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A linguagem na perspectiva dos estudos da pragmática

2.2 O paradigma da comunicação e a linguagem como interação

2.2.1 A linguagem na perspectiva dos estudos da pragmática

Em seu texto A linguagem em uso, Fiorin (2004, p. 166) afirma que apenas o conhecimento do sistema estrutural da língua não é suficiente para entender certos fatos linguísticos empregados numa situação concreta de fala. O mesmo autor considera que o estudo da pragmática é necessário, pois há palavras e frases cuja interpretação só pode ocorrer na situação concreta de fala. Por isso, este ramo da linguística estuda a relação entre a estrutura da linguagem e o seu uso, o que de fato foi deixado de lado pelos estudiosos anteriores.

Armengaud (2006, p. 9) questiona o seguinte: que dizemos exatamente quando falamos? Por que perguntamos à pessoa que está ao nosso lado se ela pode nos passar o sal, quando é evidente que pode? Quem fala e quem ouve? Com que intenção? Como alguém pode falar alguma coisa totalmente distinta daquilo que realmente queria dizer? Essas são algumas indagações que a pragmática tenta responder.

Ainda conforme o referido autor, a pragmática é um estudo novo, cercado de fronteiras fluidas. Ele acrescenta que no interior da teoria, existem pesquisadores que divergem na sua maneira de pensar e de conceituar a pragmática. Ele apresenta três linhas de pensamentos que se chocam, no entanto, essas divergências não enfraquecem a pragmática, pelo contrário, elas servem para construir um rico cruzamento interdisciplinar. Além disso, a pragmática é uma pesquisa em pleno desenvolvimento, embora ainda não haja conformidade quanto as suas conjecturas, as suas demarcações e nem mesmo quanto a sua terminologia, ela suscita grandes esperanças.

Fiorin (2004) chama atenção para o seguinte fato

Há duas grandes correntes na Pragmática: uma que considera que ela estuda o conjunto de conhecimentos que deve ter o falante, para utilizar a língua nas diferentes situações enunciativas, e outra que afirma que os aspectos pragmáticos estão codificados na língua, que contém todas as instruções para os usos possíveis. A primeira pensa a Pragmática que pode estudar fatos da fala, está radicalmente separada da Semântica; a segunda

integra Pragmática e Semântica, cada uma estudando aspectos diferentes do sentido (p. 170).

A essa altura outro questionamento é inevitável: mas o que é pragmática afinal? Como defini-la? Para Armengaud, uma definição coerente seria a de Francis Jaques: [...] “A pragmática aborda a linguagem como fenômeno simultaneamente discursivo, comunicativo e social” (2006, p. 11). O autor continua afirmando que a linguagem é por ela concebida como um conjunto intersubjetivo de signos cujo uso é determinado por regras compartilhadas e, ainda, diz respeito [...] “ao conjunto das condições de possibilidade do discurso” (p. 12).

A pragmática inaugura uma nova maneira de se pensar a linguagem e por isso se torna polêmica. Por ser uma teoria recente, ela sofreu certa rejeição por parte dos pesquisadores já consagrados. Principalmente porque questiona princípios que até o momento eram indiscutíveis, como a prioridade do uso descritivo e representativo da linguagem, a preferência do sistema e da estrutura sobre o uso e o domínio da língua sobre a fala (ARMENGAUD, 2006, p. 14).

Do ponto de vista de Armengaud,

[...] a pragmática prolonga outra linguística: a linguística da enunciação inaugurada por Benveniste. A distinção maior não se dá mais entre língua e fala, mas entre enunciado, entendido como o que é dito, e a enunciação, o ato de dizer. O ato de dizer é também um ato de presença do falante. E esse ato é marcado na língua: ao instituir uma categoria de signos móveis e um aparelho formal de enunciação, a linguagem permite a cada um se declarar como sujeito (2006, p. 14).

Fiorin (2004, p. 168) destaca que a pragmática deve explicar como os falantes são capazes de entender não literalmente uma dada expressão, como podem compreender mais do que as declarações significam e por que um falante opta em dizer alguma coisa de maneira indireta e não de maneira direta. Além do mais, deve mostrar como se fazem as inferências necessárias para chegar ao sentido dos enunciados.

O referido autor destaca que a pragmática apresenta (resgata?) os conceitos que até então eram negligenciados em detrimento de outros considerados mais importantes. Tais conceitos são o ato, o contexto e o desempenho. O primeiro é entendido como [...] “agir sobre outrem”. É instaurar um sentido a partir de um ‘ato de fala’. O segundo abrange a situação [...] “concreta em que os atos de fala são

emitidos”, ou seja, compreende tudo aquilo que é necessário para entender e ponderar o que é dito. E o terceiro é a [...] “realização do ato em contexto, seja atualizando a competência dos falantes, isto é, seu saber e seu domínio das regras, seja integrando o exercício linguístico a uma noção mais compreensiva, como a de

competência comunicativa” (ARMENGAUD, 2006, p. 13).

A pragmática não tem nada de disciplina introvertida. Seus conceitos podem ser exportados para várias direções. Não apenas ela “faz explodir o quadro das escolas linguísticas”, como intervém nas questões clássicas internas à filosofia; ela inspira filosofias; e é, sem dúvida, chamada a renovar profundamente a teoria da literatura (2006, p. 15).

O mesmo autor elenca seis questões filosóficas sobre as quais a pragmática lança uma nova luz, a saber: a subjetividade, a alteridade, o “cogito cartesiano”, a dedução transcendental, o aspecto deliberativo e o fundamento da lógica.

1) A subjetividade. O que é que muda na concepção do sujeito quando ele é considerado antes de tudo como falante e, melhor ainda, como interlocutor, quando nos aproximamos dele não mais a partir do pensamento, mas a partir da comunicação?

2) A alteridade. A questão chamada “de outrem” é percebida a partir da interlocução. O outro é aquele com quem eu falo, ou não falo. Com quem me situo em uma comunidade de comunicação.

3) O “cogito cartesiano”. O “eu penso” é sempre verdadeiro toda vez que o pronuncio. Verdadeiro por uma necessidade pragmática. Sua contraditória é pragmaticamente sempre falsa, absurda. Quando digo: “Eu não existo”, o próprio fato da enunciação contradiz o conteúdo enunciado.

4) A dedução transcendental das categorias em Kant. Trata-se de estabelecer o valor objetivo dos principais tipos de síntese do pensamento, cujo uso objetivo é regulado por princípios. O ponto de vista pragmático leva a considerar não apenas o aspecto propriamente “linguageiro” dessa dedução, mas, além disso, o aspecto deliberativo da avaliação intersubjetiva do que seriam as grandes questões a cerca do mundo.

5) Esse aspecto deliberativo se exprime de modo mais nítido nas grandes controvérsias que marcam a história das ciências.

6) O tema pragmático pode ser situado no próprio fundamento da lógica. A lógica ali reencontra suas fontes gregas (ARMENGAUD, 2006, p. 15- 16).

É importante notar que, conforme Fiorin (2004), para compreender o sentido numa determinada comunicação temos que considerar toda uma variedade de inferências que estarão presentes no processo de interação. A inferência é uma forma de subentendido. Se uma expressão possui diferentes sentidos quando é usada, isso é resultado de um princípio pragmático aplicado a ela. A pragmática vai tentar descobrir quais princípios governam os diversos sentidos dados pelo uso.

Dessa forma, entende-se que [...] “as palavras do discurso significam porque há uma instrução sobre a forma de interpretá-las” (p. 169).

Vale destacar que o estudo da pragmática é indispensável para entender a produção do sentido. O texto Por que utilizar sentidos não-literais?, da autora Ana Zandwais (1990), fala sobre a presença dos sentidos não-literais na linguagem verbal, ou seja, discute sobre as informações implícitas que podem estar presentes num determinado enunciado. Ela inicia afirmando que não temos o direito de dizer tudo o que pensamos ou queremos, porque corremos o risco de sermos punidos ou até marginalizados pela sociedade. Além disso, a presença de sentidos não-literais na linguagem é justificada pelo fato de que em certas circunstâncias de interação verbal há alguns tipos de julgamentos que não podem ser expressos de forma explícita, porque irão ofender, rejeitar, humilhar, estabelecer confrontos diretos ou, até mesmo, o indivíduo que enuncia pode perder a credibilidade diante de seus interlocutores. Outra justificativa apontada pela autora para o uso de sentidos não- literais é que [...] “tudo aquilo que se diz de forma explícita no discurso, pode se constituir em matéria de controvérsias, de objeções a serem feitas pelo receptor” (p. 11).

De acordo com a autora, garantir uma suposta aparência de neutralidade nos discursos evitando possíveis comprometimentos ou cobranças de autorretratação do que é dito, sem dúvida não é uma tarefa simples. Entretanto, a não transparência de sentidos na linguagem garante vantagens. Quando se expõe algo de forma implícita garante-se maior isenção de responsabilidade sobre os conteúdos das falas proferidas, afinal, apenas aquilo que é dito pode ser contestado. O ato de significar sem dizer/escrever constitui-se um grande desafio para o leitor/ouvinte, pois aquelas informações que não estão ditas têm de ser interpretadas através de algum tipo de lógica para produzir efeitos de sentido ao interlocutor. É importante ressaltar também que ao analisar o nível implícito da linguagem o leitor/ouvinte precisa levar em conta as condições sócio-históricas de produção dos atos de comunicação verbal como um conhecimento das leis que governam a lógica das línguas naturais.

A pragmática tem a sua origem em uma série de interrogações fundamentalmente filosóficas. Ela surgiu da filosofia da linguagem. A constituição da

pragmática se deve a uma crise da filosofia ocorrida no final do século XIX, [...] “em razão da qual as diferentes correntes de pensamento efetuaram um retorno radical à questão da linguagem” (PAVEAU & SARFATI, 2006, p. 215).

Paveau & Sarfati (2006) atestam que essa crise da racionalidade levou os teóricos a se tornarem mais do que nunca receptivos ao parâmetro linguageiro. Assim, os diferentes componentes pragmáticos que constituem uma língua natural como a ambiguidade e a subjetividade não podem ser submetidos aos critérios da objetividade. De acordo com os referidos autores, a tomada dessa consciência motiva a virada linguística da filosofia. Antes de me deter especificamente na virada linguística e nos conceitos apresentados pela pragmática, busco entender um pouco melhor o modo de operar da razão.

As inovações propostas pela pragmática podem ser resumidas da seguinte forma: utilizar a língua significa realizar ações; a interação verbal é sempre norteada pelos participantes da comunicação; a compreensão do não dito depende das inferências realizadas pelo interlocutor e o contexto é essencial para entendermos o que fazemos com as palavras quando falamos. A partir dessa ótica, os enunciados deixam de ser observados como estrutura e passam a ser considerados no contexto de sua construção. Além disso, [...] “ela intervém para estudar a relação dos signos com os usuários dos signos, das frases com os falantes” (ARMENGAUD, 2006, p. 12-13).

O ponto de partida da pragmática foram os trabalhos dos filósofos John Austin e Paul Grice. Austin (1990) defende a ideia de que dizer é muito mais do que transmitir informações, é também uma forma de agir no mundo. No entender deste filósofo, a linguagem, além de uma forma de ação, é também um meio de interação.