram a fazer parte, renunciaram à “alma do povo” de Herder (1744-1803) e se integraram à nova cultura superior. Cultura esta formada por pessoas com um forte sentimento de individualidade e de pertencer a um Estado racionalmente organizado, legitimado por uma sociedade produtora e usufrutuária de uma dada existência satisfatória.

As nações foram, em sua maioria, submetidas ao Estado por meio da institucionalização da cultura “superior”, à qual o povo foi levado a aderir por falta de alternativa ou por interesse próprio. Firmados a hegemonia burguesa e o formato capitalista de suprimento das necessidades básicas, a inserção nesta cultura disseminada pelo Estado burguês tornou-se um pré-requisito para a participação autônoma na organização social. As Revoluções Inglesa e Francesa, ao sinalizarem para a derrota da aristocracia feudal e para a ascensão da burguesia como classe hegemônica, apoiada nos movimentos populares e na Constituição, obtiveram a conformação final do Estado-nação. Este Estado de direito parlamentar modelaria a organização social, segundo um formato pacificado e

“desenvolvimentista”.

Diante do exposto surgem algumas questões nada triviais: o que é afinal o Estado? Seria este um conceito pleno e acabado? Qual o papel do Estado no esforço de formação do Estado-nação? Ao longo de sua evolução, quais heranças das organizações sociais que o precederam passaram a fazer parte de sua realidade contemporânea?

1.2 Primórdios do Estado moderno: centralidades feudais em decomposição e