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A Subjetividade e a intransparência da linguagem

Como observei na primeira parte desta pesquisa, durante muito tempo a linguagem foi considerada um instrumento de comunicação, servindo apenas para descrever e comparar as coisas com a realidade. A subjetividade não era considerada.

Com os estudos da Pragmática, esse entendimento foi repensado e, atualmente, se entende que, ao enunciar uma fala o sujeito não só apresenta os fatos que observa, mas, principalmente, age no mundo. Dessa forma, entendo que, através da linguagem, as relações sociais são transformadas e a identidade do sujeito é desenvolvida. Para que a ação comunicativa adquira significado, o contexto e a subjetividade são elementos fundamentais para o entendimento dos interlocutores.

Prestes (1996), baseada nas concepções de Habermas, define que a ação comunicativa refere-se à interação de no mínimo dois sujeitos [...] “capazes de linguagem e de ação, que estabelecem uma relação interpessoal” (p. 72). Ela acrescenta que a ação comunicativa pressupõe a linguagem como meio de entendimento entre os interlocutores, articulando o mundo objetivo, social e subjetivo. A estes três mundos correspondem as pretensões de validade, requeridos pelos interlocutores.

Assim sendo, o processo comunicativo articula

O mundo objetivo, a que corresponde à pretensão de que o enunciado seja verdadeiro. As afirmações sobre fatos e acontecimentos referem-se à pretensão de verdade.

O mundo social, a que se vinculam as pretensões de que o ato de fala seja correto em relação ao contexto normativo vigente. Trata-se da pretensão da justiça.

O mundo subjetivo (a que só o falante tem acesso privilegiado), a que se vincula a pretensão de veracidade. A intenção expressa pelo falante coincide com aquilo que ele pensa (PRESTES, 1996, p. 72).

Para Prestes (1996, p. 72), as pretensões de validade possibilitam o entendimento, pois [...] “se há contestação das mesmas, é possível reiniciar o processo argumentativo até que o consenso venha a ser obtido”. Nesse processo é possível identificar críticas e aprender com erros, recuperando o caráter pedagógico da razão. A referida autora acrescenta que, para que haja entendimento, os sujeitos precisam entrar num acordo linguístico que satisfaça as condições de uma aceitação. As concepções da Pragmática Universal, desenvolvida por Habermas, estão fundamentadas na fala e na competência comunicativa, que [...] “admite haver em nossa linguagem um núcleo universal e regras básicas que todos dominem” (p. 75).

Sobre a teoria dos atos de fala de Austin, Prestes ressalta que existe uma diferença entre o conteúdo das proposições e a força ilocucionária. Por exemplo, [...]

nas enunciações eu asseguro que p, percebe-se a força ilocucionária (aquela força decorrente do agente que faz a ação dizendo algo). O interlocutor, além de entender, estabelece conexões com os fatores extralinguísticos. [...] “Ao usar a linguagem cotidiana, os homens se põem em relação com o mundo físico, com os demais sujeitos, com suas intenções e sentimentos” (PRESTES, 1996, p. 75).

O ato de fala inclui uma parte performativa que permite, àquele que o enuncia, executar, ao mesmo tempo em que fala, a ação a que se refere o elemento performativo. A fala é também ação e essa relação linguística transforma-se em razão comunicativa. Na ação comunicativa, o objetivo fundamental é assegurar o entendimento de todos, esclarecendo os diversos pontos de vista. O autor destaca que os propósitos ilocucionários dos atos de fala são obtidos através do reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade. E a insistência em apoiar a teoria da ação comunicativa na pragmática formal deve-se ao fato de ela permitir uma compreensão descentrada do mundo, que supera as patologias da comunicação (ibidem, p. 76).

Apesar da compreensão acerca da interação linguística ter avançado consideravelmente nos últimos anos, muito do que se observa na prática pedagógica ainda está amparado em concepções de linguagem que não privilegiam a interação, de forma a se obter um acordo bem sucedido entre os sujeitos envolvidos no ato educativo. A linguagem nos permite ações que podem apresentar implicações determinantes na vida dos educandos, já que aí a grande questão é se as nossas ações serão bem sucedidas ou não. Toda forma de linguagem acarreta consequências, entretanto, nem sempre é possível visualizar antecipadamente os efeitos decorrentes das ações exercidas de uns sobre os outros. Aqui temos uma relação com a teoria dos atos de fala. Quando Austin fala em perlocucinário, ele ressalta que o locutor pode provocar efeito/ações futuras em outra pessoa através da sua locução, influenciando em seus sentimentos ou pensamentos, embora não tenha controle sobre essas ações.

Entre o que é dito e o que é interpretado pelo outro não existe apenas uma simples descrição de fatos. Não podemos descartar o papel primordial estabelecido pelas inferências no processo de interpretação. Nesse sentido Grice contribuiu com os seus estudos ao enfatizar que a linguagem informa muito mais do que aquilo que está expresso num enunciado e que a cooperação entre os sujeitos é essencial para o sucesso da conversação.

Quando pensamos em educação logo nos vem à mente a ideia da existência de um relacionamento entre seres humanos que através da linguagem buscam novos conhecimentos e o aperfeiçoamento daqueles já existentes. Sendo assim, a prática educativa se solidifica no âmbito das interações e, para tanto, o diálogo se faz essencial. A apreensão do conhecimento só é possível por meio da interação e da cooperação entre os sujeitos. Através do comprometimento estabelecido entre os sujeitos envolvidos no processo educativo, temos o processo de formação humana, que pode ser compreendido como introdução/aprendizagem no mundo humano que se fundamenta através da linguagem (BOUFLEUER, 2010, p. 137-139).

Primeiramente precisamos desfazer a ideia de que a linguagem possa constituir um mecanismo de transmissão que permite passagem de algo que esteja num sujeito para outro. Isso não é possível, pois quando falamos da linguagem todo efeito de sentido implica interpretação, impossibilitando o que seria uma mera passagem de um sujeito para outro. Do mesmo modo, qualquer enunciado, seja ele proferido sob a forma de uma ordem, de um elogio ou de uma ameaça, só produzirá algum efeito no interlocutor, caso este tenha como interpretá-lo. A linguagem implica reciprocidade, transformando seu resultado sempre dependente do interlocutor e do contexto, apto para apresentar elementos à interpretação. A necessidade de interpretação permite à linguagem uma característica singular: a produtividade. Esta é de caráter imprevisível, pois possibilita a produção daquilo que é inédito. Assim, ao final de uma enunciação, na qual os proferimentos são enunciados e interpretados, ambos resultam transformados, sem que essa mudança tenha sido algo simples “recebimento” do outro (BOUFLEUER, 2010).

Através da linguagem podemos aprender coisas novas a todo o momento, por isso nos diferenciamos dos outros animais e a linguagem não pode ser considerada como um mecanismo de transmissão. A linguagem não pode ser absorvida, nem repassada como algo que se transpõe de um para o outro. Gadamer destaca que através da conversação procuramos chegar a um acordo. Nesse processo, faz parte receber o outro, [...] “deixar valer os seus pontos de vista e pôr-se em seu lugar, e talvez não no sentido de que se queira entendê-lo como individualidade, mas sim procurar entender o que diz” (1999, p. 561).

No entanto, o fato de utilizarmos as mesmas palavras não significa que estarmos expressando exatamente os mesmos sentidos. O interlocutor não tem acesso ao sentido e a experiência prévia que as palavras proporcionaram ao serem enunciadas pelo locutor. Por isso afirmo que o sentido de um enunciado depende, principalmente, de seu conteúdo implícito e da capacidade do interlocutor de interpretar aquilo que não foi dito. Nesse sentido, a intransparência da linguagem reserva certos sentidos que ficam estabelecidos entre o dito e o não dito. Para Gudsdorf (1987), o significado de uma palavra não é explícito, por isso, o conhecimento que ela busca propagar conservar-se inacessível para aquele que a ouve/lê.

Quando expressarmos linguisticamente as nossas percepções diante dos outros, estes ativam o seu conhecimento prévio, bem como as suas experiências para a constituição de um entendimento acerca do que foi enunciado. Ao ouvir o que foi pronunciado, são desafiados a reconstruírem seus sentidos anteriormente estabelecidos e a organizarem novas percepções. Essa capacidade de reconstrução propiciada pela linguagem permite ao homem assumir uma liberdade criadora tanto por parte de quem profere como por parte de quem ouve ou isso acontece porque, ao proferir um determinado enunciado, nós observamos a reação do interlocutor, se está atento ou não. Os sinais emitidos por ele irão direcionar o rumo da conversação, fortalecendo a aceitabilidade daquilo que concebíamos como um conhecimento. É assim que se coloca a possibilidade de que algo de novo se institua. Assim, entendo que a linguagem instiga a reconstrução dos saberes dos interlocutores, através da qual uns se transformam diante dos outros. E é justamente pela não transparência, pela opacidade, que a linguagem tem essa capacidade de criação que a consolida na base de tudo o que ponderamos como humano (BOUFLEUER, 2010).