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O trabalho e a cidadania como os principais contextos

CRISE DO CAPITAL: PRODUÇÃO FLEXÍVEL, REFORMA DO ESTADO E REFORMAS EDUCACIONAIS

2.2 É preciso reformar o Estado

2.3.2 A reforma do ensino médio ressuscita o dualismo entre o ensino propedêutico e o ensino profissionalizante

2.3.2.2 O trabalho e a cidadania como os principais contextos

As DCNEM apontam o trabalho e a cidadania como os contextos mais relevantes da experiência curricular do ensino médio. O trabalho é colocado ainda

68 Saviani denomina clássico o que resistiu ao tempo. Ele cita exemplos de Descartes como o

clássico da filosofia, Dostoievski como clássico da literatura universal etc. Defende ainda que clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematizado. In: SAVIANI, Dermeval. Pedagogia

como princípio69 organizador do currículo, uma vez que na sociedade contemporânea

[...] todos independentemente de sua origem ou destino socioprofissional devem ser educados na perspectiva do trabalho enquanto uma das principais atividades humanas, enquanto campo de preparação para escolhas profissionais futuras, enquanto espaço de exercício de cidadania, enquanto processo de produção de bens, serviços e conhecimentos com as tarefas laborais que lhes são próprias. (BRASIL, 1999, p. 80).

A concepção de trabalho apresentado pelos reformadores é abstrata - isolada dos elementos da realidade -, à medida que eles retiram as condições materiais e históricas em que o mesmo se realiza no capitalismo e apresentam os avanços científicos, tecnológicos e informacionais descolados dos sujeitos e das relações sociais que provocaram tais avanços. Os reformadores procuram escamotear o caráter histórico e não natural do processo de trabalho em que a relação entre o trabalhador e sua atividade não é de forma alguma natural, mas contém em si uma determinação econômica (MARX, 1972).

Portanto concordamos com a análise de Kuenzer (2000), quando ela destaca que embora aparentemente a concepção de trabalho apresentada pelos reformadores pareça avançada, enquanto práxis humana que define a identidade do ensino médio, tal concepção encobre a forma como o trabalho se manifesta histórica e concretamente no capitalismo. Por outro lado, ao considerar que a preparação básica para o trabalho não está vinculada a nenhum conteúdo em particular, mas em todos, corre-se o risco de que tal formação não seja dada, pois o que está em tudo corre o risco de não estar em lugar nenhum.

Ao considerar que todos devem ser educados na perspectiva do trabalho, os reformadores tentam passar a idéia de trabalho educativo proposta por Gramsci, contudo a visão das DCNEM difere da proposta gramsciana - trabalho como elemento geral e universal com o propósito de realização autônoma do homem -, pois o trabalho é visto como mercadoria ao abarcar os conteúdos e as competências de caráter geral para inserção numa sociedade pós-fordista (BRASIL, 1999, grifo

69 Diferentemente da idéia de trabalho como princípio educativo proposta pelas DCNEM, Saviani

defende a idéia de politecnia que envolve a articulação entre trabalho intelectual e manual e envolve uma formação a partir do trabalho social, que desenvolve os fundamentos e os princípios, que estão na base da organização do trabalho e nos permitem compreender o seu funcionamento. In: SAVIANI, Dermeval. Sobre a concepção de politecnia. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,1987.

nosso), onde o trabalho se realiza predominantemente de forma diversificada e profundamente precarizado.

Ademais, podemos utilizar um pensamento de Gramsci escrito em 1916 para desvelar a intenção dos reformadores:

Um Estado que sempre criou escolas de cultura humanista para os ricos e uma outra escola para os filhos dos trabalhadores, apela de repente para inserir uma noção de trabalho. Algo de podre esconde- se por detrás dessa retórica. (GRAMSCI, 1916, apud NOSELA, 1992, p.18).

Convém nos determos ainda em dois aspectos relacionados à questão do trabalho: o primeiro refere-se à proposta dos reformadores de que devemos superar a concepção marxista de análise da realidade; o segundo é a tentativa de que o desemprego seja visto como algo natural, irreversível e que não deve ser contestado. Esses aspectos são apresentados nas DCNEM da seguinte forma:

Cabe ao professor orientar seus alunos no sentido de compreender e avaliar o impacto desse conjunto de transformações nas suas próprias vidas [...]. Sociologicamente, a problematização da categoria trabalho, para além do modelo marxista, também é uma tarefa que exige um significativo esforço intelectual. A análise do mercado de trabalho requer que se entenda o problema do desemprego estrutural, isto é, a diminuição constante e irreversível de cargos em empresas, enquanto uma realidade percebida, sobretudo, nos paises industrializados da Europa. (BRASIL, 1999, p. 170).

Podemos depreender dessa passagem das DCNEM que os reformadores se mantêm nas aparências dos fenômenos e situam-se no grupo dos intelectuais que acreditam no mercado como o único ordenador das relações sociais, na sociedade do conhecimento, no fim da história, na perda da centralidade da categoria trabalho e na insuperabilidade da ordem capitalista. Eles tentam passar a idéia ilusória de um capitalismo eternizado e procuram instalar uma resignação nas pessoas, ocultando o fato de que o capitalismo é um modo de produção contraditório e que, enquanto tal, está destinado a perecer.

É possível argumentarmos também que o aporte teórico marxista ainda não perdeu sua validade para a compreensão das transformações pelas quais passa o capitalismo contemporâneo, pois vivemos numa sociedade em que prevalece a lógica da valorização do capital. E, embora constate-se o avanço dos meios e das

técnicas de produção, não podemos deduzir o fim da sociedade do trabalho70, tanto em sua forma concreta e produtora de mercadorias úteis, como intercambiáveis. O que constatamos é o aumento da precarização do emprego e de diversas formas de trabalho.

Ademais, segundo Meszáros (2002) a formação capitalista é marcada por uma contradição imanente, já que ao mesmo tempo em que aumenta sua capacidade produtiva, dispensa a força de trabalho, gerando um descompasso entre a possibilidade de consumo, em face do desemprego. Assim sendo, mesmo que o incremento da ciência e da técnica tenha diminuído o numero de trabalhadores vinculados ao capital produtivo, o capital não perdeu sua capacidade de explorar. O que está ocorrendo é o afastamento dos trabalhadores do núcleo central da produção, mediante a precarização - subcontratação, terceirização71-, mas eles continuam sendo a base de valorização do capital. Ou seja, o trabalho em si é e permanece o pressuposto da produção capitalista (MESZÁROS, 2002).

No que se refere à concepção de cidadania, os reformadores tentam reduzi-la à individualidade, ou seja, à empregabilidade, à medida que ela não é mais vista como resultado da inserção no mercado de trabalho, mas condição para essa inserção. Agora o cidadão é quem detém as competências adquiridas na escola para tornar-se empregável, ou seja, tornar-se um cidadão produtivo.

Nesse ponto de vista a cidadania é decorrente do direito formal à educação, isto é, da visão de igualdade formal instaurada no mesmo ato que fundou a sociabilidade do capital, conforme sublinhou Marx ao lembrar que a separação da sociedade burguesa do Estado deu origem à abstração do cidadão, enquanto se existe a partir da natureza e não na base de determinadas atividades concretas. Isso é apenas “[...] uma caracterização formal para todos que não permite a ninguém reconhecer nela o conteúdo da sua própria vida concreta [...]” (MARX, apud SUCHODOLSKI, 1976, p. 169). Portanto, conforme Tonet (2003), o mínimo que

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Para melhor esclarecimento do debate sobre a questão da centralidade do trabalho sugerimos as obras de Ricardo Antunes: “Adeus ao trabalho”, publicada em 1995 pela editora Cortez e “Os

sentidos do trabalho”, publicada em 1999 pela Biotempo. Nestas obras Antunes contrapõe-se aos

apologistas que defendem a substituição do trabalho pela ciência e a substituição das relações de produção capitalista pelo agir comunicativo. Ele destaca ainda a complexidade das relações laborativas e as novas formas de conformação da classe trabalhadora, sem, contudo, negar a centralidade do trabalho no capitalismo contemporâneo.

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Lembramos que a precarização atingiu não somente os trabalhadores da esfera da produção, mas também a circulação. Basta observarmos os vendedores que se utilizam de catálogos e os ambulantes que batem às portas das residências, oferecendo as mais variadas mercadorias.

essa dimensão jurídico-política pode fazer é impor alguns limites ao ato fundante do capitalismo - compra e venda de força de trabalho -, em vez de contestar essa lógica que configura o modo de produção capitalista.

Segundo Zibas (2001), no texto das DCNEM está implícita a idéia de cidadania defendida por Guiomar Namo de Mello72, no livro “Cidadania e competividade”. Nesse livro, Mello (1998) defende que a formação para cidadania não deveria estar calcada em termos vagos, marcados ideologicamente tais como: desenvolver o espírito crítico, promover a auto-determinação dos povos, ou incentivar a solidariedade, mas pautada numa orientação pragmática e técnica, pois as demandas sociais estariam voltadas para o nível local e diretamente relacionadas com “[...] a melhoria da qualidade de vida da cidade, do bairro ou até mesmo de uma instituição”. (MELLO, 1998, p. 36).

È claro que nas DCNEM a palavra cidadania aparece revestida dos termos critica, solidariedade e igualdade, porém esse discurso humanista não questiona as desigualdades sociais. O que é recuperado é o discurso da igualdade e da liberdade natural entre os homens, ao afirmar que a “[...] reposição do humanismo nas reformas do ensino médio deve ser entendida então como busca de saídas para possíveis efeitos negativos do pós-industrialismo [...]” (BRASIL, 1999, p. 61).

O próprio texto das DCNEM reconhece que esses efeitos são a redução dos empregos e a exclusão, pois o estudante deve ser preparado para “[...] suportar a inquietação, conviver com o incerto e o imprevisível [...]” (BRASIL, 1999, p. 99). Desse modo, se o que mais inquieta e preocupa os jovens neste início de século é o fantasma do desemprego, como propalar uma cidadania de qualidade nova, cujo exercício reúna conhecimentos e informações a um protagonismo responsável, para exercer direitos que vão além da representação política tradicional: emprego, qualidade de vida, igualdade entre homens e mulheres etc.?

Parece que essa nova qualidade estaria além das lutas democráticas das maiorias populares. Como querer que a cidadania ganhe uma qualidade superior diante de políticas neoliberais que negam direitos sociais básicos e que tornam

72Guiomar Namo de Mello foi a relatora da Resolução CEB nº 3, de 26 de junho de 1998, que institui

as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Essa resolução fundamentou e compõe os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.

quase impossível o exercício desses direitos que foram arrancados à custa das lutas coletivas dos trabalhadores?

Isso ocorre porque as concepções de trabalho e de cidadania expressas nas DCNEM transferem a relação capital-trabalho para o âmbito individual e para a esfera da negociação, negando o confronto. Essas concepções se inserem no marco de um individualismo liberal e de subjetividades atomizadas. Desse modo, a escola tende a ser direcionada para não contribuir com a formação da consciência de classe e para a construção de uma concepção emancipatória de homem e de sociedade.

Assim, em que pese o discurso político-educacional da reforma do ensino médio enfatizar o trabalho, a cidadania, a participação, a formação de indivíduos criativos e a aprendizagem significativa como princípios, percebemos que essas idéias são carregadas de ideologias que precisam ser decifradas e re-significadas, uma vez que buscam a constituição de um novo sujeito social que, tanto no plano individual como no coletivo seja capaz de adequar-se à lógica capitalista da acumulação, da rentabilidade e do lucro.

Devemos lembrar que a lógica capitalista não é conciliável com os princípios de solidariedade, paz e justiça social. Mas como o capitalismo precisa garantir a sua reprodução, é necessário que coexistam dois discursos: o econômico-pragmático e o moral. De acordo com Duarte, o segundo é necessário para evitar esfacelamento do tecido social, “[...] que resultaria da radicalização do principio liberal, segundo o qual o progresso social resulta da busca incessante de satisfação das necessidades e dos interesses pessoais [...]” (2001, p. 143).

2.3.3 A separação entre a formação geral e a formação técnica: