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A lógica da competência na educação brasileira

O ENSINO MÉDIO E A FORMAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS BÁSICAS PARA O MUNDO DO TRABALHO

3.1 Da qualificação ao modelo da competência

3.1.1 A lógica da competência na educação brasileira

No plano educacional, o modelo pedagógico centrado na competência expressou-se inicialmente no ensino técnico profissionalizante por meio da avaliação - dado o comprometimento mais imediato dessa modalidade de ensino com o processo produtivo -, e posteriormente passou a ser adotado implícita e explicitamente na educação em geral.

A disseminação dessa noção no ideário pedagógico brasileiro ocorreu também com a influência das obras de Phillipe Perrenoud, em especial do livro “Construir as competências desde a escola”. Para esse autor, assim como o mundo do trabalho apropriou-se da noção de competência, a escola está seguindo os mesmos passos, sob o pretexto da modernização e da inserção nos valores do mercado (gestão de recursos humanos, busca da qualidade, valorização da excelência etc.).

Mesmo defendendo que a noção de competência deve constituir-se em uns dos princípios organizadores da formação, pois pode responder a uma demanda social dirigida para a adaptação ao mercado e às mudanças em curso na sociedade, em entrevista dada em 2001 Perrenoud alerta que

Há uma tendência em ir rápido demais em todos os países que se lançam na elaboração de programas sem dedicar tempo em observar as práticas sociais, identificando situações nas quais as pessoas são e serão verdadeiramente confrontadas. O que sabemos verdadeiramente das competências que têm necessidade, no dia a dia, um desempregado, um imigrante, um portador de deficiência, uma mãe solteira, um dissidente, um jovem da periferia? (PERRENOUD, 2001 apud GONZÁLEZ; SILVA JUNIOR, 2001, p. 71).

O direcionamento para pedagogia das competências está também claramente destacado no Relatório da UNESCO “Educação para o Século XXI”, publicado em 1996, cuja elaboração ocorreu entre 1993 e 1996 sob a responsabilidade de uma Comissão Internacional, presidida por Jacques Delors. Esse documento expressa as competências como um dos principais elementos que devem direcionar a prática pedagógica nas escolas de ensino médio e profissionalizante.

No Brasil, a partir da aprovação da LBD nº 9.394/199685, a noção de competência passa a compor as diretrizes curriculares - implicitamente no ensino fundamental e como categoria central no ensino médio e técnico - e a reorientar o trabalho pedagógico em favor da transmissão de conteúdos voltados para a construção de competências. As Matrizes Curriculares de Referência para o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) apresentam um rol de competências, indicando que a partir do ensino fundamental, a noção de competência deve ser assumida como princípio organizador do currículo.

Assim, a partir do relatório da UNESCO, dos princípios da LDB 9.394/1996 e das Matrizes Curriculares de Referência para o SAEB, o MEC, através das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio-DCNEM, definiu novas diretrizes para esse nível de ensino, visando superar a visão academicista e propedêutica do currículo anterior86 que, segundo seus técnicos, era estritamente voltado para o acesso ao ensino superior. Para os representantes do MEC, era necessário direcioná-lo para uma concepção de educação geral que procurasse desenvolver as competências e habilidades dos alunos de modo a atender às exigências da sociedade contemporânea e da produção pós-fordista.

Fundamentados na idéia de que assim como o mundo da produção não estaria mais assentado no paradigma taylorista/fordista, mas num paradigma flexível de organização e gestão de trabalho que enfatiza a polivalência, os reformadores destacam a formação geral como o melhor meio de preparação para o mercado de trabalho, ou seja, para que os jovens possam ter determinadas condições de empregabilidade.

A justificativa para o enfoque na formação geral, segundo o “Documento básico do ENEM”, estaria pautada nas tendências internacionais que enfatizavam a importância de tal formação, “[...] não só para a continuidade da vida acadêmica,

85 A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional aprovada em 17 de dezembro de 1996 e

promulgada em 20 de dezembro do mesmo ano, ceifando a fecundidade e o sentido original dos debates e movimentos dos educadores consolidados na década de 80, enfatiza que “a educação

básica tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (art. 22).

86 É importante lembrar que historicamente o ensino médio no Brasil tem referendado a dualidade

estrutural da sociedade brasileira, expressão das relações entre capital e trabalho, como tão bem analisa Gramsci ao criticar a dualidade da escola burguesa que de um lado, forma especialistas (técnico-científico-polítco) e de outro, forma técnicos (instrumentais e práticos). In: GRAMSCI, A. Os

como também para uma atuação autônoma do sujeito na vida social, com destaque à sua inserção no mercado de trabalho, que se torna mais e mais competitivo.” (BRASIL, 1998b, p. 1, grifo nosso).

Em outro artigo denominado “Competências, conhecimentos e valores na concepção curricular do novo ensino médio”, publicado pelo MEC em 200087, também está proposto que a nova organização curricular do ensino médio, ao invés de uma lista de disciplinas e de conteúdos obrigatórios, deve ser composta por um conjunto de competências e habilidades a serem construídas pelos educandos ao longo de três anos de ensino médio, sendo que muitas vezes essas competências e habilidades pressupõem a consolidação e o aprofundamento de aprendizagens anteriores (BRASIL, 2000b).

Esse documento enfatiza ainda que será necessário superar a superlotação do currículo tradicional, demasiadamente inchado de conteúdos muitas vezes inexpressivos do ponto de vista da vida concreta dos educandos fora da escola. Daí a ênfase na aquisição das competências e habilidades básicas para o cidadão viver plenamente nas dimensões pessoal, civil e profissional (BRASIL, 2000b).

Para tanto, de acordo com as Diretrizes Nacionais Curriculares do Ensino Médio-DCNEM, a formação básica a ser buscada nesse nível de ensino “[...] realizar-se-á mais pela constituição de competências, habilidades e disposição de condutas do que pela quantidade de informação [...]” (BRASIL, 1999, p. 74). Desse modo, os idealizadores da reforma do ensino médio estabelecem que organização curricular deverá atender aos seguintes desafios:

- desbastar o currículo enciclopédico, congestionado de informações, priorizando conhecimentos e competências de tipo geral, que são pré-requisito para a inserção profissional e para a continuidade dos estudos;

- (re)significar os conteúdos curriculares como meios para constituição de competências e valores, e não como objetivos do ensino em si mesmos;

- trabalhar linguagens não apenas como formas de expressão e comunicação, mas como constituidoras de significados, conhecimentos e valores;

- adotar estratégias de ensino diversificadas que mobilizem menos a memória e mais o raciocínio e outras competências cognitivas superiores;

- estimular todos os procedimentos e atividades que permitam ao aluno reconstruir ou reiventar o conhecimento didaticamente transposto para a sala de aula, entre eles a experimentação, a execução de projetos, o protagonismo em situações sociais;

- organizar os conteúdos de ensino em estudos ou áreas interdisciplinares e projetos que melhor abriguem a visão orgânica do conhecimento;

- tratar os conteúdos de ensino de modo contextualizado, aproveitando as relações entre conteúdos e contextos;

- lidar com os sentimentos associados às situações de aprendizagem para facilitar a relação do aluno com o conhecimento (BRASIL, 1999).

Nesse sentido, para os idealizadores das DCNEM, o ensino médio, em vez de estabelecer disciplinas e conteúdos específicos, deverá destacar as competências de caráter geral, necessárias tanto para o desempenho de atividade profissionais, como para o exercício da cidadania, dentre as quais a capacidade de aprender é decisiva. Para eles, o aluno é visto apenas como um recipiente a encher de dados empíricos, de fatos brutos e desconexos, “[...] que ele depois poderá classificar em seu cérebro como nas colunas de um dicionário, para poder em seguida, em cada ocasião concreta, responder aos vários estímulos do mundo exterior”. (GRAMSCI, 2004, p.57).

Além da capacidade de aprender, ou seja, de buscar o conhecimento, as DCNEM enumeram as seguintes competências que devem ser desenvolvidas e aperfeiçoadas pelos alunos ao longo dos três anos do ensino médio: capacidade de abstração; desenvolvimento do pensamento sistêmico, ao contrário da compreensão parcial fragmentada dos fenômenos; criatividade, curiosidade, capacidade de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema; desenvolvimento do pensamento divergente; capacidade de trabalhar em equipe; disposição para procurar e aceitar críticas; desenvolvimento do pensamento crítico e saber comunicar-se (BRASIL, 1999).

Os documentos do MEC enfatizam que essas competências e habilidades são “[...] modalidades estruturais da inteligência. São os esquemas mentais de que nos

fala Piaget88, constituindo antes um conjunto de potencialidades e possibilidades do que resultados ou desempenhos [...]” (BRASIL, 2000b p. 3). Nessa perspectiva, as competências seriam as ações e operações que os indivíduos utilizam para estabelecer relações com e entre objetos, situações e fenômenos, enquanto que as habilidades decorreriam das competências adquiridas, pois estariam relacionadas ao plano imediato do saber-fazer.

Em outro documento do MEC -“Eixos cognitivos do enem” (2002) - também está subjacente essa idéia de competências baseada num construtivismo eclético89. Este documento destaca que o Exame Nacional do Ensino Médio-ENEM foi estruturado a partir de uma matriz de cinco competências que são essenciais ao desenvolvimento e preparo dos alunos para enfrentar as exigências do mundo contemporâneo: dominar linguagens; compreender fenômenos; enfrentar situações- problemas; construir argumentações e elaborar propostas (BRASIL, 2002a).

Ainda segundo esse documento, o modelo de avaliação proposto para o ENEM busca medir e qualificar as estruturas mentais que permeiam as interações do sujeito com a realidade física e social hoje cheia de contínuas transformações. Além disso, foca particularmente as competências e habilidades básicas que, teoricamente, são desenvolvidas, transformadas e aperfeiçoadas também por meio da mediação da escola (BRASIL, 2002a).

De acordo com os idealizadores da reforma, essas competências são descritas com base nas operações formais de Piaget: capacidade de levantar todas as possibilidades para resolver um problema, formulação de hipóteses, combinação de todas as possibilidades e separação de varáveis para testar a influência de vários

88 Segundo Piaget, o desenvolvimento cognitivo ocorre por meio da interação do sujeito com o mundo

exterior, em um processo de adaptação constituído por dois pólos: a assimilação e a acomodação. A assimilação ocorre quando a criança aplica sobre os objetos os esquemas de que já dispõe ou que já foram adquiridos. A acomodação ocorre quando o ambiente força o aparecimento de uma nova resposta. Assim, o sujeito precisa reorganizar os elementos de que dispõe, fazendo variar os esquemas, ou seja, acomodá-los em função das exigências que o meio lhe faz. Ver: PIAGET, J. A

equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

89 Para Duarte, nos Parâmetros Curriculares do MEC existe a influência do construtivismo eclético de

César Coll que assessorou a formulação dos PCN’s no Brasil. A terminologia usada é característica do discurso construtivista no Brasil, acrescido por um nítido esforço de utilização de termos e expressões que caracterizam um tom politizado e crítico do texto, buscando assim fazer tal concepção aparentar proximidade com as concepções educacionais críticas. Ver: DUARTE, N.

Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria

fatores, uso do raciocínio hipotético dedutivo, interpretação, análise e comparação, argumentação e generalização de diferentes conteúdos.

Duarte (2001), ao analisar as interfaces entre o construtivismo e o pós- modernismo, faz uma crítica ao construtivismo eclético dos Parâmetros Curriculares do Brasil. Para ele, no pensamento piagetiano o processo de conhecimento tem função adaptativa, à medida que esse conhecimento é algo que se refere não ao mundo exterior, mas aos processos e às estruturas de percepção e ação do sujeito. Portanto, afirma ele:

[...] assimilação, acomodação, equilíbrio, organização, interação e adaptação são conceitos indissociáveis na teoria de Piaget. Aqui existe um importante ponto de aproximação entre Piaget e a Escola Nova, isto é, entre a psicologia genética (ou epistemologia genética) e o “aprender a aprender”: o princípio de que a educação deva preparar o indivíduo para ser capaz de adaptar-se constantemente a um meio ambiente dinâmico. (DUARTE, 2001, p. 92).

De acordo com os idealizadores da reforma do Ensino Médio, a noção de competência adotada está ancorada em princípios que se aproximam da perspectiva construtivista90. Entretanto, observamos que de fato ela se fundamenta nas perspectivas condutivistas e funcionalistas91, ao confundir a noção de competência com os objetivos educacionais, ou seja, como atos observáveis ou comportamentos específicos de acordo com os perfis de competências e das descrições de atividades requeridas pela natureza do trabalho. Essa noção baseia-se também nas tradições ligadas às taxionomias92 que defendem a concepção de aprendizagem por objetivos, ou seja, a construção de instrumentos de aferição de capacidades e habilidades cognitivas, afetivas e psicomotoras.

90 Segundo Duarte (2001), no atual momento assistimos a um revigoramento das concepções

educativas baseadas no lema “aprender a aprender”. Esse revigoramento no Brasil ocorreu mediante a difusão da epistemologia e da psicologia de Piaget e foi tomado como referência para a expansão do movimento construtivista, cujo modismo pedagógico a partir da década de 80 passou a defender princípios pedagógicos aproximados aos do escolanovismo. Ver: DUARTE, N. Vigotski e o “aprender

a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 2 ed.

Campinas: Autores Associados, 2001.

91 A concepção funcionalista procura identificar as funções e subfunções de cada área profissional

que caracterizam o processo de produção, destacando as habilidades necessárias a cada atividade específica.

92 A partir de 1949, Bloom e sua equipe de pesquisadores começaram a elaborar um sistema de

classificação de objetivos para constituir a base do planejamento e do currículo norte-americano. O primeiro sistema, denominado domínio cognitivo, destacava as habilidades e capacidades intelectuais que poderiam ser expressas em termos de comportamentos e atitudes que pudessem ser usadas em várias situações. Ver: BLOOM, Bejamim S. et all. Taxinomia de objetivos educacionais: o domínio cognitivo. Porto Alegre: Globo, 1973.

No mesmo sentido encaminham-se os Referenciais Curriculares do Ensino Médio do Estado do Maranhão, ao enfatizar que a

[...] formação humana, para a vida social e produtiva, não mais repousa sobre a aquisição de modos de pensar e fazer bem definidos de acordo com a função a ser ocupada, mas passa a ser concebida como um resultado da articulação de diferentes elementos, pela mediação das relações que ocorrem no trabalho e na vida coletiva. (MARANHÃO, 2003, p. 18).

Na realidade, os PCN’s produzidos pelo MEC a partir da década de 1990, sob a coordenação de César Coll, adotam como referencial teórico um construtivismo eclético que incorpora expressões e conceitos de diversas correntes psicológicas e educacionais, fazendo-se passar por uma grande síntese e, dessa forma, procuram seduzir educadores defensores das mais diferentes idéias, fazendo-os crer que o construtivismo pode reunir diversas tendências do pensamento educacional (DUARTE, 2001).

Os redatores das Diretrizes Curriculares do Ensino Médio usam termos carregados de simbologias e significados que, aparentemente, falam de indivíduos criativos, exercício de cidadania, entretanto destacam que a escola tem a responsabilidade de constituição de identidades que integram conhecimentos, competências e valores para a inserção flexível no mundo do trabalho, ou seja, a formação dos indivíduos para adaptarem-se às demandas do processo de produção e reprodução do capital.

Os nossos reformadores tomam como pressupostos concepções que articulam linearmente e qualificam o trabalhador às mudanças tecnológicas e, ao fazerem isso, ratificam referenciais fenomênicos adequados ao atual momento do capitalismo. Utilizando-se da noção de competência de forma neopragmática, visam à adaptação dos indivíduos e buscam a produção de um novo tipo de trabalhador, cujos valores coletivos são transformados em valores individuais, direcionados para a resolução de problemas sem questionar as causas estruturais que os provocaram.

Desse modo, procuram suprimir a capacidade de reflexão dos indivíduos, à medida que tentam eternizar e consolidar a racionalidade capitalista mediante uma concepção educacional baseada num modelo de competências que não considera a história, eterniza o presente e faz a apologia do individualismo, da competitividade e da empregabilidade.

Conforme o exposto, podemos destacar que um dos aspectos fundamentais da chamada pedagogia das competências é tentar tornar o individuo cada vez mais dependente da produção do valor de troca, expressando um caráter integrador à lógica do capital, à medida que defende aprendizagens necessárias às mudanças do mundo do trabalho de forma a assegurar a hegemonia do capital baseada no aumento da produtividade e na crescente diminuição do número de trabalhadores necessários à produção de mercadorias.

Ao eleger a competência como elemento central dos processos formativos, dando-lhe um caráter disciplinador à medida que passa o saber-ser para além do saber-fazer, os idealizadores da reforma procuram estabelecer um vínculo entre os padrões, atitudes e valores e as necessidades postas pelas empresas. Eles ressaltam os atributos individuais dos trabalhadores numa perspectiva subjetivista e esquecem que as competências devem ser compreendidas como síntese de múltiplas dimensões, não podendo, portanto, serem restritas ao espaço e tempo da escola ou da formação profissional.

Como delegar à escola a função de desenvolver competências, fora de situações concretas de trabalho? Como o ensino médio pode confirmar que o aluno desenvolveu as competências necessárias aos diversos processos produtivos, se a competência é uma qualidade introjetada no trabalhador por meio de sua prática? Além das dificuldades inerentes aos processos educativos, existe um espaço temporal entre a conclusão do ensino médio e a entrada no mercado de trabalho.