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O conceito de literacia emergente

2. O modo escrito

2.2. Educação e Linguagem

2.2.2. Língua em Educação de Infância

2.2.2.3. O conceito de literacia emergente

Literacia emergente é o conjunto de conhecimentos, competências e atitudes sobre linguagem escrita anterior à aprendizagem formal da leitura e da escrita e que é considerado determinante nessa aprendizagem. São três os domínios considerados essenciais para a aprendizagem da leitura e da escrita: desenvolvimento linguístico (incluindo o desenvolvimento da consciência fonológica), conhecimento do impresso e conhecimento estratégico (o que é preciso fazer para ler).

Note-se que o conceito de literacia emergente é recente. Durante muito tempo, a aprendizagem da leitura e da escrita era encarada como uma tarefa exclusiva da escola. Em 1925 surge a primeira referência ao conceito de reading readiness, ou prontidão para a leitura (Garcia, 2008, p. 110), definida como o ponto em que a pessoa está pronta a aprender e o período durante o qual o sujeito passa de não leitor a leitor. Na questão da aprendizagem da leitura, há duas perspetivas que se sucedem no tempo: a aprendizagem seria fruto, fundamentalmente, de maturação ou, fundamentalmente, de educação.

Até meados do séc. XX, a aprendizagem da leitura era concebida como uma questão de maturação, i.e., a criança deveria ser ensinada apenas quando estivesse mentalmente madura para a tarefa de aprender a ler, o que aconteceria por volta dos 6 anos, 6 anos e meio. A longa discussão sobre aprendizagem da leitura oscilou entre a questão dos métodos e a questão da prontidão para a leitura (Ferreiro e Teberosky, 1986, p. 25). Embora, no movimento de estudos da criança dos anos 1920-30, tenha havido interesse sobre comportamentos de escrita e de leitura das crianças antes da escolarização formal, só a partir dos anos 70 é que se começa a estudar em profundidade os conceitos das crianças acerca da leitura e da escrita (Goodman, 1990a). Segundo Cullinan (2000), Mary Clay, em 1966, introduziu o conceito de literacia emergente para veicular a ideia de que a aprendizagem da leitura e da escrita surge muito cedo na vida das crianças e de que esta é um contínuo de aprendizagens e não uma questão de estádios.

comportamentos das crianças na sua interação com livros e com a escrita, quando ainda não sabem ler no sentido convencional. Ao interagir com materiais escritos, a criança vai estabelecendo hipóteses e construindo “teorias infantis” (Ferreiro e Teberosky, 1986) acerca dos sistemas de escrita, antes de chegar ao conhecimento do funcionamento do sistema alfabético. Nesta perspetiva, salienta-se a influência mútua dos comportamentos de leitura e de escrita, ao contrário do que, durante muito tempo, se tinha pensado, que primeiro se aprendia a ler e só depois se aprenderia a escrever.

O desenvolvimento de comportamentos de literacia começa muito cedo na infância, mesmo quando as atividades da criança não parecem relacionadas com literacia. Atividades como ler imagens ou fazer rabiscos permitem à criança ir construindo representações sobre o mundo da escrita. Com o apoio de pais, amas, educadores e a exposição a contextos ricos em escritos, as crianças progridem nas suas concepções sobre o escrito. Em suma, após os anos 70, um enorme volume de investigação concluiu que:

(i) o desenvolvimento da literacia começa muito antes de a criança iniciar a instrução formal na escola primária;

(ii) o desenvolvimento da literacia é alimentado por interações sociais com adultos e por exposição a materiais de literacia;

(iii) ocorre num continuum, sendo as competências adquiridas de formas muito variadas e em idades diferentes;

(iv) as competências de leitura e escrita desenvolvem-se em simultâneo (e não em sequência) e estão relacionadas;

(v) os educadores podem ajudar, envolvendo as crianças em aprendizagens ativas e criando em sala de aula um contexto rico em escritos, isto é, um contexto que reflita a riqueza de estímulos escritos em que a criança está imersa fora da escola.

Na abordagem dos comportamentos emergentes de literacia, o que está em causa é o papel do aprendiz na aprendizagem. Segundo Ferreiro e Teberosky (1986), a criança, de modo informal, desenvolve um conjunto de conhecimentos fundacionais para a aprendizagem formal do modo escrito. Na verdade, a ação da família e dos educadores é fundamental na emergência destes conhecimentos. A interação na família – quantidade de textos extensos, o uso de palavras não frequentes, atividades de leitura - proporciona desenvolvimento de conhecimentos e competências que

suportam as aprendizagens escolares (Tabors et al., 2001).

O ambiente do jardim de infância, contudo, tem um papel ainda mais importante em termos de desenvolvimento e de aprendizagens fundamentais (Dickinson, 2001). Assim, um ambiente que forneça textos extensos, vocabulário rico e variado e com palavras não frequentes tem um impacto mais importante do que o ambiente familiar (ibidem). O que no seio familiar é informal, na escola é pensado com intencionalidade pedagógica e torna-se ação deliberada do educador, assumido como meta de educação pela comunidade escolar. Assim, em jardim de infância deve criar-se um ambiente rico em escritos (Tealy e Sulzby, 1986; Ferreiro, 1997; Carles e Pastells, 2012): etiquetando as áreas da sala e disponibilizando livros e revistas para as crianças lerem; fornecendo materiais de escrita – quer na área da escrita, quer nos locais de jogo simbólico para que as crianças possam escrever listas de compras, recados, receitas de cozinha, receitas médicas, etc.; organizando rotinas que impliquem escrita e leitura: mapa do tempo, mapa das presenças, mapa das tarefas, distribuição de cartões com os nomes das crianças, etc....

Pelo mesmo motivo e do mesmo modo, no primeiro ano de 1º CEB, é necessário dar continuidade e organizar a sala de forma a refletir um ambiente rico em escritos: escritos das crianças, escritos da vida da aula, escritos com função social (o circo que vem à cidade, horário da biblioteca municipal ou a recensão de um novo livro para crianças), escritos de autor. Todas estas experiências devem ser planificadas e organizadas, de modo a convidar a criança a participar em eventos de literacia autênticos que legitimem e deem significado às aprendizagens diárias e que façam progredir a criança para um patamar superior de convívio com a cultura letrada.

As crianças entram no mundo da cultura escrita “[...] through their daily and mundane experiences in their particular social, cultural, religious, economic, linguistic, and literate societies” (Goodman, 1990b, p. 115). No dia a dia, as crianças estão rodeadas de escritos, o que lhes possibilita possuir conhecimentos acerca do escrito como um objeto cultural. Conhecem as funções dos escritos, quem usa a escrita, sabem o que é ler e em que materiais a leitura pode ocorrer; sabem quem lê, onde e para quê as pessoas usam a leitura, reconhecem quem sabe e quem não sabe ler. Sabem, também, o que é escrever, para que serve, quem escreve, com que fins, com que meios escrevem. E também sabem que a leitura e a escrita na

escola são diferentes das de outros contextos e, ainda, por vezes, pensam que só a escrita e leitura da escola são verdadeiras atividades de leitura e escrita e desvalorizam todos os eventos de literacia em que participam fora da escola (Goodman, 1990b, p. 116). O problema é que, muitas vezes, professores e educadores pensam o mesmo e organizam as salas como se a criança tivesse que começar a aprendizagem da cultura escrita a partir do zero. Nas nossas salas de aula, este é um problema mais sério no 1º ciclo, sobretudo no primeiro ano. Observam-se, com frequência, salas nuas, caderno, lápis, manual, exercícios intermináveis de grafismos e ausência de escrita, enquanto atividade semiótica, isto é, veículo de significados a partilhar.

Conhecer as funções comunicativas do escrito e as convenções gráficas e ortográficas é o primeiro passo decisivo em direção à leitura (Siraj- Blatchford, 2004). Professores e educadores precisam de estar atentos e de procurar conhecer e valorizar os conhecimentos das crianças sobre a escrita, para alicerçarem o ensino nesse conhecimento prévio, facilitador da aprendizagem. A partir dos conhecimentos prévios das crianças, deve alargar-se os conhecimentos sobre escrito e explicitamente ir sistematizando esses conhecimentos.

A investigação, consensualmente, apresenta como competências e contextos que proporcionam o desenvolvimento da literacia: desenvolvimento linguístico (sobretudo léxico e consciência fonológica), memória, conhecimento das letras do alfabeto, práticas de literacia na família, educação e estatuto socioeconómico dos pais (Pelletier e Lasenby, 2007), um ambiente rico em linguagem e em comportamentos literatos em jardim de infância (Dickinson, 2001), e na escola em geral. Desocultar o currículo de língua e trabalhar de forma explícita, sistemática e progressiva as questões da literacia é uma forma de promover condições de sucesso para todas as crianças, em especial para as crianças oriundas de contextos mais afastados da cultura letrada.

Nas línguas com escrita alfabética, a consciência das unidades constitutivas da língua (palavras, sílabas, fonemas) é fundamental na aprendizagem do modo escrito. Nesta relação entre a consciência fonológica e a leitura, Smith et al., (1995) identificaram cinco áreas de evidências convergentes, a saber: i) o processamento fonológico explica muitas das diferenças entre os bons e os maus leitores; ii) a consciência fonológica é uma construção unitária multidimensional; iii) a consciência fonológica é causal e reciprocamente influenciada pela aquisição da leitura; iv) a consciência fonológica é uma

capacidade necessária, embora insuficiente para a aquisição precoce da leitura; v) a consciência fonológica pode ser ensinada e aprendida, tendo em conta os seus níveis de desenvolvimento e as características instrucionais próprias de cada nível. Os autores concluem que a consciência fonológica pode ser desenvolvida antes da aprendizagem formal da leitura e da escrita e que esse desenvolvimento promove essa aprendizagem. A consciência linguística, neste caso, em particular, a consciência fonológica, possibilita à criança reconhecer características essenciais do sistema linguístico que, inicialmente, são fundamentais na aprendizagem da escrita (a consciência da natureza segmental da língua e da organização dos sons). Se, numa primeira fase de aprendizagem, é importante que a criança reflita sobre o oral, a pouco e pouco vai construindo o conhecimento que a leva a pensar a escrita como um sistema diferente do da fala. As práticas de leitura e de escrita em jardim de infância ajudam a que a criança comece a encontrar regularidades e invariabilidade na correspondência sons/ grafemas. É a partir da regularidade que se vai estabelecendo a correspondência fonema/ grafema e que a parte do registo se começa a sistematizar.

2.2.2.4. OS PRIMEIROS PASSOS EM