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Os princípios e concepções que fundamentam as Diretrizes Curriculares do “novo” ensino médio

CRISE DO CAPITAL: PRODUÇÃO FLEXÍVEL, REFORMA DO ESTADO E REFORMAS EDUCACIONAIS

2.2 É preciso reformar o Estado

2.3.2 A reforma do ensino médio ressuscita o dualismo entre o ensino propedêutico e o ensino profissionalizante

2.3.2.1 Os princípios e concepções que fundamentam as Diretrizes Curriculares do “novo” ensino médio

As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio-DCNEM foram concebidas a partir de princípios filosóficos, pedagógicos e metodológicos.

Os princípios filosóficos denominados de fundamentos estéticos, políticos e éticos do novo ensino médio brasileiro são organizados sob três prismas: a estética da sensibilidade, a política da igualdade e a ética da identidade.

A estética da sensibilidade tem o pretexto de desenvolver a sensibilidade, substituindo a padronização da era das revoluções industriais pelo desenvolvimento da criatividade, do espírito inventivo, da curiosidade pelo inusitado, da afetividade, para facilitar a constituição de identidades capazes de suportar a inquietação, conviver com o incerto, o imprevisível e o diferente.

Como os reformadores do ensino médio estão preocupados com as transformações no modo de organização do trabalho, podemos depreender que essa estética espera que o trabalhador seja capaz de administrar os vários imprevistos no trabalho e adaptar-se às constantes mutações do mundo do trabalho: conviver com a incerteza de não ter emprego, de ser demitido a qualquer momento, de ter seu salário reduzido e de buscar diversas formas de criar seu próprio emprego.

De acordo com as DCNEM, a estética da sensibilidade sugere ainda

[...] a possibilidade de devolver ao âmbito do trabalho e da produção a criação e a beleza, daí banidas pela moralidade industrial taylorista. Por essa razão, procura não limitar o lúdico a espaços e tempos exclusivos, mas integrar diversão, alegria e senso de humor a dimensões da vida muitas vezes consideradas afetivamente austeras, como a escola, o trabalho, os deveres, a rotina cotidiana [...]” (BRASIL, 1999, p. 65).

Nesses termos, os idealizadores da reforma atribuem ao taylorismo/fordismo o roubo da beleza das relações sociais de produção, propondo um humanismo para um tempo de transição que é tão abstrato e vazio como o pensamento dos idealizadores da reforma, como se na história do capitalismo em algum momento o capital valorizou-se sem a exploração dos trabalhadores, ou como se na produção pós-fordista o envolvimento estimulado, a flexibilidade e a polivalência do trabalhador possibilitassem a não conformação psicofísica e moral diante das necessidades de valorização do capital.

Talvez a recuperação da beleza das relações sociais de produção que foi roubada pelo taylorismo/fordismo deve se dar mediante a preparação do educando para a aceitação das novas condições impostas pela sociedade pós-industrial, pois o novo ensino médio deve formar pessoas que saibam usar o tempo livre de forma produtiva e criadora e que sejam empreendedoras, ou seja, que tenham, nos termos de Gramsci, um conformismo psicofísico necessário ao modo de produção capitalista em sua fase atual.

A estética da sensibilidade é utilizada também para valorizar a diversidade e para o reconhecimento do direito à diferença. Entretanto, essa diversidade é vista como oposição à igualdade, pois a política da igualdade proposta pelas DCNEM se expressa pela busca da eqüidade, naturalizando assim as desigualdades sociais.

A política da igualdade recorre ao reconhecimento da cidadania burguesa como fundamento da preparação do educando para a vida civil, no sentido de aprender respeitar as leis. É definida também como a busca da eqüidade, mas valorizando a diferença. Nessa perspectiva, acaba naturalizando as desigualdades sociais e tenta naturalizar o social e o histórico. Assim, cabe lembrarmos a crítica que Marx fez aos economistas clássicos.

As forças produtivas desenvolvidas lhes parecem como um ideal cuja existência teria pertencido ao passado. Não como um resultado histórico, mas como um ponto de partida da história. Segundo a concepção que tivessem da natureza humana o indivíduo aparecia como conforme a natureza, enquanto posto pela natureza e não enquanto produto da história. Até hoje esta ilusão tem sido própria de toda nova época. (MARX, 1982, p. 3-4, grifo nosso).

A política da igualdade chama atenção ainda para a necessidade de construção de novas relações entre o público e o privado, à medida que as DCNEM

enfatizam que a política da igualdade deverá fortalecer uma forma contemporânea de lidar com o público e o privado (BRASIL, 1999, grifo nosso). Nessa perspectiva, observamos o reforço das teses do Estado mínimo quando, os reformadores entendem que todos constituem o público, portanto são responsáveis pelos serviços sociais e podem substituir o Estado em suas funções. Nessa lógica as DCNEM evocam o envolvimento crescente de pessoas e de instituições não-governamentais nas decisões antes reservadas ao poder público.

Em nome da flexibilidade e da autonomia esse posicionamento reforça os mecanismos de transferência de recursos públicos para empresas privadas reconhecidas como organizações sociais ou como modelos eficazes de gestão e repassa para a comunidade a responsabilidade pela gestão da escola.

A ética da identidade, por sua vez, complementa os dois princípios anteriores. E neste aspecto seus formuladores também parecem desconhecer a história, ao recorrer ao romantismo para explicar a liberdade, inspirada na arte. Nesse sentido, as DCNEM destacam que:

A ética da identidade substitui a moralidade dos valores abstratos da era industrialista e busca a finalidade ambiciosa de reconciliar no coração humano aquilo que o dividiu desde os primórdios da idade moderna: o mundo da moral e o mundo da matéria, o privado e público, enfim, a contradição expressa entre a ‘igreja’ e o ‘estado’. [...] Seu ideal é o humanismo de um tempo de transição. (BRASIL, 1999, p. 67).

Tendo como finalidade a autonomia, as DCNEM enfatizam que a ética da identidade deve estar ancorada em conhecimentos e competências intelectuais que possibilitarão: “[...] à análise, à prospecção e à solução de problemas, à capacidade de tomar decisões, à adaptabilidade a situações novas, à arte de dar sentido a um mundo em mutação [...]” (BRASIL, 1999, p. 68, grifo nosso). As próprias DCNEM reconhecem que “não é por acaso que essas mesmas competências estão entre as mais valorizadas pelas novas formas de produção pós-industrial” (BRASIL, 1999, p. 68).

Em relações aos princípios pedagógicos, as DCNEM os concebem como as diretrizes para uma pedagogia da qualidade, que por sua vez contemplam três aspectos: identidade, diversidade e autonomia.

A identidade é apontada como a possibilidade de os sistemas e os estabelecimentos de ensino médio criar e desenvolverem diversas alternativas de organização pedagógica, espacial e temporal e articulações e parcerias com instituições públicas e privadas para formularem políticas de ensino que contemplem a formação básica e a preparação geral para o trabalho.

A diversidade, segundo as DCNEM, deverá ser acompanhada por sistemas de avaliação que possibilitem o acompanhamento permanente dos resultados da aprendizagem dos alunos, tomando como referência as competências básicas dispostas na LDB, nas diretrizes curriculares e nas propostas pedagógicas das escolas.

Sem desconhecer a importância da avaliação em larga escala para a correção do fluxo escolar e para que os gestores dos sistemas de ensino possam reorientar suas ações, consideramos que ao proporem a realização de testes padronizados as DCNEM limitam as possibilidades da diversidade e da autonomia por elas mesmas propostas. Tais testes, além do caráter arbitrário, não conseguem captar a dinâmica de funcionamento interna de cada unidade escolar, uma vez que cada escola tem uma forma própria de interpretar e de colocar em prática as normas oficiais.

Já a autonomia é apontada como o direito que toda instituição escolar tem de formular uma proposta pedagógica que reflita o melhor equacionamento possível entre recursos humanos, financeiros, técnicos, didáticos e físicos para garantir tempos, espaços, situações de aprendizagem e de inserção da escola no seu ambiente social, a fim de que os alunos possam adquirir conhecimentos, competências e valores previstos na legislação educacional.

Em relação ao princípio da autonomia, importa destacarmos um questionamento levantado por Manacorda (2000) que nos diz para termos cuidado com certas novidades pedagógicas, pois na maioria das vezes elas apenas põem o homem frente a si mesmo e não diretamente ao mundo concreto das coisas e das relações sociais. Elas podem ainda substituir um processo educativo heterônomo por um autônomo que pode ser igualmente limitado.

Quanto aos princípios metodológicos, as DCNEM destacam que o tratamento didático-pedagógico dos conteúdos deve observar a autonomia, a diversidade e a

identidade, de forma que o currículo seja estruturado através da interdisciplinaridade e da contextualização.

Nessa perspectiva, tendo como eixos a interdisciplinaridade e a contextualização e como princípio integrador as tecnologias, as DCNEM estabelecem que o currículo deva ser organizado em três áreas: Linguagem, Códigos e suas tecnologias (Língua Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna, Educação Física, Arte e Informática); Ciências da Natureza da Natureza, Matemática e suas tecnologias (Matemática, Química, Física e Biologia); Ciências Humanas e suas tecnologias (História, Geografia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, Direito etc.).

Segundo as DCNEM, o currículo deve ser organizado por competências, portanto ele não poderá ser disciplinar, uma vez que as habilidades e competências a serem formadas exigem conteúdos das diversas disciplinas. Nesse sentido, a interdisciplinaridade deve ir além da mera justaposição de disciplina e ao mesmo tempo evitar a diluição delas em generalidades.

Os idealizadores da reforma curricular enfatizam que a integração de disciplinas para buscar compreender, prever e transformar a realidade deve se aproximar do que Piaget chama de estruturas subjacentes, do que Vigotsky considera da relação entre pensamento e linguagem e da interdependência entre a aprendizagem dos conteúdos curriculares e o desenvolvimento cognitivo.

Observamos que os mentores da reforma tentam dar uma abordagem epistemológica na concepção de interdisciplinaridade, porém ela é superficial e ambígua, pois apresenta as perspectivas de aprendizagem de Piaget e Vigotsky que, embora sendo consideradas interacionistas, são divergentes, sobretudo por que Vigotsky se contrapõe aos pressupostos filosóficos idealistas e naturalistas da psicologia de Piaget67.

As DCNEM estabelecem que as escolas devam organizar os conteúdos de ensino em estudos ou áreas disciplinares e projetos. Entretanto, na prática o que encontramos é a fragmentação disciplinar e a dificuldade de desenvolver projetos interdisciplinares, conforme expressam os entrevistados:

67

“A idéia de interdisciplinaridade é um contraponto, pois o currículo é organizado em disciplinas. Embora tenhamos orientado para a metodologia de projetos de acordo com o planejamento de cada escola, é muito difícil trabalhar essa idéia de professor pesquisador, se a gente não tem profissionais de tempo integral. É muito difícil a gente ter apoio na escola se a própria Secretaria tem dificuldades de dar demonstração de trabalhos interdisciplinares e com autonomia, nós também deveríamos ter trabalhos assim e não temos então como exigir atitudes interdisciplinares”. (Entrevista A)

“Algumas escolas até tentam trabalhar interdisciplinarmente, mas é muito difícil trabalhar assim, a estrutura da escola ainda é muito fechada, a questão de horários, os professores trabalham isoladamente. Portanto a interdisciplinaridade ainda é um sonho bem distante da realidade”. (Entrevista C)

A contextualização, por sua vez, evoca “[...] áreas, âmbitos ou dimensões presentes na vida cultural e mobiliza competências cognitivas já adquiridas [...]” (BRASIL, 1999, p. 79). Desse modo, visaria tornar a aprendizagem significativa, ao associá-la com as experiências da vida cotidiana ou com os conhecimentos adquiridos espontaneamente pelo aluno, retirando-lhe da condição de espectador passivo.

Ramos (2001) alerta para o risco de cairmos numa perspectiva muito generalista ou na extrema simplificação dos processos de aprendizagem, tornando-a uma pseudo-aprendizagem, pois as concepções prévias trazidas pelos alunos para o âmbito escolar podem reforçar o pragmatismo centrado apenas no hoje, no aqui e agora, descartando o clássico68 saber socialmente produzido (SAVIANI, 2000b), criar uma aversão ao estudo dos clássicos e desvalorizar a teoria. Tal postura pode levar à valorização do corriqueiro, do pitoresco vivenciado no cotidiano de cada aluno e desvalorizar o questionamento, a crítica, o raciocínio e o acesso ao saber sistematizado historicamente pela humanidade.