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A legislação governamental: entre regras e ideologias

Para compreender a forma como o poder público lidava com a emigração faz-se necessário conhecer os principais pontos da legislação que controlava o processo de saída. A análise das leis que regulam a emigração revela que evitar o êxodo nunca foi o ponto central da política governamental. Espanha apoiou o fenômeno em diversas ocasiões, inclusive após a Guerra Civil, quando passou a prover passaportes.105 E a maioria das medidas restritivas mostrou-se incapaz de cumprir a missão de frear as irregularidades. Segundo o historiador Ramón Villares Paz, a ineficácia dessas ações era conseqüência dos fortes interesses que rodeavam o negócio da emigração, já que do tráfico participava o setor mais dinâmico da burguesia galega, que intervinha no processo como armadores ou agentes de companhias de navegação106.

Os estudos indicam que entre 1836 e 1860, 93.040 pessoas deixaram Galícia107. No entanto, a saída para a América só seria liberada oficialmente em 1853 com uma Ordem Real do Ministério de Governo. A legislação indicava a vontade do governo de exercer algum controle sobre um processo que não poderia evitar, mas, de acordo com Villares Paz, a lei faria pouco mais do que dificultar a obtenção do passaporte e o processo de saída do país, não levando à melhoria real da situação dos emigrantes nem das condições de viagem. Em maio de 1882, uma nova tentativa de regulamentação se materializa por meio do Negociado de Emigración del Instituto Geográfico e da criação de uma seção de emigração na Dirección General de Agricultura. A novidade tinha dois objetivos: facilitar a proteção consular e diplomática aos emigrantes e garantir o “princípio de liberdade de emigração”.

Mesmo com uma legislação mais estrita, ainda que pouco fiscalizada, a saída clandestina continuava intensa. Em razão disso, um Real Decreto, de 1904, busca controlar a ação daqueles que faziam a ligação entre os empresários dos países de acolhida, as empresas de navegação e os habitantes dos povoados: os agentes de

105 “A emigração foi desencorajada na maior parte dos países europeus no inicio do XIX. “Porém, como bem assinalou Baines (1993:50), alguns anos mais tarde, esses mesmos governos começaram a perceber que a emigração, “would be a way of relieving poverty and removing undesirable”. MIALHE, Jorge Luís. “Imigraçao de dupla nacionalidade: aspectos histórico-jurídicos” in BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu e MALATIAN, Teresa (org). Politicas migratórias: fronteiras dos direitos humanos no século

XXI. Rio de Janeiro e São Paulo: Renovar, 2003, p. 213.

106 LUCA DE TENA, G. apud VILLARES PAZ, Ramón, 1996, op.cit., p. 85. 107 EIRAS ROEL, Antonio, 1992, op. cit., p. 32.

emigração108. Tal ação ocorre antes de ser sancionada, em 21 de dezembro de 1907, a primeira Ley Española de Emigración. Ela cria o Conselho Superior de Emigração, reconhece mais uma vez a liberdade de deixar o país e, o mais importante, define pela primeira vez quais viajantes são considerados emigrantes. Somente homens sujeitos ao serviço militar109 ou a condenação não podiam emigrar, menores de idade, mulheres casadas e pessoas de regiões em perigo de despovoamento precisavam da permissão do Conselho de Ministros. A amplitude dessa lei permite a emigração ultramarina massiva de espanhóis à América.

Serán considerados emigrantes a los efectos de esta Ley, los españoles que se propongan abandonar el territorio propio, con pasaje retribuido o gratuíta de tercera clase, o de otra, que el Consejo Superior de Emigración declare equivalente, y con destino a cualquier punto de América, Asia u Oceanía110.

Para facilitar a tramitação do expediente emigratório, o Real Decreto de 23 de setembro de 1916 estabelece que o único documento que o emigrante necessita é uma Carteira de Identidade de 18 páginas, obrigatória a partir de primeiro de maio de 1917. Em 1924, durante a ditadura de Primo de Rivera, uma nova lei permite a criação de ajudas estatais, convênios com países receptores e a emigração de rapazes entre 16 e 20 anos, desde que pagassem uma cota progressiva relativa à proximidade do ano de alistamento. Além disso, ela é mais abrangente ao designar o emigrante.

Los españoles o sus famílias que, por causa de trabajo, abandonen el território nacional para establecerse fuera de él definitiva o temporalmente. Los españoles o sus famílias que se dirijan a Ultramar se reputarán siempre de emigrantes si viajan con pasaje de tercera u otra clase a ésta equiparada111

Em 1941, já no governo de Franco, surge o Conselho Central de Emigração, submetido ao Ministério de Assuntos Exteriores, e cinco anos depois é restabelecida a

.

108 CAGIAO, Pilar. “Cinco siglos de emigración gallega a América” in Historia general de la emigración

española a Iberoamérica. Vol. 2, p. 293-316. Madrid: Historia 16, 1992, p. 100.

109 A dificuldade em conseguir vistos para quem tinha que servir as forças armadas não impedia muitos jovens de buscarem o caminho da emigração, ainda que ilegal, para fugir do pesado serviço militar. “En 1904 había un 12 por ciento de prófugos y diez años después se habían duplicado. (…) Pero este porcentaje de desertores que hemos mencionado era la media española. La galega equivalía prácticamente a una revuelta antimilitarista, con un 34 por ciento de desertores en Ourense o un 31 por ciento en Coruña”. MURADO, Miguel-Anxo, op. cit., p. 124.

110 VILLARES PAZ, Ramón. 1996, op.cit., p. 99. 111 ibid.

Lei de Emigração de 1924, que permitia a criação de ajudas estatais e convênios com os países receptores. Essa legislação impulsiona o início de um ciclo de grande importância para as novas diretrizes da política franquista.

A emigração pouco a pouco passa a ser vista como uma peça a mais dos novos planos de desenvolvimento [...]. Por um lado, permite reduzir a tensão social e fixar um mercado de trabalho bem controlado, e por outro, supõe, graças às remessas, uma injeção econômica. Nasce em 1956 o Instituto Espanhol de Emigração (IEE) e em 1962 se aprova a Lei de Ordenação da Emigração112.

O IEE, além de ser uma criação dedicada à construção e ao controle da imagem pretendida do emigrante espanhol, é também uma conseqüência da preocupação do regime com a avaliação internacional. Após anos de isolamento, o país, que buscava aproximação com as nações ocidentais, havia conseguido ser admitido na Organização das Nações Unidas (ONU), em 1955, e firmado aliança com os Estados Unidos113

Além disso, o momento era de preocupação com o tema em razão da dispersão de diversos grupos populacionais após a Segunda Guerra Mundial. Em 1951, por exemplo, por iniciativa da Bélgica e dos Estados Unidos, acontece em Bruxelas a Conferência Internacional sobre Migrações. Entre suas resoluções está a criação do Comitê Intergovernamental para as Migrações Européias (Cime)

. Além disso, Espanha também havia ingressado na Organização Européia para a Cooperação Econômica (OECE), em 1958, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. “Incluso, desde que se creara la Comunidad Europea, funcionaba una comisión interministerial que seguía el desarrollo de aquella organización y estudiaba los problemas que España tendría que afrontar si decidía solicitar su incorporación”. A Comunidade Européia havia sido criada em 1957 e Espanha se incorporaría somente em 1986.

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112 LAGUNA, A. Las políticas migratorias del régimen franquista. “Página Abierta”, 174, outubro de 2006. Disponível em: <

, ao qual o governo espanhol, preocupado com críticas, adere em 1959. Em 22 de dezembro de 1960, é aprovada a Lei de Ordenação da Emigração (Ley 93/1960), que tem como objetivo assistir a emigração daquela década, dirigida, sobretudo, à Europa. A legislação, como expõe o artigo 4 do Estatuto de la Ciudadanía Española en el Exterior, ignorava a

http://www.pensamientocritico.org/alagu21006.html>. Acesso em: 14 mar. 2008. 113 Essa abertura permitiu a Espanha a começar a receber um grande fluxo de turistas, peça fundamental para manter os planos econômicos do governo.

existência de milhares de exilados na Europa e Iberoamérica. Em 1971, é ampliada a proteção do Estado, garantindo direitos civis e políticos ao emigrante e sua família.

Las razones de este cambio obedecen a la voluntad de regular la emigración de la población española y, al mismo tiempo, impulsarla. A resultas de ello, se mantendrá con un crecimiento constante, hasta 1967, aquel fenómeno migratorio, - fundamentalmente dirigido hacia los países europeos más desarrollados - , que había comenzado a producirse hacia 1959115.

A última lei sobre emigração foi ratificada em 21 de julho de 1971. Ela continuava orientada ao fomento da saída, introduzindo, inclusive, a possibilidade de se inscrever em operações e programas para facilitar o deslocamento e o acesso ao emprego no país de acolhida, mas mantinha silêncio sobre os exilados.

Esta Ley introdujo, igualmente, ayudas de carácter social, educativo y cultural, así como medidas dirigidas a la formación profesional e integración laboral tanto para los emigrantes, como para los retornados.116

Como forma de garantir a eficácia dessa política emigratória, além de participar de organizações internacionais, são assinados acordos para promover somente a saída dos trabalhadores menos qualificados, procedentes das zonas com maiores taxas de desemprego, e criadas regras específicas para facilitar o envio de recursos do exterior117.

Pelos organismos competentes deverão conceder-se facilidades para que os emigrantes possam enviar a Espanha, em condições favoráveis, suas economias e rendas de trabalho. Devem outorgar-se facilidades e estímulos de caráter extraordinário para que os emigrantes invistam livremente na Espanha os capitais obtidos em

seus países de residência118.

115 Ver o Estatuto da Cidadania Espanhola no Exterior. 116 Ibid.

117 “A economia do emigrante é tão importante que, sem temor, pode-se considerá-la como uma de nossas mais importantes fontes de divisas, representando ao redor de 4% dos recursos de nossa balança de pagamento. Entre 1960, ano em que começa o boom da emigração à Europa, e 1976, a evolução dos ingressos por remessas de emigrantes é significativa: em 1960, os ingressos por este conceito eram de 55,35 milhões de dólares e, somente entre janeiro e maio de 1976, todavia dentro da crise econômica ocidental, esses ingressos alcançaram os 150 milhões de dólares americanos”. CIRELLI, Estela. Entrevista com Jorge Jordana de Pozas. “Mundo Hispanico”. Novembro de 1976.

Para reforçar e ampliar o alcance dessas medidas a ditadura franquista organiza Congressos da Emigração em 1959, 1965 e 1971. Antes desse período, havia sido realizado o de 1909; e depois, o de 1976, um dos primeiros atos públicos em Galícia após a morte de Franco. O ato teve Vigo como cenário e foi alvo de polêmica e debates acirrados entre setores políticos divergentes. Na realidade, o Primeiro Congresso da Emigração Galega, com esta nomenclatura, aconteceu em 1956, em Buenos Aires.

Mas voltemos ao período franquista. O evento de 1959, realizado em um momento que a emigração passa a ser parte importante da política econômica governamental, foi estrategicamente finalizado em 12 de outubro, Dia de la Raza ou da Hispanidade, e teve as seguintes conclusões: os grupos de emigrantes devem ser, fundamentalmente, originários das zonas onde se manifeste um maior desequilíbrio entre sua população e a economia regional, constituído, em particular, pela população camponesa; deve-se procurar evitar a emigração de mão-de-obra especializada, pois a mesma pode prejudicar as necessidades da economia espanhola. A formação profissional do emigrante deve ser dada, principalmente, pelos organismos internacionais de emigração e pelos países receptores; os organismos competentes deverão conceder facilidades para que os emigrantes possam enviar a Espanha, nas mais favoráveis condições, suas economias e rendas de trabalho; deve-se promover a atividade de grupos espanhóis residentes no exterior para desenvolver fins econômicos, sociais e culturais119.

O Estado passa a se converter, assim, em um promotor direto da emigração. “A especulação, a remessa dos emigrantes e o desenvolvimento do turismo eram os eixos reais que permitiam o desenvolvimento do regime, orientando-se a reabsorção dos excedentes demográficos”120.