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A leitura literária na aula

3. Leitura

3.4. Leitura e Literatura

3.4.1. A leitura literária na aula

Segundo Giasson (2005), no último século, foram três os paradigmas sobre o texto literário com influência nas abordagens pedagógico-didáticas. No primeiro, o mais antigo, os sentidos do texto explicavam-se pela biografia do autor. A obra era fruto da vida e, por isso, os pormenores da vida do autor eram esquadrinhados até ao inverosímil e os sentidos do texto pretendiam-se ecos da vida do autor. A tarefa do leitor seria descobrir o sentido que o autor teria querido construir.

Após o afastamento do autor, o texto, sobretudo com o estruturalismo, passou a estar no centro das atenções, sendo entendido como contendo em si todos os sentidos e os seus próprios princípios explicativos. Compreender um texto equivaleria a analisar minuciosamente as suas estruturas, analisar as personagens, os eventos. A tarefa do leitor seria descobrir o sentido que o texto encerra.

No terceiro paradigma, o atual, ganha importância a receção do texto pelo leitor. A significação não existe por si, mas apenas ganha existência quando reconstruída por um leitor. O leitor deixa o papel passivo de espetador ou recetor e passa a ter um papel ativo na interpretação do texto, trazendo a sua contribuição, usando as suas experiências prévias para selecionar imagens e sentimentos que permitam formatar o texto, enquanto este proporciona ao leitor novas experiências. A tarefa do leitor seria, enquanto lê, (re)construir o sentido do texto, pela interpretação das suas vivências. O texto literário convoca, mais do que outros textos, os conhecimentos prévios do leitor: conhecimento de pessoas e lugares, de períodos históricos e culturais diversos, conhecimento de registo escrito, de registo oral, da natureza humana, da gramática da narrativa e formas literárias, entre outros (Early e Ericson, 1993, p. 314). O conceito de conhecimentos prévios deriva da teoria dos esquemas. O leitor usaria os seus esquemas para compreender o que está a ler, fazendo antecipações enquanto lê e lembrando o que já leu (ibidem). Por exemplo, a compreensão do Romance da raposa, de Aquilino Ribeiro, depende em larga medida do conhecimento do leitor sobre a vida nos campos: animais e plantas das serras da Beira, mas, também, das artimanhas necessárias para sobreviver em meios adversos.

O conhecimento dos géneros textuais e a familiaridade com o registo e os padrões das formas linguísticas são aspetos importantes do conhecimento prévio do leitor. Na verdade, se se reconhece a beleza da linguagem de Aquilino, o acesso a essa linguagem, para as gerações mais novas, deve ser mediado pelo adulto (pai ou professor).

O caminho na construção do leitor estético (Rosenblatt, 1994; Eco, 2003) beneficia da mediação do adulto. O papel do adulto é fundamental não só na mediação, mas também no acesso: “[...] a criança é um leitor peculiar, com reduzidas competências básicas de acesso aos textos literários e sem hipóteses de autonomia na escolha” Magalhães (2008, p. 55). Assim, segundo a autora, “Oferecer aos mais pequenos, de modo cumulativo e coordenado, condições para que adquiram efetiva capacidade de ler é um dos desafios maiores que atualmente se coloca aos agentes responsáveis pela educação (...)” (ibidem, p. 69).

Antes de saberem ler, as crianças já convivem com a literatura. Contar e ouvir histórias é uma atividade sem data, que se perde na memória dos tempos. Ao ouvir contar ou ao ouvir ler histórias, a criança aprende o género, a estrutura e sequência do texto. Aprende fórmulas de entrada e saída dos universos textuais: “era uma vez…, No tempo em que os animais falavam…” (Veloso, 1994; Sousa, 1995, 1996); aprende marcadores temporais e espaciais, estruturas linguísticas mais elaboradas, típicas da linguagem literária. Desta forma, “a componente lexical-semântica daquele enunciado é trabalhada, alargando-se a competência linguística da criança de uma forma involuntária e natural” (Veloso, 1994, p. 29).

Segundo Silva (1981, p. 14), “A literatura infantil tem desempenhado uma função relevantíssima (…) na exploração das virtualidades da língua que muitos textos de literatura infantil realizam com surpreendente criatividade. Efeitos rítmicos, jogos rimáticos, aliterações, sugestões fono- -icónicas, exercícios de dicção com sequências difíceis ou raras de fonemas, ilustração dos matizes semânticos das palavras, revelação da força expressiva e comunicativa das metáforas - eis alguns dos segredos e das potencialidades da língua materna que as crianças começam a desvendar e a conhecer intuitivamente através (…) das leituras em voz alta efetuadas por outrem, de textos de literatura infantil”.

A motivação para a leitura é, reconhecidamente, um elemento chave no sucesso ou insucesso nos primeiros anos de escolaridade (Applegate e Applegate 2010, p. 226). Iturbe (2000) aponta a escola como responsável

por alguma falta de hábitos de leitura. Segundo o autor, na escola ensinam as técnicas e os mecanismos para as crianças decifrarem, isto é, transformarem grafemas em sinais sonoros e em palavras, mas esquecem- -se de levar a criança a gostar da leitura. Polanco (1987, p. 33) assume uma posição próxima, ao afirmar: “A los maestros de hoy, como a los de ayer, nos sigue obsesionando la tecnica lectora, y a ella dedicamos el mayor empeño. Preocupados por la eficacia, por el «dominio de la herramienta» - el placer de leer vendrá después -, seguimos dejando en el camino a muchos alumnos que quizá nunca llegarán a conocer el encuentro gozoso con el libro”.

Numa síntese de vários estudos sobre literacia e motivação para a leitura, Applegate e Applegate (2010, p. 226) referem que os bons leitores têm expectativas elevadas acerca do seu desempenho, valorizam a leitura, leem regularmente e de forma entusiasta por motivos pessoais, leem mais do que os colegas, obtêm melhores resultados nos testes de leitura e obtêm melhores resultados na escola.

Não é, porém, de mais sublinhar que gostar de ler, implica saber ler. De acordo com Moreno (2003, p. 13), “lo importante y decisivo es esto: que se- pan leer, que comprendan y entiendan lo que leen porque sin comprensión no hay nada. Ni deleite, ni afición, ni hábito, ni reconstituyentes simbóli- cos, ficcionales o metafísicos”. Iturbe (2004, p. 27) partilha desta opinião, defendendo que o prazer da leitura pressupõe satisfação intelectual, sen- do necessário dotar o leitor de estratégias intelectuais que lhe permitam aceder ao significado para “[...] «atrever-se» a interpretar el sentido en busca del placer”.

Quando se é leitor fluente, há sempre duas dimensões que é importante equacionar: o que se lê e como se lê. Para Eco (2003), os textos literários constroem um duplo leitor modelo, um leitor de primeiro nível ou leitor semântico (que atende fundamentalmente ao que acontece) e um leitor de segundo nível ou leitor estético (tipo de leitor que o texto propõe): “[...] em poucas palavras, o leitor de primeiro nível quer saber o que acontece, o de segundo nível como é contado o que acontece. Para saber como vai acabar a história, de costume basta ler uma única vez. Para se tornar um leitor de segundo nível é preciso ler muitas vezes e certas histórias têm de ser lidas até ao infinito” (ibidem, p. 228). E, na verdade, esta sedução da linguagem literária pode verificar-se desde a mais tenra idade: é frequente um mesmo grupo de pré-escolar pedir para ouvir o mesmo texto dias seguidos.

A dicotomia entre prazer e dever, em termos de leitura, beneficia em ser equacionada. A leitura utilitária e a leitura literária não são incompatíveis. Mais do que atividades opostas serão concebíveis como situando-se numa escala (Rosenblatt, 1994; Giasson, 2007). Em textos em que domina a leitura utilitária, o leitor esforça-se por compreender os elementos apresentados, recorrendo ao que Rosenblatt (1994) designa “aspetos públicos da significação” (no original: public aspects of sense). Em textos em que domina a leitura estética, o leitor recorre fundamentalmente aos “aspetos privados da significação” (ibidem) que englobam as atitudes, os sentimentos suscitados pelas palavras.

Com efeito, a autora defende que a diferença entre leitura estética e leitura não estética depende da atitude e da atividade do leitor em relação ao texto. Assim, no extremo do espetro da leitura não estética o leitor “[...] disengages his attention as much as possible from the personal and qualitative elements in His response to the verbal symbols; he concentrates on what symbols designate, what they may be contributing to the end result he seeks – the information, the concepts, the guides to action, that will be left with him whem the reading is over.

At the aesthetic end of the spectum, in contrast, the reader’s primary purpose is fulfilled during the reading event, as he fixes his attention on the atual experience he is living trough” (ibidem, p. 27).

Além da finalidade da leitura – a informação, os conceitos, os modos de agir -, as características literárias da linguagem por si próprias implicam uma atenção à linguagem, trazendo-a para primeiro plano, como propõe Mukarovsky: “In poetic language foregrounding achieves maximum intensity to the extent of pushing communication into the background as the objetive of expression and of being used for its own sake; it is not used in the services of communication, but in order to place in the foreground the act of expression, the act of speech itself”. (Mukarovsky (1964, p. 19 [1932]) apud Miall e Kuiken, 1994a, p. 390).