• Nenhum resultado encontrado

A Liquidez dos diagnósticos e a Patologização do corpo e da alma

Medicaliza-se, hoje em dia, dos crimes à vida diária, os comportamentos sexuais, os sofrimentos pessoais e profissionais, o luto e a aprendizagem.

A generalização do uso de medicamentos psicotrópicos, vitaminas, anabolizantes, o “combate” ao envelhecimento, as cirurgias estéticas realizadas sem critério algum, o exercício físico que massacra, a indústria de cosméticos, o luto, a infância e a aprendizagem, tudo pode ser medicado, tudo pode ser utilizado para moldar os corpos e atenuar os “defeitos”. Nossos “erros” podem ser corrigidos, segundo as preferências da sociedade contemporânea (OLIVEIRA, 2009).

Para Birman (2012), estas práticas fazem parte de todo o processo de medicalização do Ocidente iniciado no século XIX, que passou a promover os ideais da saúde. O autor discute que as categorias de normal, anormal e patológico, passaram a fazer parte dos saberes médicos e das políticas públicas com o objetivo de “normalizar” a população. A qualidade de vida passou a ser o fundamento para a modernidade ocidental. O corpo disciplinado passou a ser matéria-prima para o biopoder, sendo o adestramento corporal, o modelo de excelência para uma população saudável. O discurso psiquiátrico orgulha-se de manejar medicamentos que podem regular o mal-estar, agindo diretamente em neurotransmissores e promovendo a melhora desejada, sem o esforço de uma psicoterapia.

O autor ainda define a sociedade de controle como aquela que produz estratégias que vão atuar como dispositivos produtores de vidas desejantes, sempre na falta de algo que preencha o vazio do existir. Ser humano nesse mundo é dever desejar e sentir apenas aquilo que está dentro das normas do que pode ser desejado.

Não há mais lugar para frustrações e todos devem ser felizes. A vida de vitrine, porém produz sintomas físicos e mentais.

Este sujeito se vê frente a inúmeras possibilidades que provocam este vazio depressivo nas quais se inclui a falta do sentimento de existência autêntico, resultante das constantes frustrações. Desta forma, o sentimento de existência buscado dependeria de uma presença constante de um outro (objeto gratificante), e esta presença do outro acaba por se constituir o problema da sociedade atual, que, pela excessiva permissividade e gratificações, paradoxalmente, as tornam insuficientes, em função de que o desejo permanece insaciável (ESTEVES e GALVAN, 2006, p. 133).

Para facilitar o manejo dos sintomas mentais, os psiquiatras dispõem de um grande catálogo de sintomas, conhecido como DSM, na sua quinta atualização. Criado e produzido por médicos, os sintomas vão sendo ao longo dos anos, inseridos ou removidos deste manual, conforme os interesses da época. O DSM V incluiu praticamente todos os modismos e sintomas da vida cotidiana que passam a fazer parte da hiperprodução diagnóstica, estigmatizando sujeitos, incluindo crianças (FRANCES, 2016).

Segundo Gotzsche (2016), Allen Frances reconhece que o DSM IV já havia criado três falsas epidemias: a bipolaridade infantil, o autismo e TDAH, em decorrência da ampliação em demasia dos critérios diagnósticos.

O fato de termos crianças sentadas quietas na escola não pode ser tomado como evidência de que o diagnóstico estava correto; mostra apenas que a anfetamina tem esse efeito (e muitos outros, incluindo apatia, falta de humor e isolamento social) (GOTZSCHE, 2016, p.187).

Frances (2016) defende que a imprecisão dos diagnósticos que vem sendo realizados inflacionou o uso excessivo de medicamentos, sendo que da população norte-americana, 6% é dependente de fármacos prescritos e que hoje em dia, há mais mortes por tais medicamentos do que por drogas urbanas ilegais. O autor considera que os psicofármacos são a maior fonte de renda dos fabricantes; os dados são de 2011 quando foram vendidos 18 bilhões de dólares em antipsicóticos, 11 bilhões em antidepressivos e 8 bilhões em medicamentos para TDAH. E aponta que esses remédios estão sendo prescritos em 80% dos casos por clínicos gerais com pouco treinamento para o uso adequado.

Gotzsche (2016), especialista em medicina interna, acredita que poucos psiquiatras estão dispostos a reconhecer que a especialidade está em descontrole e que estão prescrevendo cegamente.

Frances (2016) aceita que algo saiu errado e que agora resta aos interessados, promover saúde e salvar a psiquiatria, especialidade que quando bem praticada é de extrema eficácia, promovendo cura, compaixão e aconselhamento.

Na década de 1980, na edição do DSM III, a Academia Americana de Psiquiatria sugeriu a separação das perturbações por déficit de atenção e hiperatividade em relação aos distúrbios de aprendizagem e propõe uma orientação operacional para a realização dos diagnósticos, orientação esta que foi incorporada ao DSM IV, em nome de uma facilitação prática, incluindo os traços comportamentais apresentados pelos pacientes.

O DSM-V, publicado em 18 de maio de 2013, é a mais nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana, resultado de um processo de doze anos de estudos, revisões e pesquisas de campo realizados por centenas de profissionais. O objetivo final foi garantir que a nova classificação, com a inclusão, reformulação e exclusão de diagnósticos, fornecesse uma fonte cientificamente embasada para aplicação em pesquisa e, na prática clínica (ARAÚJO e LOTUFO NETO, 2014).

Os critérios para o diagnóstico do TDAH se mantiveram similares aos do antigo manual, mantida a lista de dezoito sintomas divididos entre desatenção e hiperatividade/impulsividade.

O manual reconhece 3 tipos clínicos de pacientes com TDAH, dependendo das manifestações comportamentais predominantes, o tipo desatento, tipo hiperativo impulsivo e o tipo combinado, sendo que para enquadrar a criança em qualquer um dos tipos, o procedimento diagnóstico deve conter as informações emitidas pelos adultos de sua convivência, pais e professores, a avaliação neurológica para excluir outras causas orgânicas, a avaliação psicológica e os testes de inteligência (LEGNANI e ALMEIDA, 2010).

Os subtipos do transtorno foram substituídos por especificadores. Indivíduos até os dezessete anos de idade devem apresentar seis dos sintomas listados, enquanto indivíduos mais velhos devem apresentar cinco. No novo manual, o limite de idade foi expandido para os doze anos. Além disso, o DSM-V permitiu que o TDAH fosse diagnosticado como comorbidade. As alterações provocaram polêmica pelo risco de criarem uma super estimativa e aumento da incidência de TDAH na população geral, mas a Associação americana de Psiquiatria (APA) e diversos especialistas defendem a mudança como favorável (ARAÚJO e LOTUFO NETO, 2014).

Os autores defendem que o DSM-V é um instrumento desenvolvido para ser aplicado por profissionais habilitados, experientes e com sólido conhecimento da psicopatologia, sendo a principal crítica é a de que esta classificação se tornou pouco criteriosa, aumentando o número de pessoas que podem ser diagnosticados com algum transtorno mental.

O psiquiatra Allen Frances, chefe da equipe que elaborou o DSM-IV, expressa há tempos sua preocupação com o aumento de casos de crianças com o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e alerta para o possível aumento progressivo de diagnósticos e a redução do limite de sintomas necessários para a confirmação da doença. Segundo ele, o uso indevido do diagnóstico pode ocorrer de forma muito mais frequente seguindo os critérios do DSM-V (CAPONI, 2014).

Pesquisadores de diferentes países do mundo, como Pignarre (2006), Elisabeth Roudinesco (2013), Phillips (2010), Paris e Phillips (2013), Sadler (2010, 2013), Hacking (2013), Horwitz (2007, 2002, 2013), Conrad (2007), Braunstein (2013), junto a grupos internacionais como Stop DSM (2013), ou o coletivo francês denominado Pas zero de conduit (2013), apresentaram sólidas objeções a esse modelo de identificação de diagnósticos, antes e depois da publicação do DSM-V. No Brasil, se somaram críticas à estratégia reducionista do DSM por pesquisadores provenientes de campos diversos como Camargo et al. (2006), Caliman (2009), Ortega (2004, 2008), Garcia Maldonado (2012) e Dunker e Neto (2011), dentre outros (CAPONI, 2014, p. 742).

Basta olhar o número de entidades nosológicas descritas no DSM a cada edição, atualmente na quinta, produzindo a homogeneização das esferas da vida pela Associação Psiquiátrica Americana, sinalizando o perigo de se estar vivo nos dias de hoje.

Para Moysés e Collares (2014), a patologização dos modos de levar a vida e de aprender avançam em escala inimaginável em uma espiral viciada. A cada volta, mais e mais pessoas são capturadas pelas teias de diagnósticos de transtornos mentais.

Segundo o NIMH (National Institute os Mental Health), 26,2% dos americanos com mais de 18 anos de idade, teriam algum transtorno mental diagnosticável; na Europa Ocidental, 38% dos habitantes teriam algum transtorno mental possível de ser diagnosticado; nos Estados Unidos da América, a taxa de pessoas ingressando no Sistema de Seguridade Social por diagnóstico de transtorno mental cresceu de 1/48 em 1955, para 1/184 em 1997, e 1/76 em 2007. Assim como também o número de crianças norte americanas encaminhadas a consultas médicas em busca de tratamento para possível transtorno mental aumentou 35 vezes, entre 1997 e 2007 e o diagnóstico de transtorno bipolar em crianças e adolescentes aumentou 40 vezes entre 1994 e 2003.

Para o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), 13 a 20% das crianças americanas sofrem 1 episódio de transtorno mental por ano e mais de 10.000 crianças norte americanas com apenas 2 a 3 anos de idade estão recebendo drogas psicoestimulantes por um diagnóstico de lentificação do tempo cognitivo.

E no Brasil, em 2008, a Associação Brasileira de Psiquiatria afirma que 12,6% dos brasileiros entre 6 e 17 anos apresentariam sintomas de transtornos mentais importantes, após realizada pesquisa pelo Instituto brasileiro de opinião pública e estatística (IBOPE).

Ao tudo, Moysés e Collares (2014, p. 62) afirmam que:

Acreditar que a Medicina possa ter um papel importante na resolução do fracasso escolar pode, temporariamente, constituir uma política de superação de conflitos, pelo ocultamento do problema, de seus determinantes e, principalmente, das possibilidades concretas de enfrentamento do problema.

No campo médico conceitual, as proposições teóricas e metodológicas acerca do TDAH, vão se construindo como uma verdade que nunca foi comprovada. Em consequência, instrumentos sem critérios científicos tentam ensinar os professores a triar os alunos e a prever um diagnóstico diferencial entre a inquietação, desatenção, agressividade e o TDAH (COLLARES e MOYSÉS, 1992; HECKERT e ROCHA, 2012).

Deve-se enfatizar que não se trata de estudar as doenças do aprender para compreender o processo ensino-aprendizagem normal. O grave problema da educação brasileira e da política educacional, assim como as altíssimas taxas do fracasso escolar não se devem aos distúrbios de aprendizagem (MOYSÉS e COLLARES, 2014), mas a forma como esta acompanha as mudanças do mundo contemporâneo.