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A vida na diáspora: identidade e associação

CAPÍTULO

3.3. A vida na diáspora: identidade e associação

E nesse ponto há uma questão importante. Os movimentos nacionalistas galegos, surgidos entre o fim do século XIX e o início do XX, desenvolviam-se à margem da grande massa da população, que utilizava a língua, promovia festas, enfim, produzia cultura, sem dar a esses elementos um recorte político. O lugar de cada pessoa e de cada festividade era evidente demais para ser avaliado. Para muitos galegos, principalmente os que deixaram a Espanha anteriormente aos anos 1960, esse tipo de construção identitária ocorre somente quando entram em contato com outras culturas ou conhecem, por meio das associações de emigrantes mais politizadas, os movimentos culturais e nacionalistas.

As tradições nas aldeias, em geral, não eram algo que precisasse ser defendido, elas faziam parte do dia-a-dia e isso bastava. “Em outras palavras, a ideia de ter uma identidade não vai ocorrer às pessoas enquanto o pertencimento continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa.” 413 Os emigrantes, uma vez fora do país, constituem nas sociedades receptoras novos grupos étnicos, com uma identidade cultural própria, que já possuíam anteriormente sem serem conscientes disso. Além disso, têm a chance de perceber que as problemáticas de suas localidades eram próximas as de toda a Galícia.

Non obstante, en situación de inmigración algúns destes aspectos, que compoñen o conxunto do cotián, vense afectados, e esto frecuentemente reforza os lazos de etnicidade e identidade cultural. A identidade é o reflexo do peculiar de cada grupo fronte ó outro. Os emigrantes, sen renunciar á súa propia identidade, convértense en

412 RIVAS, Manuel. 2009, op.cit. 413BAUMAN, Zygmunt, op.cit., p. 17.

suxeitos de cambio ó establecer coa sociedade e coa cultura de cada un dos países elixidos como destino.414

Bauman nos conta que não se recorda de ter dado atenção à questão identitária antes de março de 1968, quando perdeu a nacionalidade polonesa. E ela voltou à cena somente quando o autor teve que escolher um hino para a cerimônia de entrega do título de doutor honoris causa na Universidade Charles, em Praga. Privado da cidadania polonesa e vivendo na Grã-Bretanha há décadas, qual seria a melhor decisão a tomar? A opção foi escolher o hino europeu. Segundo o autor, esses episódios nos tornam conscientes de que o pertencimento e a identidade não têm a solidez de uma rocha, são bastante negociáveis e revogáveis. Além de nos mostrar que as decisões que o individuo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o pertencimento quanto para a identidade.

O interesse pela cultura galega entre a comunidade emigrante teve em grande parte influência das associações, pois muitas se dedicavam a promover atividades educacionais e culturais, o que é demonstrado por meio de publicações periódicas, conferências e criação de bibliotecas. Preocupação que tinha impacto na sociedade de origem, não somente pela importância dada à construção de escolas na Galícia, mas também pelo fato de criarem condições para que os emigrantes pudessem ter acesso à produção cultural galega, muitas vezes desconhecida. Pilar Cagiao Vila nos mostra, por meio do depoimento de uma emigrada à Buenos Aires, a importância desses centros no acesso ao conhecimento.

Un día tiña unha das nenas, estaba enfermiña unha delas e fumos ó centro galego e á entrada do centro, bueno entrado por un pasiliño que había ¿non? era onde estaba a biblioteca, pero para min aquelo era tabu, eu nin ousaba siquera de pasar aquela porta ¿non? e que para min era inconcebible que eu poidera entrar nun lugar, así moi educado pero falándome nun galego correctísimo: “Usted é sócia daquí do Centro Galego” “si, soy sócia”, enton díxome. “Esta é a biblioteca do Centro Galego, e usted pode vir aqui”. “Ah! ¿Es que yo puedo venir aqui a leer?”, sí, sí usted pode vir aquí ler ese libriño, ler a Rosalía, pode…” (…) Pois así comenzou a darme as poesías de Rosalía, comencei a ler a Rosalía; pero eu nin sabía esta nunha biblioteca, esa é a verdade, e si tiña que rir, ria, e si tiña que chorar

choraba, e choraba (...) Iba todos os xoves (…). Eu despois non perdía xoves, era unha cousa segura que alí tíñame (…) 415

Nesses novos cenários a imagem de insolidariedade dos galegos, difundida em tantos exemplos da literatura, perde força diante da rede associativa que se forma. Segundo o economista Alberto Miguez, esse tipo de comportamento era fruto da estrutura regional da propriedade416, realidade inexistente na emigração.

Digamos que el minifundismo se ha hecho consustancial con la costumbre, y la mentalidad del campesino gallego, en relación con la colectividade, es también minundista, es decir, individualista e insolidaria.417

O escritor Ramón Piñeiro compartilha da mesma opinião para explicar as freqüentes acusações de individualismo.

Tal individualismo ten en parte un fundamento xustificativo na estrutura da nosa vida social e económica, toda ela montada sobre unha trama de unidades individualizadas. A estrutura minifundista da nosa propiedade, coa súa rede de lindeiros, e a estrutura igualmente minifundista dos nosos núcleos de poboación, co seu espallamento en lugares e parroquias, forman un ámbito de experiencia no que o exercício da personalidade individual é obrigado e permanente. 418

A vida fora da Galícia desenvolve-se em outro contexto e tem como conseqüência um comportamento social diferenciado. A maioria das pessoas experimenta a necessidade de se sentir pertencentes a um grupo. Segundo Miguez, o fenômeno da emigração dá coerência à tendência cooperativa diante do perigo de solidão e do desamparo em um país estranho.

A emigración ofrécenos un bo exemplo da disposición social cooperadora, solidaria, da nosa xente, da xente que pertence á nosa mesma experiencia individualista. (…) En realidad trátese dun individualismo aberto á colaboración, dun individualismo constantemente exercitado na convivencia e na axuda, pois as formas

415Idem.

416Segundo o antropólogo Carmelo Lisón Tolosana, os constantes desentendimentos em torno da disputa de terras tornavam Galícia uma das regiões da Espanha com maior número de pleitos na justiça. Na região as propriedades eram extremamente pequenas: 80% delas em 1956 estavam classificadas como minifúndios416. De acordo com ele, a estrutura minifundista condicionava, além da forma de trabalho, a maneira de viver, pois a vigilância e a defesa de cada parcela eram como o exercício constante da própria individualidade e direitos. LISÓN TOLOSANA, Carmelo, op.cit., p. 30.

417 MIGUEZ, Alberto, op.cit., p.108. 418 PIÑEIRO, Ramón, op. cit., pp. 275-276.

de vida da Galicia campesiña e mariñeira sempre se apoiaron no intercambio de axudas e nunha certa solidariedade comunal. 419

Além do individualismo, outros traços apontados com freqüência para explicar o caráter dos galegos também são analisados por Piñeiro. Segundo o autor, a atitude de desconfiança deles também seria fruto dos problemas econômicos, sociais e políticos. “Desde esa experiencia da propia febleza vai establecendo barreiras de prudencia que lle permiten estudar, observar, coñecer mellor, sopesar, antes de arriscar unha decisión que o pode comprometer e fronte a cal non se sente con posibilidades de loita”. 420 O mesmo passaria com as acusações de “espírito servil”, que Piñeiro crê ser fruto da debilidade social atrelada ao atomismo da população, espalhada em pequenos e frágeis grupos. 421

Por outro lado, de acordo com o autor, seria essa própria estrutura que permitiria a criação e a manutenção das associações no exterior. Em um ambiente novo e desconhecido, esses pontos de semelhança seriam mais importantes que as diferenças.

Estes lazos intensos da convivencia vecinal campesiña son a base da tendencia asociativa dos galegos cando se atopan fóra do seu medio. Contra tódalas aparencias de individualismo que dentro da propia Galicia se botan a ver, os galegos senten a necesidade da convivencia vecinal, da relación case familiar en que se formaron. Por iso, cando están fora, procuran reconstruíla agrupándose arredor do sentimento de paisanaxe. 422

Apesar dessa grande rede associativa existente no exterior e em outras regiões da Espanha, o quadro em Galícia continua a ser distinto, como revela pesquisa sobre capital social realizada em 1995 e 2001. De acordo com o estudo, o índice de confiança entre os galegos é baixo.

En 1995 y 2001 solamente el 26,7 y el 32,4% respectivamente de la población entrevistada está de acuerdo con la afirmación de que se puede confiar en la mayoría de la gente, frente a un 73,3 y un 67,6% acordes con que nunca se es lo suficientemente prudente.423

419 Ibid, pp. 276-277.

420 Ibid, p. 278.

421“Este terrible complexo colectivo de inferioridade debe ser un obxectivo fundamental de tódolos nosos esforzos de transformación, de dignificación, porque é aí onde está o núcleo das nosas desventuras: nesa incapacidade de reaccionar colectivamente fronte ao mal”. Ibid, p. 279.

422 Ibid, p. 282.

Os galegos também consideram que a maioria das pessoas tentaria se aproveitar de determinada situação se pudessem. “El 62,6% estima que la mayoría de la gente intentaria aprovecharse de uno si tuviera la oportunidad, frente a un 37,4% que confia en que seria justos”424.

Sabemos que nem todos os emigrantes fizeram ou fazem parte dessas associações. Milhares de pessoas construíram suas vidas em regiões onde não havia centros associativos, ou viviam em bairros distantes, ou não tinham conhecimento sobre a existência deles, não tinha interessem em participar, não dispunham de tempo nem da mínima condição financeira. Isso, é claro, nunca impediu que algumas famílias cultivassem em suas casas elementos da cultura galega, o que poderia permitir em outra ocasião, ou nova geração, uma aproximação com a Galícia e/ou as associações. Na realidade, pesquisas mostram que esses eram minoria.425 No entanto, esse pequeno grupo era significativo e jogou papel importante na manutenção dos laços com a região e na conquista de direitos, que no futuro, com o processo de democratização da Espanha, beneficiariam todos.

Entre aqueles que não participavam das associações podia haver também uma atitude de afastamento e negação da realidade vivida na Galícia.

Las privaciones, sufrimientos y vejaciones sufridos por nuestros emigrantes, fueron el sello que marcó y condicionó a la gran mayoría y que ha influido en su vida, en su mentalidad, guardando una imagen de la patria distinta a la que puedan tener los emigrantes de hoy.426

Para Federico E. Avila Soto, emigrante na Suíça, era no exterior que o galego passava a conhecer uma realidade diferenciada, inclusive no melhor tratamento recebido.427

424 Idem.

A relação com a identidade nacional não é fixa, o que hoje se pode querer esquecer, por várias razões; amanhã, se pode valorizar e desejar lembrar. Em 1938, o

425 Um exemplo dessa baixa participação pode ser constatada no Centro Español y Repatriación de Santos, litoral de São Paulo. De acordo com a documentação referente a 1959, havia na cidade cerca de dez mil espanhóis, mas apenas a vigésima parte frequentavam as atividades do núcleo. Por falta de tempo, interesse, dinheiro e informação sobre a existência desses centros a maioria dos galegos que viviam nessa localidade jamais se associaram. PERES, Elena Pájaro, op. cit.

426 Problematica de la emigración gallega. Atas do Congreso Regional de la Emigración Gallega, 1971. 427 E. AVILA SOTO, Federico. Emigración galega a Europa. Disponível em: <vhttp://fisterras.soios.com/poemas/Emigracion_Galega_a_Europa.php>

historiador Marcus Lee Hansen realizou um estudo sobre os emigrantes europeus nos Estados Unidos e sua relação com a pátria de origem, elaborando o que viria a ser conhecido como a “Lei de Hansen”, “o princípio do interesse da terceira geração”, que estabelece que “daquilo que o filho quer esquecer, o neto quer recordar-se” 428.

Utilizando as palavras de Pierre Bourdieu429 pode-se dizer que a região caracterizou-se por ser um espaço estigmatizado por um longo período. Esse recorte negativo reproduziu-se, claramente, na consideração que se tinha dos seus habitantes e os acompanhou onde quer que fossem. O “Dicionário da Real Academia Espanhola” nos informa que galego é sinônimo de bobo na Costa Rica e de pessoa com dificuldade em se expressar em El Salvador. Segundo o livro “Los gallegos en el imaginario argentino”430, o natural da região representa para a população do país tanto tipos como trabalhador e pessoa leal, quanto indivíduos com visão curta, pão duros e rudes. Como afirmou certa vez Eduardo Blanco Amor, jornalista e escritor nascido em Ourense e emigrado à Argentina, “em Buenos Aires, o galego é a primeira pessoa depois de ninguém”431. A situação não se apresenta de forma diferente no Brasil. De acordo com Lúcia Lippi Oliveira, em Salvador, uma das capitais do país com maior colônia galega, eles eram considerados exploradores, pão duros, ignorantes, brutos e sem higiene.432