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Aventura ou necessidade? As diferentes visões sobre a emigração

Para compreender os matizes do discurso atual sobre emigrantes e retornados é importante saber como o processo de saída, e aqueles que partiram, foram retratados ao longo dos anos pelos intelectuais e as elites locais, bem como a forma como eles eram

136 Ibid., n. 140, novembro de 1959, pp. 30-31.

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vistos pela população e pela literatura. A análise das razoes e as conseqüências da emigração mudam de acordo com a classe social de quem fala e do momento histórico.

Em 1888, um dos pioneiros no estudo da emigração espanhola, o deputado e catedrático de direito da Universidade de Madrid, Cristóbal Botella, destacava duas causas primordiais para explicar o grande êxodo: miséria e espírito aventureiro138. A segunda variável, apesar de pouco científica, conjuntamente com os estereótipos do “indiano”139 e do “civilizador”, marcou o discurso de vários pensadores que refletiram sobre o tema ao longo dos anos, “como se existissem povos que estivessem marcados por tal sentido de vida e não fossem capazes de assentar-se em um determinado lugar, como se a transumância constituísse uma parte da sua condição biológica”.140

Alberto Miguez, em livro de 1967, chama a atenção para a permanência desse discurso, também presente nas páginas da revista “Mundo Hispanico”, que considera que o galego tenha “un especial espíritu de aventura que impele al campesino hacia otros horizontes menos cerrados”.141 Apesar dessas explicações não terem nada a ver com a realidade da Galícia, elas denotam uma questão importante: a pouca preocupação de setores da elite com a emigração. “(...) manifiestan el despego dramático de una parte de la sociedad burguesa de Galicia hacia los problemas más urgentes de un pueblo caminante”.142

Em 1973, R. Barral Andrade critica o que considerava uma perspectiva fácil, superficial, anedótica e folclórica sobre a emigração.

O galego emigra por necessidade, e não por ânsia de aventuras, como freqüentemente se tem dito, e a emigração é um doloroso direito para o trabalhador que aspira a um melhor emprego, quando não, simplesmente, a um emprego143

138 SIXIREI PAREDES, Carlos, op. cit., p.19.

.

139 Emigrante que retornava rico para a Galícia. 140 CORES TRASMONTE, Baldomero, op. cit., p. 144. 141 MIGUEZ, Alberto, op. cit., p.105.

142 Ibid, p.107.

No início da década de 1990, é a vez de González Torres afirmar ser necessário abandonar o enfoque centrado no anedótico e considerar a emigração como uma conseqüência do que ela realmente foi: um feito estrutural144.

Dentro dessas duas perspectivas (aventura, civilização e enriquecimento versus problemas socioestruturais) muitos argumentos foram apresentados. Selecionamos alguns pontos de vista que mostram como se delinearam as principais visões sobre o fenômeno, assim como as razões dos que defendiam ou condenavam a emigração.

O teórico do regionalismo Manuel Murguía, criador da Real Academia Gallega, e o intelectual galeguista Ramón Piñeiro, por exemplo, viam a emigração como um direito individual inerente ao liberalismo econômico, produzida mais pela promessa de aventura, riqueza e bem estar no exterior que pela miséria145. Murguía afirma em 1914 que a problemática da fome146

[...] hoje o pequeno preço do bilhete, a comodidade, a rapidez do transporte, a segurança pessoal de que goza em lugares onde somente o nome de espanhol era em outros tempos um perigo, a diária comunicação com Europa, faz com que até o nome de emigrantes seja um verdadeiro contra sentido

como causa da dispersão, assim como a tristeza provocada pela possibilidade de não voltar a ver a família, eram realidades ultrapassadas.

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Em 1960, Manuel Rieiro Romar, então com 17 anos, deixou Santa Comba (A Coruña) sozinho e embarcou em um navio em direção ao Brasil. Ele começou a trabalhar na roça aos 5 anos em sua aldeia, Buxos, onde não havia luz elétrica nem banheiros nas casas, localizada a 5 quilômetros de Santa Comba (A Coruña). Ao ser questionado sobre os motivos que o levaram a tal decisão ele diz:

.

Tive (que sair) porque não tinha comida, né? Eu com 17 anos tinha que ir embora. Éramos quatro, éramos seis, mas dois morreram pequenos. Havia muitas doenças para as crianças pobres sem comida e tal. E quedamos 4, eu sou o maior deles, o mais velho. Então eu tinha que ir embora, outros vizinhos meus, do meu tempo, já tinham ido embora, alguns para o Uruguai, outros para Argentina, outros

144 GONZÁLEZ TORRES, Manuel, op.cit., p. 11.

145 Gran Enciclopedia Galega. Tomo XV. Verbete “Emigración”. Lugo, El Progresso, 2003.

146 Em 1880, no entanto, Murguía escrevia: “Galícia sofre; uma grande população, ativa, frugal, calada e trabalhadora, tem que abandonar a casa, hoje asilo de lágrimas e tristezas, e ir até as cidades em busca de alívio”. MURGUÍA, Manuel. Política y sociedad en Galícia. Madrid: Akal Editor, 1974, p.111.

para o Brasil. Então eu falei para o meu pai, eu quero sair. O caminho era essa, coller a maleta e ir embora148.

Figura 11. Charge da revista “Vida Gallega”, de 1930, retrata a situação de miséria dos galegos.

Para o historiador Xosé M. Núñez Seixas, a defesa do estereótipo da ascensão social dos emigrantes e retornados, que um dia chegaram aos lugares de destino praticamente analfabetos, sem dinheiro, e conseguiram conquistar um patrimônio

considerável, fortalece-se entre os intelectuais galego-americanos como uma forma de afirmar orgulhosamente a capacidade da Galícia e do seu povo149. Esse discurso, porém, além de ajudar a promover a emigração, deixava em segundo plano as causas reais da saída massiva e o impacto que tal processo provocava na região. A construção desse discurso de sucesso também era uma forma de mascarar a verdadeira situação econômica que muitos emigrantes enfrentavam nos lugares de destino. A historiadora Lená Medeiros de Menezes afirma que o imigrante pobre que chegou ao Rio de Janeiro, pobre tendeu a permanecer, afastado, em muito, da representação idealizada da mão-de- obra superior, promotora do progresso, que compunha os discursos imigrantistas da época150.

Além de ser retratado como aventureiro e com grande capacidade para conquistar riquezas, o emigrante era designado por alguns setores, principalmente os governamentais, como um representante da civilização européia que tinha a importante missão de contribuir com a formação de outros povos, discurso que seria retomado pelo franquismo. Assim como uma espécie de colonizador.

Estos pueblos (celtas), que tan intensamente sienten el instinto emigratorio, parecen destinados a una misión trascendental: a transportar las esencias de las viejas civilizaciones europeas a través del mar, al nuevo continente, para crear allí las civilizaciones futuras sobre nuevas bases y principios. A esta tan gran misión ha de contribuir Galicia con todo su esfuerzo y con toda su alma. La obra de Galicia en América ha de ser, principalmente, colaborar en la creación de ese ideal colectivo. El gallego lleva á aquellas tierras, además del tesoro de su trabajo, el tesoro, aún mayor de su alma y en esa alma céltica, aunque él mismo no se dé cuenta de ello, lleva como dormidos, en estado de ensueño crepuscular, grandes ideales 151.

A pluralidade de pontos de vista sobre o tema também aparece no discurso daqueles que defendiam a emigração com base nos problemas estruturais da região. Sem uma alternativa interna viável e rápida a saída era uma forma de romper com a

149 NÚÑEZ SEIXAS, Xosé M. Emigrantes, caciques e indianos: o influxo sociopolítico da emigración

transoceánica en Galicia (1900-1930). Vigo: Xerais, 1998, p. 321.

150 Segundo a autora, o afluxo de estrangeiros para a cidade era composto predominantemente por habitantes do Norte de Portugal, da Galícia e das províncias meridionais italianas. MEDEIROS DE MENEZES, Lená. “Bastidores: Um outro olhar sobre a imigração no Rio de Janeiro” in “Imigração”. Acervo. Revista do Arquivo Nacional, volume 10, número 2, julho/dezembro de 1997, p. 4.

151O texto Los gallegos en America reproduz o discurso do orador e sacerdote galego Lopez y Carballeira promovido no encerramento de uma conferência realizada em A Coruña. “Vida Gallega”, n. 101, 1918.

estrutura de poder local e conseguir recursos que poderiam levar à transformação. Ramón Castro López, por exemplo, considera a emigração positiva porque, além de ter se tornado um dos principais pilares do fomento à agricultura, “teria conseguido mudar a realidade de camponeses submetidos à força bruta e à exploração de caciques e usureros152”. Em sua análise, o governo, em vez de buscar frear a emigração, deveria melhor controlá-la para que a pátria e o próprio emigrante pudessem obter maiores vantagens153, conceito que seria adotado pela política franquista com outro teor.

Antonio Vilar Ponte tinha posição semelhante. Em trecho da peça “A patria do labrego”154, escrita em 1905, o autor mostra como a emigração poderia ser uma forma de escapar da estrutura social hierárquica das aldeias. Em determinado trecho, a personagem Rosa diz:

Que necessidade nós temos, meu pai, de estarmos feito uns escravos aqui, onde os gritos dos caciques nos fará pedir esmolas muito em breve, podendo fazer o que nos manda meu irmão: ir para Havana, onde, como diz na carta: “com menos trabalho que aqui se ganha mais e se está livre dos caciques”155.

E a idéia da emigração como fonte de recursos importante, que poderia dar a um pobre camponês acesso a recursos jamais disponíveis na Galícia, também fazia parte do discurso da minoria que havia conseguido grande progresso material nos lugares de destino. O jornal liberal “Buenas Noches”, editado em Rianxo (A Coruña) pelo indiano José Barreiro, publicava diversos artigos afirmando que graças à emigração milhares de compatriotas puderam chegar a posições que não teriam alcançado no país natal.156

152 CASTRO LÓPEZ, Ramón, op. cit., p.21.

No I Congresso da Emigração, realizado em 1909, Rafael Maria de Labra, então presidente do evento, destacava a vida desafogada da maioria dos emigrantes que trabalhavam na

153 Entre as ações propostas estavam o fomento à educação pública para reverter a alta taxa de analfabetismo; o extermínio do caciquismo político, evitando assim que os emigrantes odiassem a triste administração da pátria; e a melhoria das condições do serviços dos consulados, que em muitas ocasiões tratavam os emigrantes de maneira pouco cuidadosa.

154Segundo o autor, em entrevista concedida ao jornal “El pueblo gallego” de 16 de agosto de 1930, o tema da obra surgiu de observações do cotidiano em Foz (Lugo) durante as eleições. VILAR PONTE, Antonio. A patria do labrego e Almas mortas. A Coruña: La Voz de Galicia, 2002, p. 13.

155 Ibid., pp.63-64.

América, as remessas regulares às famílias e os generosos donativos à pátria como motivos para apoiar o processo de saída157 .

Alguns membros da elite local também defendiam a emigração, ainda que com interesses distintos. González Besada, membro do Partido Conservador, afirma em conferência realizada no Centro Galego de Madrid, em 1907, que a emigração deve ser menos perseguida pelo fato de garantir aos camponeses os recursos necessários para pagar as contribuições ao Estado, as rendas da propriedade ao senhorio, comprar ferramentas e sementes, reedificar a casa e redimir-se do serviço militar158.

Mas havia também quem se colocasse em posição contrária à emigração, mesmo na fase inicial. O padre Martín Sarmiento (1695-1772) foi um dos primeiros a atribuir a intensa saída como uma das principais causas da decadência da região. Modernamente, Otero Pedrayo apresenta opinião parecida. O escritor considera que o processo depauperava Galícia de seu capital e de suas tradições159.

Emigran os homes novos, fortes e audaces. Os que serian capaces de abalarre o pais e modernizalo, incruso de xeito revolucionario; os que serían capaces de trasformaren pol-a lei da necesidá o ambente, e de transmitiren por herdo suas boas cualidás naturaes160.

Por motivos distintos, uma parte da elite econômica, formada por proprietários locais e caciques, também criticava o movimento de abandono das aldeias, já que via seu controle sobre a população se desvanecer.

A defesa da emigração pela elite seria ainda conseqüência do fato de a saída evitar o conflito social, funcionando como válvula de escape161

157 CORES TRASMONTE, Baldomero, op. cit., p.108.

. De acordo com Sixirei, havia três saídas para resolver a problemática situação econômica e social da Galícia na virada dos séculos XIX para o XX: a mendicância, a bandidagem ou a emigração. “Obviamente a derradeira revela-se como a melhor, pois é a única que não conturba a

158 CASTRO LÓPEZ, Ramón, op.cit., p. 23

159 GÁNDARA FEIJOO, Alfonso. La emigración gallega a través de la história. México: Limbo, 1981, pp. 7-8.

160 Catálogo da exposição “Nos mesmos”, p. 13.

161 A possibilidade de se conseguir formas de sobrevivência no exterior aliviaria a miséria dos camponeses e não os levaria a adotar atitudes revolucionárias. CAÑADA, Silverio. “Grand Enciclopedia Galega”. Lugo: El Progreso, 2003.

permanência das relações econômicas tradicionais e a cômoda hegemonia dos donos do poder” 162. A criticada alternativa da emigração produziu duas conhecidas frases no universo galego: “A emigração é uma renúncia à revolta”, de Xosé Manuel Beiras, e “Em Galícia não se pede nada. Emigra-se”, de Alfonso Rodriguez Castelao.

As posições políticas divergentes não levam, contudo, a um questionamento sobre as razões que provocam de fato à emigração massiva. A discussão limita-se às conseqüências, não há um movimento articulado capaz de pleitear soluções reais para esse quadro. As poucas ações serão tomadas na época da Segunda República, logo tolidas pela Guerra Civil, em ações no exílio que não tinha poder de articulação durante o regime franquista, e só poderão ter algum efeito transformador após a democratização da Espanha e a adoção do Estatuto de Autonomia. Essas questões serão vistas mais à frente, no capítulo sobre Autonomia.

1.4. Fracassados, perturbadores da ordem e “desgaleguizados”: Visões sobre os