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Primórdios do Estado moderno: centralidades feudais em decomposição e

Capítulo 1 Fundamentos estruturais do Estado-Nação: elementos conceituais, teoria e

1.2 Primórdios do Estado moderno: centralidades feudais em decomposição e

O uso de contratos para regulamentar o uso da terra e os negócios era uma prática obrigatória no período feudal. A concessão dos feudos era regida por contrato bilateral feudo- vassálico que, fundado em compromissos de fidelidade e baseado nos usos e costumes tradicionais, estabelecia os direitos e as obrigações decorrentes da concessão. Nas cidades das grandes feiras comerciais (séculos XII ao XIV) eram adotadas negociações também regidas

por contratos. Estes, entretanto, diversamente dos rurais, eram formulados de modo rigorosamente racional e introduziram várias instituições mantidas nas economias de mercado.

Ao contrário de um sistema paternalista de execução de dívidas, baseado nos costumes e na tradição vigentes no feudo, a lei comercial era fixada por um código preciso. [...] essa lei tornou-se a base das modernas leis capitalistas dos contratos, títulos negociáveis, representação comercial e execuções em hasta pública. (HUNT, 1989, p. 34).

Com as instituições capitalistas, os contratos do período feudal evoluíram para modelos cada vez mais racionais e contribuíram para a gestação do Estado-nação, conforme uma organização econômica apoiada no Estado constitucional, responsável pela estabilidade necessária ao desenvolvimento social. A gênese do Estado caracterizou-se por uma dinâmica centralizadora que, ao produzir os monopólios que lhe deram sustentação e com o apoio da Igreja e da burguesia, interrompeu longos períodos de violência. A “paz pública‟ imposta

pela Igreja e pelas cidades, em união com o rei”, (WEBER, 2004, p. 300), cessou as lutas

rurais, bem como submeteu a violência urbana, resultante do crescimento demográfico, dos fluxos migratórios e dos conflitos econômicos, ao poder das autoridades reconhecidas pelo povo.

Elias (1993) relatou a formação do Estado-nação como resultado da concorrência por expansão dos feudos, desencadeada pela capacidade finita da terra parcelada de sustentar a população crescente, assim como a ambição por riqueza e poder. Esta competição que perpassava todo o período feudal constituía monopólios territoriais de grandes extensões, cada um deles somatório de inúmeros feudos rendidos ao poder de um único Estado monárquico absolutista. Esta centralização de poder no príncipe aconteceu simultaneamente ao deslocamento do eixo econômico da agricultura para a atividade comercial tipicamente urbana e com o apoio financeiro da burguesia nascente.

A manutenção do exército, baseado em duas armas (infantaria e cavalaria), foi viabilizada pela instituição do monopólio fiscal. O crescimento do comércio e da economia monetária deu surgimento a uma gama variada de tributos em dinheiro, o que possibilitou financiar a crescente máquina administrativa e militar. Por outro lado, a elevação da arrecadação tributária aumentou a capacidade real de gestão da moeda e (re)centralizou a gestão monetária no Estado. Dessa forma, gerou-se o monopólio estatal da moeda, tornando sua aceitação legal como meio de troca e reserva de valor.

O controle de todos os monopólios de Estado coube a uma estrutura burocrática patrimonial, modelo de dominação evoluído do patriarcalismo familiar3. Esta máquina administrativa mais complexa e espacialmente mais extensa do que a pré-existente feudal sustentou-se no poder decorrente da personalidade4 do rei. Este arcabouço acomodou as novas posições estamentais5 demandadas para o controle dos monopólios recém criados e reforçou o poder dos burocratas em ascensão. Os cargos que o compunham passaram a ser monetariamente remunerados: aos militares, era dado o soldo; aos funcionários administrativos, emolumentos. Além disso, eram comercializadas prebendas ou títulos de propriedade de cargos cujas posses davam direito ao exercício de representação política junto ao Estado e ao recebimento de emolumentos.

As relações patrimoniais de administração pública foram mantidas pela tradição e pela

“justiça de gabinete do senhor [e de seus funcionários]. Simplesmente tudo se baseava expressamente em „considerações pessoais‟, isto é, na avaliação do solicitante concreto e de

seu pedido concreto e em relações, atos de graça, promessas e privilégios puramente

pessoais”. (WEBER, 2004, p. 264) Todas as ações eram regidas pela arbitrariedade do

príncipe. Em síntese, a dominação patrimonial caracterizava-se pelo trato do território, dos súditos, dos soldados, dos armamentos, dos funcionários, dos cargos, da receita fiscal, da moeda, das remunerações e de tudo o mais como se fossem partes do patrimônio pessoal do príncipe.

Para Weber (2004), o financiamento concedido pela burguesia para os processos de centralização monárquica e de constituição dos exércitos nacionais tornava o capitalismo e o grande comércio coniventes com o patrimonialismo, desde que este não perturbasse a expansão dos mercados e das fontes de recursos. Aos burgueses convinha a eliminação das

3 A dominação patriarcal surgiu quando a descendência se desdobrou em várias famílias, cada uma com sua moradia e seus instrumentos e animais. Assim foram criadas comunidades de parentesco, habitantes de uma

mesma vizinhança, que realizavam autarquicamente a sobrevivência. O “senhor da casa” original mantinha seu

poder legitimado e refreado pela tradição perante o conjunto dos indivíduos dominados. Estes indivíduos obedeciam as suas ordens de modo a executar o que desde sempre lhes coube na ordem econômica e de proteção, cumprindo compromissos desde sempre assumidos.

4 Galbraith (1984) qualificou em três os tipos de poder, de acordo com suas fontes e instrumentos: o da personalidade – condigno; o da propriedade – compensatório; e o da organização – condicionado.

5 Segundo Weber (2004), os estamentos eram comunidades, em geral de natureza amorfa e restritiva, nas quais as relações sociais eram endógenas e não econômicas. Os destinos das pessoas incluídas eram condicionados, de forma positiva ou não, a uma avaliação qualitativa social honorífica, habitualmente expressa na imposição de uma condução da vida própria da posição “estamental”. Assim, a seleção pessoal, os vínculos políticos ou a situação de classe sempre foram decisivos para um comportamento considerado adequado. Esta diferenciação estamental era uma restrição à realização do “puro princípio do mercado” sempre que as vantagens estamentais ou honoríficas implicassem: (1) privilégios de uso ou de prática, introdutores de condições de monopólio (bens, armas, práticas - profissionais ou não, ofícios, cargos, e pessoas; (2) restrições impostas a grupos estamentalmente privilegiados, com respeito ao trabalho braçal e à atividade aquisitiva racional (especialmente

barreiras impostas pelas jurisdições feudais e pelas diferenciações entre moedas e sistemas de pesos e medidas. Todavia, a ascensão econômica da classe burguesa não implicava, em princípio e de forma clara, ascensão política. Decisões dessa ordem eram delegadas ao Estado. Segundo Arendt (1998, p. 153), esta teria sido “[...] a primeira classe na história a

ganhar proeminência econômica sem aspirar ao domínio político”.

À medida que avançava o processo de centralização das funções públicas no príncipe, tornaram-se mais complicadas as relações funcionais no regime burocrático. As funções da estrutura burocrática ganharam complexidade e introduziram uma forma de dominação6 impessoal, de exercício rotineiro, fundada na organização. Residia aí o poder da burocracia (ou da organização, conforme descrição de GALBRAITH, 1984). O aumento dos requisitos de aprendizado e de aceitação das funções usuais colocava-as fora de questão por quem as praticava e por quem as sofria.

O Estado patrimonial, fundado nessa burocracia encorpada, inaugurou a centralização da dominação, apoiado na “[...] disposição dos homens à observação das normas e dos

regulamentos habituais”. (WEBER, 2004, p. 223). Esta organização desenvolveu meios

poderosos de dominação, como por exemplo, o segredo oficial e a exclusão do público de suas decisões. Sua configuração espacial, em virtude de seu caráter centralizador burocrático, privilegiou o desenvolvimento de civilizações urbanas, em locais onde se concentrava uma considerável população flutuante e uma aristocracia que precisava estar lotada em qualquer dos escalões da burocracia governamental. O primeiro problema político do Estado patrimonial foi, pois, o de manter as massas urbanas satisfeitas e dar à aristocracia urbana o acesso a posições governamentais.

Para atender aos interesses comerciais, o Estado absolutista cuidou da defesa contra a concorrência estrangeira por meio de ampla regulamentação do comércio. Antes da Revolução Industrial, o poder estatal, convencido de que a riqueza e o poder advinham da atividade comercial, sustentava políticas de estímulo às exportações e restrição às importações por meio de tributação com efeitos calculados. Os Estados mais fortes favoreciam a burguesia nascente por meio de concessões de monopólios comerciais, os quais possibilitaram o

6 Weber descreveu três princípios de legitimação da dominação: (1) o burocrático – “[...] expresso num sistema

de regras racionais estatuídas (pactuadas ou impostas) que [...] encontram obediência quando a pessoa „autorizada‟ a exige”, ao exercer o “[...] seu poder legítimo [...] de acordo com aquelas regras”. (2) O patriarcal

– baseado “[...] em autoridade pessoal [...]” fundada “[...] no habitual, no que tem sido assim desde sempre [...]”.

(3) O carismático – baseado na entrega “[...] ao extraordinário, na crença, no carisma, [...] na graça concedida

surgimento das primeiras grandes companhias transnacionais7, dotadas de estruturas organizacionais sofisticadas, somente comparáveis, mas menos poderosas, à estrutura pré- existente da Igreja.

Ao final do curso de sua evolução, o Estado monárquico absolutista alcançava a seguinte configuração: (1) soberania sobre o território e centralização governativa na figura do rei; (2) aparato burocrático de apoio ao Governo, constituído por um amplo funcionalismo; (3) tributação exclusiva por meio da cobrança de impostos aos súditos; (4) centralização da gestão da moeda e uniformização do sistema de pesos e medidas para possibilitar a expansão territorial do comércio; (5) uniformização lingüística em favor da coesão territorial; (6) monopólio do exercício da violência para sustentar o poder centralizado; (7) formação do exército nacional em substituição à cavalaria feudal para garantir a integridade do território; e, (8) delimitação fronteiriça.

A terra manteve-se como bem de valor supremo até a transição dos séculos XVIII/XIX, época em que perdeu posição para o capital, fundamento da riqueza e do poder. Da Revolução Francesa ao Congresso de Viena foram alterados, significativamente, o perfil e a forma legal de distribuição da terra, a conformação das fronteiras dos reinos, os modelos políticos de gestão do Estado, o “modus vivendi” das pessoas, a distribuição destas no espaço e a posição de classe dominante na sociedade.