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Capítulo 1 Fundamentos estruturais do Estado-Nação: elementos conceituais, teoria e

1.4 O Estado-nação ferido de morte (1914-1945)

1.4.1 Geopolítica, economia e sociedade em tempos de guerra

A geopolítica21 surgia vigorosa “na era dos impérios”. No período entre as Guerras assumia importância doutrinária e ganhava influência notável frente às políticas nacionais.

20 Weber (2004) concordou com Ratzel (1897) sobre a predestinação das grandes potências ao crescimento: sua grandeza original constituía um perigo potencial para as comunidades políticas vizinhas. Este fato alimentava ameaças, que deflagravam processos de expansão territorial para neutralizá-las. Esta forçosa dinâmica de poder consubstanciava grave empecilho à paz. Mesmo se empenhadas em adotar uma política de restrição ao crescimento no longo prazo, as nações de vocação expansionista eram levadas por interesses de primazia econômica capitalista a evitá-la.

21 Costa (1992, p. 55) e outros geógrafos entenderam a geopolítica como um mero “[...] reducionismo técnico e

programático da geografia política [...]”. Esta escola teria selecionado e se apropriado de alguns “[...] postulados gerais para aplicá-los na análise de situações concretas interessantes ao jogo de forças estatais

Rudolf Kjéllen (1864-1922), membro dessa escola geográfica, ganhava notoriedade com a sua obra “Teoria orgânica do Estado” 22. Este autor via o Estado como um organismo vivo que

“[...] nasce, cresce e morre em meio a lutas e conflitos biológicos, dominado por duas

essências principais (o meio e a raça) e três secundárias (a economia, a sociedade e o

governo)”. (KJÉLLEN, apud COSTA, 1992, p.56). Seu caráter orgânico tornava imperiosa a

expansão territorial “[...] por colonização, amalgamação ou conquista”. (idem, 1992, p.56). Os modelos geopolíticos ganharam vida (assim como as teses de geógrafos em posição de autoridade nas corporações militares23), onde se transformaram em estratégias de dominação territorial. Estas estratégias fizeram crescer os poderes policial e militar, ao proporcionarem às duas forças grande influência no processo decisório estatal doméstico e o acúmulo de funções administrativas em países colonizados para assegurar, pela força e com o respaldo da lei, a apropriação das riquezas coloniais.

Becker (2001) ressaltou no discurso geopolítico os imperativos estratégicos fundados na lógica militar associada ao Estado e a relação deste com a guerra, a religião, a ideologia e a economia. Nessa época, o interesse geopolítico de um Estado em relação ao seu próprio território restringia-se às suas dimensões e aos recursos oferecidos para justificar a avaliação de sua posição de poder.

Arendt (1998) percebeu nos novos elementos incrementados nos Estados-nações, relativos às políticas territoriais de caráter imperialista, a ratificação da descrição

“hobbesiana” de Estado. Foram estes os elementos: (1) disseminação da política externa

imperialista; (2) flexibilização das restrições legais à “cobiça das classes proprietárias”; (3) priorização da expansão territorial do poder; (4) empoderamento político das instituições responsáveis pelo monopólio da violência; (5) contaminação da gestão pública com a liberdade exercida no mercado (confusão dos interesses públicos e privados); (6) superação da finitude privada na infinitude do público, obtendo assim a perpetuação da acumulação de poder e riqueza; (7) alienação do povo quanto à direção política da nação; (8) exacerbação do

projetadas no espaço”. O cientista político Fiori (2007, p. 1) ratificou essa ideia ao afirmá-la, não como ciência,

mas “[...] apenas uma disciplina que estuda a relação entre o espaço e a expansão do poder, antecipando e

racionalizando as decisões estratégicas dos países que exercem poder fora de suas fronteiras nacionais”. Essas

visões depreciadoras da geopolítica são justificadas por suas fragilidades metodológicas, assim como pelo uso mal refletido de suas proposições, especialmente pelos Governos fascistas, como razão para ações violentas no contexto da Segunda Grande Guerra.

22 Autores que se inspiraram em Kjéllen: K. Hauschofer, E. Obst, O. Maull e Albrecht Maull. No Brasil: os generais Mário Travassos, Golbery do Couto e Silva e Meira Matos; e o brigadeiro Lysias Rodrigues.

23 Desde os anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial ganharam evidência três hipóteses de dominação mundial formuladas por geopolíticos ingleses, alemães e norte-americanos. As hipóteses do inglês Mackinder e do alemão Hauschofer se ativeram ao poder terrestre. Um pouco mais tarde, no pós-guerra, ganhou vulto a hipótese de Spykman, baseada no poder marítimo.

interesse individual; (9) subversão dos valores éticos; (10) ascensão da classe burguesa autóctone nas administrações coloniais em posição de subalternidade.

Este Estado imperialista incorporou os interesses individuais e passou a negar profundamente as conquistas proporcionadas pelos ideais inscritos na Revolução Francesa. Era o tempo do totalitarismo terrorista. “Ao nível político das grandes potências, o totalitarismo corporificado em Estados-nações belicistas rompe os limites do direito internacional e atrasa o projeto de humanização das relações sociais iniciado no

Iluminismo”. (HABERMAS, 2001, p.59). O incidente de Seravejo havia proporcionado tão

somente a oportunidade de desencadear o confronto generalizado. A fusão da política com a economia no âmbito do Estado capitalista, ao implementar suas políticas extraterritoriais irrestritas, forjava o contexto24 que culminaria na Primeira Guerra Mundial. Para Arendt (1998), o Estado-nação estava ferido de morte!

Finalizada a Guerra, a “Paix de Versailles” levou a rearranjos territoriais na Europa Central que, segundo Dix25, desconsideraram recomendações de ordem geopolítica e visaram tão somente a isolar e enfraquecer a Alemanha e a desarticular os blocos dos impérios centrais. Dessa forma, acirraram-se os interesses seculares da região, tornando o acordo incapaz de sustentar paz duradoura: “[...] outra guerra era praticamente certa”. (HOBSBAWM, 1995, p. 42).

A Grande Depressão26 abateu-se sobre a economia mundial poucos anos depois da rendição alemã. Hobsbawn (1995, p. 103-104) destacou dentre as suas causas: (1) a posição privilegiada dos Estados Unidos como credor do resto do mundo, e sua recusa em agir como estabilizador econômico global; (2) a incapacidade de a economia mundial absorver a produção em crescimento, dada a contenção dos salários; e (3) os aumentos sucessivos dos preços nos mercados oligopólicos, o que provocava concentração da renda e redução da demanda.

Eliminar o liberalismo econômico com vistas a reverter a Grande Depressão interrompeu as relações comerciais generalizadas entre os países e, assim, suspendeu uma condição indispensável para o progresso e para a paz. Esta foi a consequência mais grave da crise de 1929. Os seguintes fatos corroboram esta constatação: (1) a queda do comércio mundial com o erguimento de barreiras protecionistas de mercado interno e a interrupção do

24 Contexto mundial na transição dos séculos XIX/XX: imperialismo, com distribuição privilegiada de colônias; nacionalismos exacerbados, conflitos territoriais e reivindicações étnicas; corrida armamentista e excessivo poderio militar frente às políticas domésticas.

25 Dix (1929) Geografia Política.

26 Nos ciclos de ondas longas definidos por Kondratiev (1925), a Grande Depressão constituiu o “vale” do declínio da terceira onda longa, última do ciclo histórico.

sistema mundial de comércio multilateral; (2) o abandono da equivalência fixa entre as moedas, fundada no padrão-ouro (1931/32); e (3) a priorização de políticas de pleno emprego. (HOBSBAWN, 1995, p.99). Outra consequência foi a dúvida surgida com respeito à efetividade da democracia representativa em situação de crise econômica frente à luta de classes ideologicamente intransigente.

Ao reforçar as condições autárquicas, esta “[...] catástrofe [...] destruiu toda a

esperança de restaurar a economia e a sociedade do longo século XIX” e provocou um

retrocesso generalizado no avanço político democrático europeu27. (HOBSBAWN, 1995, p.111). Nessa ocasião surgiram “três opções pela hegemonia intelectual-política” nos países ocidentais (idem, 1995, p.111): (1) o comunismo marxista, implantado na URSS pela Revolução de Outubro (1917); (2) o capitalismo reformado, onde se enquadrou a política social-democrática sueca28 arquitetada por Gunnar Myrdal; e (3) o nazi-fascismo, movimento totalitário mundialmente ameaçador.

Esta profunda crise social associada aos termos da “Paix de Versailles” desencadeou os movimentos belicosos impetrados pela Alemanha, Japão e Itália, orientados por uma geopolítica própria. Estes países, unidos por diversos tratados firmados durante a década de 1930, assumiram posição crescentemente agressora,29 que culminou com o desencadeamento do novo conflito mundial. Os outros Estados, fragilizados pela Primeira Guerra, se empenharam inutilmente em evitá-lo.

Superada a Segunda Grande Guerra, o geógrafo Hartshorne (1899-1992), com sua obra “The functional approach in political geography”, ganhou expressão frente à escola geopolítica mundial. Sua ideologia privilegiava as “relações de estabilidade” entre os Estados e seus respectivos territórios. Segundo seu pensamento, reproduzido por Costa:

27 “[...] no final da década de 1930 [...] a economia mundial podia ser vista como um sistema tríplice composto

de um setor de mercado, um governamental (... economias planejadas ou controladas, Japão, Turquia, Alemanha e União Soviética, [em] transações umas com as outras), e um setor de autoridades públicas e quase públicas internacionais que regulavam algumas partes da economia (por exemplo, com acordos internacionais de mercadorias)”. (HOBSBAWN, 1995, p.108).

28 Segundo Hobsbawn (1995, p. 111), Karl Gunnar Myrdal (1898-1987), sociólogo e economista sueco, foi um dos maiores arquitetos do Estado do bem estar social implantado em 1932 na Suécia em “reação consciente aos

fracassos da ortodoxia econômica” que, segundo ele, dominou o “desastroso governo trabalhista britânico de

1929-31”. Após trinta anos de observação do funcionamento deste Estado na Suécia, Myrdal registrou (1962)

como é notável a capacidade do ser humano de se adaptar a uma situação de maior intervenção, desde que evitada a imposição “a partir de cima, por uma ditadura estatal”. E atestou: “a maioria das pessoas tem bons

motivos para sentirem-se mais livres, e não menos livres”. (MYRDAL, 1962, p. 99). Este Estado rompeu os

grilhões da não participação nas escolhas políticas, nas oportunidades econômicas e sociais e na inclusão geográfica.

29 Cronologia dos episódios detonadores da Segunda Guerra Mundial: 1931 - invasão da Manchúria pelo Japão; 1935 - invasão da Etiópia pela Itália; 1936-9 - intervenção italiana e alemã na Guerra Civil espanhola; 1938 - invasão da Áustria pela Alemanha; 1939 - ocupação da Albânia pela Itália; 1939 - exigências alemãs à Polônia e eclosão da guerra total. (Hobsbawn, 1995, p. 44).

[...] é preciso abandonar de vez a „abordagem morfológica do Estado introduzida

pela escola alemã desde Ratzel, que reduziu o „Estado-área‟ à sua dimensão, forma, localização, fronteiras, regiões naturais, etc., o que redunda em visão puramente morfológica e estática dele. A seu ver, em vez disso, é necessário conhecer o funcionamento do „Estado-área‟, que determina todos os seus demais níveis, até o da sua própria morfologia. (COSTA,1992,p.160).

Hartshorne (apud COSTA, 1992) interessou-se principalmente pelas áreas organizadas politicamente que pressupunham a participação e articulação dos cidadãos com as instituições estatais e admitia a existência de forças centrípetas responsáveis por tendência unificadora no Estado-área. Mas não subestimou a importância das forças centrífugas, quais sejam: as barreiras internas, físicas, étnicas, culturais etc. Com respeito à geopolítica pós-Segunda Guerra, defendeu em síntese que:

[...] o essencial estará sempre referido ao modo pelo qual a sociedade se interage no

interior do „Estado-área‟. Mais ainda, de como os grupos sociais definem o seu

comportamento político frente ao Estado e aos demais segmentos da sociedade [...] muitos são os fatores que podem impelir a sociedade em direção a movimentos de resistências contra as tentativas dos Estados de forçar a uniformidade. (HARTSHORNE, apud COSTA, 1992, p. 161).