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Capítulo 1 Fundamentos estruturais do Estado-Nação: elementos conceituais, teoria e

1.6 O Estado contemporâneo (desde 1980)

Após essa retrospectiva sobre a evolução do Estado até o final da década de 1970, algumas reflexões se fazem necessárias para que se vislumbre a identidade contemporânea do Estado-nação. Desde já, é preciso entender que este modelo de organização social ainda não alcançou um formato ideal. Ainda existem fortes resistências em se conferir ao Estado uma estrutura equilibrada de poder que saiba acolher, com justiça social, as demandas do povo nos marcos da legitimidade da participação republicana, haja visto o retrocesso sofrido pelo

“welfare state”. Por outro lado, é preciso levar em consideração a constatação de Bobbio

(2000) de que o Estado contemporâneo incorporou muitos avanços em relação ao Estado contra o qual se desencadeou a Revolução Russa. Mais do que isto, é preciso atentar à seguinte observação de Mann (2000):

Os Estados tornaram-se importantes no mundo moderno por prestarem cinco serviços, de utilidade variável, à humanidade: (1) tornaram-se capazes de travar guerras maciças e rotineiras; (2) forneceram infraestrutura de comunicação ao militarismo e ao capitalismo; (3) tornaram-se a sede da democracia política; (4) garantiram os direitos de cidadania social que eram usurpados pela esfera privada; e (5) inventaram o planejamento macroeconômico. (MANN, 2000, p.331).

A proposta adotada neste tópico para conduzir a reflexão pretende recuperar e sistematizar, sinteticamente, algumas posições teóricas diversas sobre o Estado contemporâneo, a começar pelo pensamento de Claus Offe.

Offe (1984) defendeu a prevalência do Estado capitalista ao propor a existência de um compromisso secreto entre o Estado e o processo de valorização de modo a que “a base

de poder soberana” (OFFE, 1984c, p. 162) que o sustentara desde sua gênese permanecera

íntegra e resguardada. Muito embora o Estado sustente a aparência de neutralidade frente às classes, ele “permite o exercício de dominação de classe” (idem, 1984c, p. 162). Existe um lado visível da fundação do Estado moderno que o caracteriza como de direito, neutro. Mas este lado convive com outro oculto, o da prática estatal materializada na forma de contratos multimilionários, deduções, proteções, compensações de perdas, subsídios etc., “ora contornando e ignorando a lei em benefício dos poderosos, ora aplicando-a com todo o seu

rigor punitivo contra os heréticos e os desordeiros”. (OFFE, 1984b, p. 164). O arcabouço

formal da democracia capitalista tornou-se imprescindível em virtude de sua relevância frente às relações de produção35.

Max Weber (2004) explicou a contemporaneidade do Estado racional, em virtude da sua fundação com base na transformação da justiça de “cádi” (baseada nos costumes) em um direito racional, formal e previsível. Desta forma, a evolução de sua estrutura burocrática para uma estrutura complexa, que requereu um funcionalismo especializado, agregou a função do direito baseada no pensamento formal jurídico ao complementar o aparato de apoio impessoal ao desenvolvimento das relações capitalistas. Como uma organização de dominação, o Estado moderno, no uso de sua estrutura de administração permanente e continuada, exige a obediência absoluta do seu quadro administrativo, responsável por articular os meios materiais a serviço do Estado. Este pré-requisito torna efetiva a dominação estatal, reafirmada no dia a dia da administração por meio dos funcionários públicos.

Galbraith (1984) analisou as condições do exercício de poder pelo Estado e observou que a expectativa de que esta instituição no século XX viesse a maximizar a independência do poder burocrático, de modo a cometer abusos associados ao uso do “poder condicionado” em favor dos interesses capitalistas, não ocorreu. A evolução da atuação do poder centralizado no Estado veio beneficiar tanto a classe capitalista quanto o cidadão comum e os membros de sua estrutura organizacional. É bem verdade que a ação deste Estado resultou do poder próprio à organização, o “poder condicionado”, explorado intensamente pelo “anônimo homem da

organização”. (Galbraith, 1984, p. 137). Mas, a vasta e funcionalmente diversificada

35 O Estado capitalista é responsável por dois tipos de funções: (1) estruturação do “[...] instrumento de direção

do poder político que o aparelho estatal, mesmo ao preço de novas contradições, consegue dentro de certos limites específicos [para] superar a contradição entre a produção social e a apropriação privada [...]”; e (2)

permissão da constituição de “[...] um interesse de classe (sistêmico) capitalista, capaz de superar em

burocracia estatal tornara o “[...] Estado, em ampla medida, o instrumento de seus próprios

propósitos”, capaz de equilibrar os diversos interesses e evitar o uso da máquina pública para

interesses privilegiados. (idem, 1984, p. 146). 36

Bobbio (2000) defendeu a prevalência do Estado democrático e escolheu como o seu sinalizador mais eloquente a conquista do sufrágio universal. Segundo o autor, este avanço estabeleceu práticas políticas na direção da inalcançável democracia direta de Rousseau. A ampliação do “[...] espaço no qual o cidadão pode exercer o seu próprio poder de eleitor” (BOBBIO, 2000, p.69) seria um importante indicador de expansão democrática. Bobbio (idem, 2000, p. 56) reconheceu um aprofundamento na democracia representativa com a ampliação do processo de democratização social e dos fluxos de poderes ascendentes (de baixo para cima). Este processo se estabeleceu na base do processo político de modo a levantar a questão da democracia direta.

O desenvolvimento do argumento de Bobbio (2000) levou-o a reconhecer que o mundo se subdivide em sociedades policráticas, onde subsistem vários centros de poder, caracterizando uma situação objetiva de pluralismo inteiramente favorável à realização de um Estado moderno democrático, na medida em que a concorrência entre os poderes impõe a arte da negociação e implica a busca do consenso. Ele apontou a existência de antídotos contra a concentração de poder exorbitante...

[...] a democracia dos modernos é o Estado no qual a luta contra o abuso do poder é travada paralelamente em duas frentes – contra o poder que parte do alto em nome do poder que vem de baixo, e contra o poder concentrado em nome do poder distribuído. (BOBBIO, 2000, p.73).

Além desse aspecto, Bobbio enfatizou a importância do dissenso em processos democráticos como um atestado de legitimidade, pois “[...] apenas onde o dissenso é livre para se manifestar o consenso é real, e [...] apenas onde o consenso é real o sistema pode proclamar-se, com justeza, democrático”. (BOBBIO, 2000, p.75).

Mann (2000), em sua análise do Estado nacional diante da globalização, rejeitou a ideia de que esta instituição estivesse em declínio. Ao contrário, este autor percebeu o seu fortalecimento e a sustentação de sua hegemonia, tanto diante das forças locais e regionais quanto, e especialmente, das privadas. Mann atribuiu ao Estado nacional moderno...

36 O Estado moderno congregou em sua estrutura burocrática as três fontes de poder, quais sejam: a personalidade política, a propriedade dos recursos e a organização. Assim, passou a utilizar os três instrumentos de poder: o condigno, o compensatório e o condicionado. O poder legislativo, os eleitores e as organizações privadas participam dos processos externos do governo. Para gerir seus processos autônomos, o Estado usa uma estrutura permanente de governo (um colossal emaranhado de organizações).

[...] uma concepção singularmente intensa da soberania. O militarismo, as infra- estruturas de comunicação, a regulação econômica, social e familiar e os intensos sentimentos de apego à comunidade nacional fundiram-se numa só instituição que tudo abarca. (MANN, 2000, p.314).

Com respeito à crença no poder desintegrador da “globalização”, Mann (2000) lembrou tratar-se de um fenômeno antigo. Segundo ele, é próprio da sociedade capitalista a

“transnacionalização”. A premência de realização da superacumulação impõe a transposição

de fronteiras. Esta característica das relações capitalistas é decorrente da distribuição geográfica desigual dos recursos, tanto do ponto de vista qualitativo quanto do ponto de vista quantitativo, o que incrementa em muito a importância e a atividade da “geopolítica” na articulação das relações entre as diferentes unidades nacionais. Desde 1945, exacerbaram-se as relações transnacionais abrangentes: “O capitalismo e a cultura fundem-se [...] no

„hiperespaço pós-moderno‟ [Fredric Jameson], difundidos sem consideração pela

nacionalidade ou o território, fragmentado, mas unido pela lógica capitalista da busca de

lucros”. (MANN, 2000, p. 315).

Markusen defendeu, ao invés da perda de poder do Estado, em favor do lugar e da região, o seu ganho de importância, frente à “economia mundial em rápida integração”, num

“ressurgimento do regionalismo” excludente de todo o território: “[...] o Estado-nação é

ainda mais importante do que o foi antes em seu papel legislador, negociador, árbitro e construtor de novas instituições regulatórias globais, tais como a Organização Mundial do

Comércio”. (MARKUSEN, 2005, p. 69).

Habermas (2001, p.64) percebeu o aumento da influência do Estado “neoliberal” no final do século XX, período “[...] sob o signo do risco estrutural de um capitalismo

domesticado de modo social e do renascimento de um neoliberalismo indiferente ao social”.

A falência do modelo soviético retirou o incentivo à manutenção do Estado de bem estar social, instalando um retrocesso neste e ressuscitando as crises por ele debeladas. Dessa forma, o Estado-nação se viu na iminência de tentar se equilibrar entre dois objetivos de difícil conciliação: gerar capacidade competitiva frente aos fluxos de investimentos internacionais e evitar a desintegração social. Mas, a “[...] autolimitação da capacidade de realização estatal [requerida pelo primeiro objetivo impõem] estratégias [...] que danificam a

coesão social e que põem à prova a estabilidade democrática da sociedade”. (HABERMAS,

Então, as políticas sociais foram preteridas no âmbito da opção estatal em favor da inserção competitiva internacional. As prioridades políticas mudaram na direção de implantar uma política industrial prospectiva e incentivar a inovação, a pesquisa e o desenvolvimento, a qualificação da mão de obra e a flexibilização do mercado de trabalho. O progresso científico tecnológico modificou a consciência do risco e afetou a autocompreensão ética.

Os indicadores de aumento da pobreza e de insegurança social, conseqüência das disparidades de percepção de renda dos empregados, dos parcialmente ocupados e dos desempregados alimentam a perspectiva irrefutável de desarmonia social. “Não importa o que se faça com a globalização da economia; ela destrói uma constelação histórica que havia

provisoriamente permitido o compromisso do Estado social”. (HABERMAS, 2001, p. 68).

O longo percurso trilhado neste capítulo em busca da compreensão do Estado-nação, partiu de sua gênese ainda durante a decadência feudal e procurou expor uma estrutura que se desenvolveu sintonizada com os avanços civilizacionais de nações colonizadoras do Ocidente europeu. A sua trajetória se defrontou com o absolutismo monárquico, com a burocracia patrimonialista, com o imperialismo e as duas Guerras Mundiais, vis-à-vis a Grande Depressão de 1929. Nas economias mais desenvolvidas foi gradativamente incorporado o atributo de Estado de direito parlamentar, ao preservar seu caráter liberal representativo. Para lidar com as forças centrífugas atuantes em seu território, ele se tornou federativo. Entretanto, no exercício das suas funções tornou-se Estado capitalista capaz de construir um aparato necessário à expansão econômica industrial.

A catástrofe derivada das conflagrações mundiais de fato fez retroceder a ambição imperialista e abrir espaços para medidas mantenedoras da paz. Ganhou relevância, então, o Estado interventor de bem estar social, justificado conforme o arrazoado keynesiano. Mas, dificuldades de restringir e condicionar a política social e a oportunidade oferecida pela falência do modelo soviético levaram ao fortalecimento da tendência “neoliberal” nos anos de 1980. Contudo, mesmo assim, o Estado capitalista já não é o mesmo do início do século. Tornou-se uma estrutura racional complexa, capaz de equilibrar diversos interesses, assumindo a democracia de massas e habilitando-se a conviver com sociedades policráticas. Nele estão refletidos os vários núcleos de poder regional, que diante da exacerbação do processo de globalização, ganharam importância enquanto base de apoio e contraponto às instituições regulatórias globais.

A compreensão da origem e da evolução do Estado-nação no âmbito mundial foi um esforço necessário para o entendimento do Estado-nação brasileiro. No capítulo a seguir, serão elencadas diferenças particulares que, para além da submissão colonial, delinearam no

Brasil um tipo de Estado durável, resistente a mudanças e ao aprofundamento da racionalidade democrática. Daí porque iniciar a análise do Capítulo 2 ainda na fase colonial para rastrear as marcas deixadas por um padrão de colonização patrimonialista e de poder centralizado.

Capítulo 2 - Apontamentos sobre a formação e o desenvolvimento do