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82 A LINGUAGEM DA MORAL

No documento A Linguagem da Moral (diniz) - R. M. Hare.pdf (páginas 195-200)

“Dever” e imperativos

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dizemos que ele não fez o que pensa que deve. É, portanto, necessário qualificar o critério dado acima para “assentir since­ ramente a um comando” e admitir que há graus de assentimen­ to sincero, sendo que nem todos eles envolvem efetivamente obedecer ao comando. Porém a análise detalhada desse proble­ ma requer muito mais espaço do que posso dar-lhe aqui, e tem de aguardar uma outra ocasião.

11.3. A melhor forma de estabelecer o interesse lógico pri­ mário,do sentido avaliatório de k4dever” é demonstrar que, não; fosse a existência desse sentido, nenhum dos conhecidos pro­ blemas gerados pela palavra surgiriam Pois, das três paráfrases possíveis de “Devo fazer X” dadas na p. 179, as duas primeiras são afirmações de fato. Isso porque, se forem expandidas, des- cobrir-se-á que nelas a palavra “dever” sempre ocorre entre aspa£ ou den trod e uma oração subordinada que começa com “que” ;/ Assim (1) poderia ser parafraseada ainda por “Há um princípio de conduta que as pessoas geralmente aceitam, que diz ‘Deve-se fazer X em circunstâncias de um a determinada espécie’, e agora estou em circunstâncias dessa espécie” . Similarmente, (2) poderia ser parafraseada ainda como “O juízo ‘Devo fazer X" evoca em mim um sentimento de convic­

ção” ou “Considero-me incapaz de duvidar do juízo ‘Devo fazer X ’ ” (embora a última paráfrase seja demasiado forte, pois nem todos os sentimentos são irresistíveis; na verdade, há uma gradação infinita, de vagas inquietações da consciência ao que muitas vezes se denominam “intuições morais”), Agora, o fato de que, quando (1) e (2) são expandidas, o juízo original que parafraseiam ocorre nelas entre aspas mostra que deve exis­ tir algum sentido daquele juízo original que não é esgotado por (1) e (2), pois, se não existisse, a sentença entre aspas teria, por sua vez, de ser parafraseada por (1) e (2), e estaríamos envolvi­ dos numa regressão infinita. No caso de (1), não conheço nenhu­ ma maneira de superar essa dificuldade; no caso de (2), ela pode ser superada temporariamente substituindo (2) por alguma pará­ frase como “Tenho certo sentimento reconhecível”. Mas o arti-

fício é apenas temporário pois se nos perguntam que sentimen­ to é esse ou como o reconhecemos, a resposta só pode ser “É o sentimento chamado ‘um sentimento de obrigação’; é o senti­ mento que você geralmente tem quando diz e diz com intenção, ‘Devo fazer isto e aquilo’ ”.

Isto significa que nem (1) nem (2) pode fornecer o sentido primário de “Devo fazer X”. Agora suponhamos (como não é o caso) que (3) não gerasse nenhum dos enigmas lógicos do tipo que estivemos discutindo; isto é, suponhamos que (3) pudesse ser analisado de forma naturalista. Se assim fosse, então, esses enigmas também não surgiriam nos casos de (1) ou (2), pois já que, além da expressão entre aspas, não há nada mais nas expansões de (1) e (2) que não possa ser analisado de forma naturalista, seria possível levar a cabo uma análise completa­ mente naturalista de todos os usos de “dever” e, portanto, de “bom” (12.3). O fato de isso não ser possível deve-se ao caráter íntratavelmente avaliatório de (3). Deve-se, em última análise, à impossibilidade, mencionada anteriormente (2.5), de derivar imperativos a partir de indicativos, pois (3), por definição, implica pelo menos um imperativo, mas se (3) fosse analisável de forma naturalista, isso significaria que é equivalente a uma série de sentenças indicativas, e isso constituiria uma quebra do princípio estabelecido. Portanto é este fato, o de que a palavra “dever”, em alguns de seus empregos, é usada avaliatoriamente

(i.e., implicando pelo menos um imperativo) que tom a impos­

sível uma análise naturalista e, por conseguinte, gera todas as dificuldades que estivemos considerando. Um lógico que* negligencia esses empregos tornará fácil sua tarefa à custa do? não compreender o propósito essencial da linguagem m ora!

É isso, acima de tudo, que tom a a primeira parte deste livro relevante para o que é discutido no restante. Pois todas as pala­ vras discutidas na Primeira e Segunda Partes têm como função distintiva aprovar ou, de alguma outra forma, orientar escolhas ou ações; e é es'sFcáfáctensticá essencial que desafia quaiquSr análise em termos puramente factuais. Mas, para orientar esco-

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lhas ou ações, um juízo moral tem de ser tal que se uma pessoa assente a ele, tem de assentir a alguma sentença imperativa de- rivável dele; em outras palavras, se uma pessoa não assente a alguma sentença imperativa de tal tipo, isso é evidência cabal de que não assente ao juízo moral num sentido avaliatório - embora, é claro, possa assentir a ele em algum outro sentido (e. g., um dos que mencionei). Isso é verdadeiro em face de minha definição da palavra “avaliatório”. Mas dizer isso é dizer que se ela professa assentir ao juízo moral, mas não assente ao impera­ tivo, deve ter compreendido erroneamente o juízo moral (con­ siderando-o não-avaliatório, embora o falante pretendesse que fosse avaliatório). Estamos, portanto, claramente autorizados a dizer que o juízo moral implica o imperativo, pois dizer que um juízo implica outro é simplesmente dizer que você não pode assentir ao primeiro e dissentir do segundo, a menos que tenha compreendido erradamente um ou outro; e esse “não pode” é um “não pode” lógico - se alguém assente ao primeiro e não ao segundo, isso é, em si, critério suficiente para dizer que com­ preendeu erradamente o significado de um ou de outro. Assim, dizer que os juízos morais orientam as ações e dizer que eles implicam imperativos vem a ser quase a mesma coisa.

Não quero, de m aneira nenhuma, negar que os juízos morais às vezes são usados não-avaliatoriamente, no sentido que proponho. Tudo o que desejo afirm ar é que às vezes são usados avaliatoriamente e que é esse uso que lhes dá as caracte­ rísticas especiais para as quais tenho chamado a atenção; e que, não fosse esse uso, seria impossível dar um significado para os outros usos; e também que, não fossem as dificuldades lógicas ligadas ao uso avaliatório, os outros usos poderiam ser analisa­ dos de forma naturalista. A ética, como ramo especial da lógi­ ca, deve sua existência à função dos juízos morais como guias para responder a perguntas da forma “Que devo fazer?”

11.4. Estou agora em posição de responder a uma objeção que pode ter ocorrido a alguns leitores. Autores sobre ética muita * vezes condenam em outros o “naturalismo” ou alguma falácia relacionada somente para cometê-la eles mesmos numa

forma mais sutil. Pode-se alegar que fiz isso. Sugeri anterior­ mente (5.3) que o term o “naturalista” deveria ser reservado para teorias éticas abertas à refutação em linhas similares às delineadas pelo Professor M oore. Devemos, portanto, pergun­ tar se é possível elaborar alguma refutação análoga de minha teoria. Ora, é vèrdade que não estou sugerindo que os juízos morais podem ser deduzidos de quaisquer afirmações de fafo. Em particular, não estou sugerindo a adoção de definições de termos de valor da espécie que M oore equivocadamente atri­ buiu a Kant. Moore acusou Kant de dizer que “Isto deve ser” significa “Isto é comandado” 5. Essa definição seria naturalista, pois “A é comandado” é um a afirm ação de fato, pode ser expandida como “Alguém (não se revela quem) disse T aça A’ O fato de que o imperativo está entre aspas evita que afete o modo da sentença inteira. É desnecessário dizer que não estou sugerindo qualquer equivalência deste tipo para “bom ”, para “dever” ou para qualquer outra palavra de valor, exceto, talvez, quando são usadas no que denominei sentido “entre aspas” ou em alguma outra forma puramente descritiva. Mas pode-se dizer, não obstante, que, de acordo com meu trata­ mento dos juízos morais, determinadas sentenças, que no uso comum não são analíticas, tornar-se-iam analíticas - e isso seria muito semelhante à refutação de Moore. Por exemplo, considere sentenças como a do Salmista

Aparta-te do mal e faze o bem6,

ou o verso do hino de John Wesley

Persevera na trilha do dever7.

Em minha teoria essas sentenças, pode-se alegar, tornar- se-iam analíticas, pois de “A é mau” pode-se deduzir a sentença imperativa “Aparta-te de A”, e de “A trilha T é a trilha do dever” pode-se deduzir a sentença imperativa “Persevera na trilha T”.

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Ora, é preciso observar que sentenças como as citadas po­ dem ser expandidas em sentenças nas quais um juízo de valor ocorre numa oração subordinada. Assim, se em vez da arcaica “Aparta-te do m al”, escrevemos “Não faça o que é mau”, esta pode ser expandida em “Para todo X, se X é mau, não faça X ”. Para que essa instrução seja aplicada, é necessário conjugá-la com a premissa menor “A é mau” e das duas premissas concluir “Não faça A”. Para que esse raciocínio seja proveitoso, é neces­ sário que a premissa menor “A é mau” seja um a afirmação de fato; tem de haver um critério para dizer inequivocamente se é verdadeira ou falsa. Isso significa que, nessa premissa, a pala­ vra “mau” deve ter um significado descritivo (qualquer que seja o significado adicional que possa ter). Mas para que o raciocínio seja válido, a palavra “m au” na premissa maior deve ter o mesmo significado que na menor; lá também, portanto, ela deve ter um significado descritivo. Ora, é esse conteúdo descri­ tivo que impede a premissa maior de ser analítica. Sentenças do tipo que estamos discutindo são normalmente utilizadas por pessoas que têm padrões de valor firmem ente estabelecidos e cujas palavras de valor têm, portanto, um componente conside­ rável de significado descritivo. N a sentença “Não faça o que é mau” , o conteúdo avaliatório de “mau” é temporariamente ne­ gligenciado; o falante, por assim dizer, deixa de apoiar o padrão por um momento, apenas para colocá-lo novamente no lugar com o verbo imperativo. Esse é um exercício excelente na manutençãç de nossos padrões e é por isso que se encaixa tão bem em hinos e salmos. Mas só pode ser executado pelos que não têm nenhuma dúvida quanto ao padrão.

Contraste com esses casos outros que são superficialmente semelhantes. Suponha que me perguntem “Que devo fazer?” e eu responda “Faça o que for melhor” ou “Faça o que deve fazer” . Na maioria dos contextos tais respostas seriam consideradas ¡mil ei s. Seria o mesmo que perguntar a um policial “Onde devo ONlíieionm meu carro?”, e ele responder “Em qualquer lugar em i|iu* wjn k^ílim o estacioná-lo”. O falante pede-me um conselho

preciso quanto ao que deve fazer; ele pergunta a mim justamen­ te porque não sabe que padrão aplicar em seu caso. Se, portanto, respondo dizendo-lhe que se conforme a algum padrão cujas condições ele ignora, não lhe forneço nenhum conselho útil. Assim, em tal contexto, a sentença “Faça o que for melhor” real­ mente é analítica; pois, já que se assume que o padrão é desco­ nhecido, “o melhor” não tem nenhum significado descritivo.

Assim, minha descrição do significado das palavras de valor não é naturalista; não resulta em tomar analíticas senten­ ças que não o são no uso comum. Antes, fazendo completa ju s­ tiça aos elementos descritivos e avaliatórios do significado das palavras de valor, demonstra como elas desempenham o papel que efetivamente desempenham no uso comum. Uma dificul­ dade até certo ponto similar é apresentada pelo famoso parado­ xo de Satã: “Mal, sê o meu bem ” Este presta-se ao mesmo tipo de análise, mas por motivos de espaço sou forçado a deixar ao leitor a tarefa de deslindar ele mesmo o problema.

11.5. Pode -se perguntar neste ponto: “ Você não está assi­ milando demasiadamente os juízos morais aos imperativos uni­ versais comuns que existem na maioria das línguas?” Realmen­ te objetou-se a todas as análises imperativas dos juízos morais que elas tornariam um juízo moral como “Você não deve íumar (nesta cabine)” o equivalente do imperativo universal “Não fumar”. E eles claramente não são equivalentes, embora ambos, segundo a teoria que venho advogando, impliquem “Não fu­ m e”. É, portanto, necessário form ular o que distingue “Você não deve fumar” de “Não fumar”. Já aludi a esse problema, mas ele requer mais discussão.

A primeira coisa a observar em “Não fumar” é que não é um universal propriamente dito porque se refere implicitamen­ te a um indivíduo; é a forma abreviada de “Nunca fume nesta cabine” . O juízo m oral “Você não deve fumar nesta cabine” também contém referências a indivíduos, pois os pronomes “você” e “esta” aparecem nele. Porém, em vista do que disse acima (10.3), esse não é o fim da questão. O juízo moral “Você

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