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Capítulo 1 Fundamentos estruturais do Estado-Nação: elementos conceituais, teoria e

1.5 O Estado interventor (1945-1970)

Finalizada a Segunda Grande Guerra, iniciava-se uma nova fase para o mundo. Para o Estado, tratava-se de um estágio de “domesticação das forças bárbaras que irromperam na Alemanha do solo da civilização mesma”. (HABERMAS, 2001, p.61). Três fatos políticos relevantes destacaram-se nesta fase: a descolonização, a Guerra Fria e a construção do Estado social na Europa.

A Guerra Fria ratificou as previsões de natureza geopolítica divulgadas por Nicolas Spykman (1893-1943) em sua obra “America‟s strategy in world politics”. Fiori (2009) elogiou a genialidade de Spykman, em virtude de suas previsões, anteriores à entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Suas propostas teriam inspirado a política externa norte-americana nos três continentes e influenciado a manutenção no pós-guerra dos soldados norte-americanos em posições estratégicas na Europa (especialmente na Alemanha Ocidental) e no Japão.

Com base na idéia de que o poder é caracterizado pela instabilidade, Spykman (assim como Ratzel) defendeu que esta vicissitude fosse enfrentada por meio do controle do território, elemento este dotado de perenidade. Para Spykman (apud FIORI, 2009), o

“coração do mundo” se submeteria a quem o cercasse. Esta foi a estratégia adotada pelos

Estados Unidos durante a Guerra Fria. A URSS, pelo seu poderio bélico e por sua proximidade do “coração do mundo”, ameaçava crescer sua influência, especialmente ideológica contrária às convicções norte-americanas. “Esta perspectiva não agradava as administrações americanas que tinham como principal preocupação, nos finais da década de

40, estancar o avanço do comunismo”. (VALENTIN, 2009, p. 2).

A Guerra Fria prolongou-se até o fim da década de 1980. Até então, o mundo conviveu com a tensão da disputa de influência entre os dois tipos opostos de organizações sociais liderados pelos EUA e pela URSS. Estes dois Estados, aliados em luta contra o nazi- fascismo durante a Guerra, tornaram-se inimigos mortais superado o grande conflito. Segundo Habermas (2001, p. 59), a Revolução de Outubro na URSS (1917) havia sido interpretada sob dois pontos de vista diferentes. Para a esquerda, desencadeara uma “guerra civil mundial [pela implantação dos] projetos utópicos da democracia mundial e da revolução mundial”, (HABERMAS, 2001, p. 59), com vistas a elevar ao poder a classe trabalhadora. Para a direita, o governo totalitário implantado fora apenas um desvio no curso natural da história, que retornou à trilha normal a partir de 1989.

O movimento antifascista, surgido no pós-guerra, buscou recuperar as conquistas do Iluminismo e das revoluções democráticas. Os ideais resgatados foram o progresso resultante da aplicação da razão, ciência e educação; a eliminação da desigualdade baseada em nascimento ou origem; bem como a afirmação de uma sociedade voltada mais para o futuro do que para o passado. Neste contexto, ganhou relevância a obra de John Maynard Keynes (1883-1946), que propunha um novo capitalismo, com conteúdo “social”. Ao conseguir flexibilizar o radicalismo de direita, este economista liberal prestou inestimável contribuição à humanidade.

Keynes propôs o aumento da intervenção do Estado na economia, partindo da crítica ao modelo argumentativo liberal30. Ele iniciou sua reflexão ao observar que a economia inglesa permanecia em uma posição de equilíbrio sem crescimento desde a Grande Depressão. Isto o convenceu da incapacidade de a dinâmica de mercado promover o pleno emprego dos

30 Segundo Harcourt, (1989, p. 56-59), a crítica “keynesiana” ao Estado liberal desprezou a realidade microeconômica da competição imperfeita ao adotar para a análise o modelo de fixação de preços

“marshalliano” de curto prazo. Para Minsk (apud HARCOURT, 1989) seria imprescindível restabelecer estruturas de mercado competitivas para o sucesso das políticas macroeconômicas “keynesianas”.

recursos e o inspirou a desenvolver um novo modelo de Estado liberal dotado de novas funções.

O espaço de atuação governamental recomendado por Keynes estivera afeto à propensão a se consumir por meio da política tributária e/ou da fixação da taxa de juros e/ou, ainda, de uma socialização “algo ampla” do investimento. Todos estes meios pretenderam assegurar uma posição mais próxima do equilíbrio econômico de pleno emprego dos recursos produtivos. Keynes (1936) enfatizara que não cabia ao Estado determinar o que produzir, mas sim, preservar ao mercado livre a alocação dos recursos. Segundo ele, era a quantidade e não a qualidade da alocação efetiva que responderia pelo colapso do sistema capitalista31.

Keynes cuidou de preservar a liberdade na distribuição dos fatores de produção para evitar o desinteresse dos homens pelo jogo de mercado. Segundo Keynes, “[...] a sabedoria e a prudência da arte política devem permitir a prática do jogo, [...] sob certas regras e limitações, [pois] o homem comum (ou mesmo uma fração importante da comunidade) é altamente inclinado à paixão pelo lucro”. (KEYNES, 1982, p. 285). Logo, o Estado não deveria assumir a propriedade dos meios de produção, posto que “existem valiosas atividades humanas que requerem o motivo do lucro e a atmosfera da propriedade privada de riqueza

para que possam dar os seus frutos”. (idem, 1982, p. 285).

Na argumentação em favor de sua teoria, Keynes (1936) associou o risco de guerra às pretensões de poder e à influência dos problemas de ordem econômica, especialmente o desemprego no mercado de trabalho. Ele considerou, ainda, a importância dos países disporem de instrumentos internos para promoverem o alargamento de seus próprios mercados, evitando imposições externas e, consequentemente, conflitos internacionais.

A guerra tem diversas causas. Os ditadores e pessoas semelhantes, aos quais a guerra oferece, pelo menos em expectativa, uma excitação deleitável, não encontram dificuldade em fomentar a natural belicosidade de seus povos. Porém, além disso, facilitando o seu trabalho de insuflar as chamas do entusiasmo do povo, aparecem as causas econômicas da guerra, ou seja, as pressões da população e a luta acirrada pelos mercados. (KEYNES, 1982, p. 290).

O primeiro teste da teoria “keynesiana” foi o programa de ação implementado pelo presidente Franklyn Delano Roosevelt – “New Deal” 32 –, nos Estados Unidos entre os anos

31 Contemporaneamente, esta convicção está por trás dos graves problemas ambientais enfrentados pela humanidade.

32 São exemplos de algumas medidas embutidas no “New Deal”: (1) regulamentações governamentais sobre os setores econômicos e financeiros; (2) fiscalização das atividades bancárias e da Bolsa de Valores; (3) intervenção nos sindicatos e associações operárias; (4) priorização do consumo do governo junto às empresas nacionais; (5) realização de obras públicas – estradas, barragens, saneamento.

1933 a 1945 para resgatar o crescimento econômico interrompido por ocasião da Grande Depressão. Depois da Segunda Guerra Mundial, a maioria das economias ocidentais passou a adotar políticas orçamentárias, fiscais e monetárias, bem como realizar investimentos públicos com o objetivo de promover posições de pleno emprego.

O feito maior da “Teoria Geral” de Keynes (1936) ao revolucionar a teoria econômica foi evitar a falência do modo de organização social liberal. A generalização da aplicação de suas recomendações no pós-Guerra fez com que as economias capitalistas se inserissem numa fase de crescimento “saudável” e sem precedentes até o início da década de 1970. Ao demonstrar a importância da realização do investimento público dirigido a qualquer setor, preservados aqueles de interesse potencial da iniciativa privada, o modelo “keynesiano” viabilizou os investimentos sociais e justificou, do ponto de vista da racionalidade econômica, a sustentabilidade do Estado do bem estar social, implantado previamente por Myrdal na Suécia. Em outros países, especialmente no Brasil, o Estado intervencionista constituiu-se na forma do Estado desenvolvimentista planejador. Todavia, o Estado planejador brasileiro antecedera ao modelo “keynesiano”. Suas bases começaram a ser constituídas já no final do século XVIII e sua primeira realização foi a implantação da capital de Minas Gerais.

A implantação das medidas preconizadas por Keynes inseriu as economias num “jogo

de soma positiva”, no qual as duas classes normalmente em conflito se beneficiavam ao levar

em consideração o interesse de uma e da outra. Os trabalhadores aceitavam a apropriação do lucro pelos capitalistas e lhes delegavam a responsabilidade pela geração do emprego e aumento da renda. Já os empresários se comprometiam com pagamento dos salários e as despesas do Estado de bem estar social. De um lado, tornava-se mais admissível o trabalho assalariado e diminuía o risco decorrente da transformação do fator trabalho em mercadoria. De outro lado, a neutralização do conflito entre as classes diminuía consideravelmente os custos econômicos provocados pelas eventuais paralisações dos trabalhadores.

Durante seu período de sucesso (1945/1970) o Estado de bem estar social promoveu a neutralização do conflito de classe típico da industrialização ao ampliar os sistemas de seguridade social, concretizar políticas de igualdade de oportunidades, reformar os sistemas educacionais, de saúde, jurídico etc., e, assim, fortaleceu o âmago da cidadania e conscientizou o povo de seus direitos fundamentais.

A cidadania promovida baseou-se em três aspectos que apelavam permanentemente para a resposta do Estado no intuito de subjugar definitivamente as idiossincrasias culturais. Foram estes: (1) os cidadãos “constituem a principal fonte da vontade política coletiva, na

cidadãos “são os „sujeitos‟ contra quem essa vontade pode ser imposta e cujos direitos e liberdades civis, ao constituírem uma esfera autônoma de ação social, cultural, política e

econômica „privada‟, impõem limites sobre a autoridade do Estado”; (3) os cidadãos “são

clientes que dependem dos serviços, dos programas e dos bens coletivos fornecidos pelo Estado para garantirem os seus meios de sobrevivência e de bem estar material, social e

cultural em sociedade”. (OFFE, 1994, p. 269).

As atribuições relevantes do modelo de Estado “keynesiano” foram: (1) suprir de maneira coletiva algumas necessidades da classe trabalhadora para esvaziar os conflitos; (2) introduzir regularidade e previsibilidade na produção; (3) dotar a economia de um instrumento de estabilização de modo a tornar o emprego independente da demanda efetiva. (OFFE, 1984a).

Os elos funcionais entre a política econômica “keynesiana”, o crescimento econômico e o “welfare state” são bastante óbvios e aprovados por todos os sócios e

partes envolvidas. Uma política econômica „ativa‟ estimula e regulariza o crescimento econômico; o „dividendo dos impostos‟ [...] permite a ampliação dos

programas do “welfare state”; e, ao mesmo tempo, o crescimento econômico continuado limita a extensão em que efetivamente são reclamadas as provisões do

“welfare state” (como o seguro desemprego). Em consequência, os temas e conflitos

para serem resolvidos no âmbito da política formal de competição partidária e do parlamento [... passam a ser] de natureza [muito] fragmentária, não polarizante e não-fundamental (pelo menos nas áreas de política econômica e social). (OFFE, 1984a, p. 375).

O “welfare state” incorporou as políticas sociais assistencialistas pontuais, praticadas até então em um conjunto de medidas de caráter universalista e abrangente no sentido do resgate da cidadania plena, tanto civil, quanto política e social. Fiori (2009, p. 4-5), ao atribuir ao surgimento deste Estado o caráter de resposta liberal à ameaça soviética, acatava as considerações de diversos autores, especialmente Mirsha e Claus Offe, para identificar os cinco pilares de sustentação do Estado do bem estar social, presentes em suas diversas modalidades:

1. A generalização do paradigma “fordista” e de um acordo suprapartidário em favor

do crescimento e do pleno emprego.

2. A sustentação de um ritmo de crescimento econômico firme, responsável por ganhos fiscais crescentes alocados por alianças políticas socialmente dirigidas. 3. A estabilidade da economia global apoiada nos acordos de Bretton Woods.

4. O compartilhamento por vencidos e vencedores do ambiente de solidariedade mundial de pós-guerra.

5. O progresso das democracias partidárias e de massa nos países desenvolvidos, com o aumento da importância das reivindicações trabalhistas encaminhadas por meio da representação política dos trabalhadores.

Porém, a política protetora do Estado social33 promoveu uma sobrecarga no orçamento público devido à perda da proporcionalidade sustentável entre produção privada, arrecadação tributária e gastos sociais. O incremento do investimento estatal na oferta de bens de caráter social se tornou superior ao crescimento da base de ingressos do Estado. Assim, concomitantemente à ampliação do acesso aos bens públicos, observavam-se conflitos frequentes de ordem econômica, política e ideológica. Do ponto de vista econômico, este Estado ameaçou o modelo de livre mercado em face da realização de uma espécie de desapropriação parcial temporária. Perante a estrutura política, essas ações introduziram instituições submetidas a mecanismos de controle estranhos à lógica do mercado, cujas participações, tanto no mercado de trabalho quanto no setor produtivo, se tornaram crescentes34.

Assim, o “welfare state” entrou em xeque ao buscar proteger as pessoas adversamente afetadas pela economia industrial e reduzir efetivamente a desigualdade social. Mas, suas políticas passaram a gerar desemprego e inflação. Economistas, tanto da vertente neoclássica quanto neomarxista, concordaram com os seguintes pontos falhos em sua implementação: (1) a exacerbação no uso de políticas anticíclicas e a neutralização da “função positiva” das crises na forma da “destruição criativa” de Schumpeter; e (2) o desestímulo ao investimento e ao trabalho. (OFFE, 1984a, p. 379). De fato, o principal argumento neoclássico contra o

“welfare state” se constituiu na impossibilidade de se prever o alcance ótimo do mecanismo

de ajuste da política social de modo a evitar consequências contraditórias entre si.

Offe (1984a) concordou com os seguintes aspectos: (1) o Estado do bem estar social havia sido “vítima de seu próprio sucesso”, (LOGUE, apud OFFE, 1984a, p. 380); e (2) os efeitos colaterais das políticas macroeconômicas geraram problemas fora do alcance de sua capacidade de gestão. Sua atuação exagerara o peso do setor público não-produtivo sobre o setor privado e provocara a carência persistente de recursos para investimentos;

33 As políticas sociais atuam nos segmentos educacional, habitacional, hospitalar, de transporte e prisional, entre outros.

34 Com respeito às questões ideológicas, Offe (1984) discriminou dois aspectos do liberalismo afetados pelas

políticas sociais: (1) o “utilitarismo possessivo” (busca permanente do aumento da competitividade); (2) o “individualismo possessivo” (disponibilidade das pessoas para internalizar as perdas naturais do jogo

competitivo). Ou seja, a oferta pública de bens retirou a pressão competitiva própria do exclusivo mercantil e a desoneração do consumidor introduziu uma expectativa de abundância que as pessoas não desejam perder.

comprometera gradativamente a ética do trabalho; e sacrificara a classe média com o peso das taxações e da inflação.

Assim, exauriu-se o potencial de viabilidade do Estado “keynesiano”, cujas políticas foram sendo crescentemente abandonadas em favor da exigência “neoliberal” de inserção dos países numa economia global de modo a frear a evolução típica de um Estado regulador. Dentre os sucessos deste Estado, Offe (1984 a) destacou os seguintes: (i) do ponto de vista administrativo, conseguiu estabelecer um espaço de ação legalmente institucionalizado e diferenciado da circulação da economia de mercado; (ii) do ponto de vista fiscal, manteve a dependência da economia capitalista; (iii) do ponto de vista de sua sustentação nacional, adotou formas democráticas de legitimação; e (iv) do ponto de vista social, obteve a regulação de uma economia política.