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A luta de classes e a Comunicação Social na Constituição de 1988

3 O MODO DE REGULAÇÃO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL

3.3 A luta de classes e a Comunicação Social na Constituição de 1988

Em 15 de janeiro em 1985, após uma longa crise financeira que se abateu sobre o Brasil, a ditadura chegou ao fim e foi eleito um novo presidente. Embora a Emenda Dante de Oliveira, que garantiria eleições diretas, não tenha sido aprovada pela Câmara dos Deputados, um Colégio Eleitoral elegeu Tancredo Neves como novo Presidente da República. Porém, Tancredo Neves ficou doente antes de assumir e acabou falecendo. Assumiu o vice-presidente José Sarney, que comandou o processo de transição democrática. Para Florestan Fernandes (2007), a não aprovação das eleições diretas representou um passo decisivo para a transição lenta, gradual e segura do regime da República institucional para um Estado de direito. “A omissão dos deputados e senadores, que renegaram a melhor solução, significa, claramente, que o Congresso está firmemente empenhado nessa forma de transição e, portanto, na desmobilização do Povo na

construção da democracia” (FERNANDES, 2007, p.62). Ainda que tenha sido consequência, em parte, das pressões populares, a transição foi feita num processo transformista “pelo alto”, sem a participação daqueles setores.

Segundo Venício Lima (2001), a Rede Globo manifestou seu apoio a Tancredo Neves, a ponto de, já como presidente, ter se reunido em almoço comemorativo com Roberto Marinho e Antônio Carlos Magalhães, que viria a ser Ministro das Comunicações no seu governo, na residência que as Organizações Globo mantinham em Brasília. Outro fato salientado por Lima é que a Globo permaneceu omissa na cobertura da campanha pelas Diretas Já até duas semanas antes da votação da Emenda Dante de Oliveira.

Em 1 de fevereiro de 1987, foi instalada a Assembléia Nacional Constituinte (ANC). Ao invés de convocar eleições específicas para a composição da Assembléia, o Congresso Nacional, mais uma vez, optou por um processo de mudança “pelo alto”, transformando-se sumariamente em ANC. Fernandes (2007) avalia que esse ato deu continuidade naquele momento a uma tradição brasileira na esfera política de “manter as rédeas presas, para que a massa popular e as classes trabalhadoras sejam perenemente banidas do exercício do poder” (Idem, p. 61). O autor avalia:

Prevaleceram os interesses de classe da burguesia nacional e estrangeira e a valorização dos partidos da ordem, unidos na Aliança Democrática (PMDB e PFL), e de seus aliados orgânicos. Também predominou o veto militar à alternativa “radical” de uma Assembléia Nacional Constituinte exclusiva, que se soltasse dos controles institucionais e políticos seja dos partidos da ordem e dos políticos profissionais, seja das classes possuidoras mais privilegiadas e das várias instâncias ultraconservadoras do governo da ‘Nova República’ (Idem, p. 62)

Segundo Bolaño (2007), durante o processo constituinte, de forma geral, duas grandes frentes se confrontavam – conservadores e progressistas - nos debates que levaram à composição de um capítulo inteiro dedicado à comunicação, o que representou a elaboração de diretrizes para um novo modelo de regulação setorial. Jambeiro (2002), citando estudo realizado por Connif, lembra que 32% dos constituintes eram homens de negócios, e outros 13% eram vinculados ao setor privado da economia. Em contrapartida, aqueles identificados com a classe trabalhadora não eram mais que 12%. De acordo com Adriano Pilatti (2008), o bloco conservador era composto pelos seguintes partidos: PDS, PFL, PL, PDC, PTB e pela fração “conservadora” do PMDB; já o bloco progressista era integrado pelas seguintes agremiações: PCB, PCdoB, PDT, PSB e PT, assim como pela “esquerda” do PMDB. Sendo que 306 dos senadores e deputados constituintes faziam parte do PMDB, 201 eram ligados a partidos integralmente conservadores, e 50

pertenciam a partidos de esquerda. Ou seja, na Assembléia Constituinte os setores dominantes tinham a maioria dos votos, o que garantiu a efetivação dos seus interesses. Antes mesmo de iniciar os trabalhos, Florestan Fernandes alertou para a movimentação da burguesia, “por todos os meios possíveis”, para garantir maioria no Congresso Constituinte, com o objetivo claro e explicitamente declarado de paralisar a revolução democrática, esvaziá-la de conteúdos concretos e manter a tradição do “idealismo constitucional”. “Para elas, uma Constituição natimorta não é só um atrativo, é o único modo de dar continuidade à contra-revolução preventiva em um mundo perverso de símbolos trocados e de aparências estéreis” (FERNANDES, 2001, p. 54).

Contudo, o fim do regime ditatorial, ainda que a transição para a democracia tenha sido realizada “pelo alto”, representou uma maior participação dos setores populares na vida política do país e no processo constituinte, mesmo que de forma incipiente. A materialização da Constituição, enquanto regulamento central da ossatura material do Estado, foi construída a partir da luta de classes e entre as frações de cada uma. Como afirmou Poulantzas (1978), o Estado é perpassado de lado a lado pela luta de classes, ainda que cada classe ocupe um lugar determinado na estrutura estatal de acordo com a separação entre capital e trabalho. O Congresso Constituinte foi um lócus de (re)organização e (re)articulação da classe burguesa, ainda que assimilando as reivindicações das classes subalternas, sobretudo em momento em que elas retomavam o seu direito de participação política e que ainda se encontravam, de certo modo, fragilizadas.

As discussões acerca da indústria de TV foram colocadas sob a responsabilidade do Sub- Comitê de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática. Pautando o debate estavam, principalmente, de um lado, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e parlamentares genericamente denominados progressistas, intelectuais das classes subalternas, e, do outro, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e parlamentares partidários do chamado centrão, que condensava as diversas frações da burguesia, em sua maioria, vinculadas aos setores ruralista e empresarial.

A Abert defendia basicamente que a radiodifusão fosse regulada pelo poder Executivo, não por um Conselho Nacional de Comunicação, e que fosse explorada pela iniciativa privada nos moldes do Código Brasileiro de Telecomunicações e do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão, respectivamente de 1962 e 1963. Já a Fenaj apontava cinco diretrizes gerais como demandas mínimas para a nova Constituição, a saber: concepção de comunicação social como bem público; direito da sociedade de estar informada, informar e se expressar; estabelecimento de

um sistema público de comunicação social; criação de um Conselho Nacional de Comunicação independente, com a missão de elaborar e supervisionar a implementação de políticas democráticas para o setor; e elaboração de normas contra o monopólio e oligopólios midiáticos. A discussão entre as partes não progrediu e a situação continuou no impasse, tanto que o Comitê de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática foi o único entre os 24 existentes que não apresentou conclusões à presidência do Congresso. “No plenário, contudo, os interesses dos majoritários parlamentares concessionários ou aliados de concessionários de emissoras de rádio e TV tinham condições de ganhar qualquer confronto” (JAMBEIRO, 2002, p. 150).

Segundo Bigliazzi (2007), os constituintes ficaram longe de um acordo. Enquanto a parcela progressista via a redução do controle do Estado como uma vantagem para o controle social; o outro grupo, não se opunha a diminuição do Estado, mas discordava do controle por parte da sociedade. Para esse grupo, havia outras instituições capazes de ocupar o vazio deixado pelo Poder Executivo e o principal substituto parecia ser o Poder Legislativo (BIGLIAZZI, 2007, p. 26).

O meio encontrado para resolver esse impasse foi a redação do artigo 223, que determina que a exploração “deve ser feita por entidades privadas, públicas e estatais”, de maneira complementar, ainda que o texto constituinte não apresente definição sobre o que seria cada um desses sistemas, tampouco de qual seria a própria definição de sistema. O artigo estabelece ainda que as concessões e renovações devem ser aprovadas pelo Congresso Nacional. “Este aumento de poder do Legislativo na matéria não deve ser confundido com um verdadeiro avanço democrático, tratando-se antes da manutenção do modelo anterior, com salvaguardas ainda maiores para os concessionários” (BOLAÑO, 2007, p.20). O fato da não renovação de uma concessão ter que ser aprovada por, no mínimo, dois quintos dos deputados e senadores em votação nominal, é uma forma de garantir ainda mais os interesses dos concessionários, uma vez que grande parte dos parlamentares são também empresários, direta ou indiretamente, de emissoras de rádio e TV. Além disso, como salienta Jambeiro (2002), é custoso reunir essa quantidade de parlamentares para deliberar sobre interesses próprios, sobretudo porque é difícil imaginar a maioria esmagadora dos parlamentares votando contra si próprios ou seus colegas.

As discussões acerca da proposta de criação de um Conselho de Comunicação ilustram bem como foram acirrados os debates acerca do tema comunicação. De acordo com Bigliazzi (2007), o relatório da deputada Cristina Tavares (PMDB-PE) incorporou diversas propostas da

Fenaj e da então Frente Nacional de Lutas por Políticas Democráticas de Comunicação. Entre as propostas, estava a de criação de um Conselho autônomo dos demais poderes, que teria entre suas obrigações estabelecer os critérios dos processos de concessão e deliberar sobre a concentração do mercado. “O Conselho seria essa instância de moderação dos conflitos surgidos no processo de democratização, de implementação de um direito à igual participação no processo comunicativo” (BIGLIAZZI, 2007, p. 9).

Neste “novo cenário”, o Conselho teria um papel fundamental. Tratava-se, nas palavras de Cristina Tavares, de um “instrumento de ação social sobre os meios de comunicação”. Seria “formado por representantes do Estado e da sociedade civil”, a exemplo dos Estados Unidos, “que desde 1934 possui a sua Comissão Federal de Comunicação” [...] O relatório concluía a sua análise do papel democrático da comunicação social com uma lembrança do que seriam, na opinião da relatora, as duas principais demandas sociais apresentadas à Constituinte: “obter-se o maior controle da sociedade sobre os conteúdos dos meios de comunicação que colocam em suas casas” e “agregar um caráter social ao uso que se faz dos meios de comunicação, fazendo servir à população e ao seu real interesse” (Ibidem, p. 10).

Após uma semana do relatório da deputada Cristina Tavares, o deputado José Carlos Martinez (PMDB-PR), também empresário da radiodifusão, apresentou uma emenda que suprimia a proposta da relatora. A denominada Emenda Martinez extinguia o Conselho Nacional de Comunicação proposto por Tavares e apresentava como justificativa o argumento de que a Constituição não deveria se preocupar com a sua própria implantação, mas sim com o controle de um poder pelo outro. Pois, segundo o entendimento do deputado Martinez, nenhum órgão era mais representativo do que o próprio Congresso Nacional (Ibidem, p.11). Ao final do processo, a sugestão apresentada pela Emenda Martinez foi aceita e o Conselho foi criado como órgão auxiliar ao Congresso Nacional, com caráter consultivo.

A proposta de substituir um conselho pelo próprio Congresso Nacional (revestida de argumentos de representatividade) se aproximava da definição de um processo de outorga de concessões de radiodifusão em que deputados e senadores proprietários de emissoras seriam partes e juízes ao mesmo tempo, como foi alertado pelo constituinte Artur da Távola. A proposta abria caminho para a legalização de um esquema que há muito se beneficiava da parceria entre Estado e indústria. O fato histórico é que a Emenda Martinez foi aprovada de forma bastante questionável, ao final de uma reunião que durou dois dias. Sua aceitação em caráter substitutivo levou Cristina Tavares a abandonar a sessão. Houve denúncias de que deputados constituintes teriam recebido promessa de canais de radiodifusão para derrubar o relatório de Cristina Tavares e aprovar a Emenda Martinez (Ibidem, p. 11).

Para Jambeiro (2002), foi graças à ação da Abert que a Assembléia Constituinte deixou de criar um Conselho Nacional de Comunicação, de caráter independente e deliberativo, criando ao invés disso, o CCS, como órgão consultivo do Congresso. Ainda que esse processo tenha um

caráter eminentemente conjuntural, de “pequena política”, ele é essencialmente orgânico e está atrelado a um projeto de longo prazo, que consiste em barrar a participação social em um órgão regulador do setor da comunicação social do país. Assim, o caráter consultivo não foi senão uma forma de expurgar o mínimo de participação popular nas definições das políticas de comunicação.

No geral, a Constituição de 1988 criou novas obrigações e direitos para a indústria de TV e modificou alguns atos regulatórios já existentes. O novo texto da Constituição manteve o caráter nacionalista da radiodifusão, consentindo apenas que brasileiros a explorem. Manteve também o Poder Executivo como instância exclusiva para controlar e regular o serviço de radiodifusão através de concessões a entidades públicas ou privadas. Além disso, aboliu completamente a censura, garantindo ao Estado apenas o direito de classificar indicativamente os programas de rádio e TV de acordo com faixas de idade e horário de exibição. O artigo 220 proibiu, direta e indiretamente, que a mídia fosse objeto de monopólio e oligopólio e criou meios legais para assegurar aos indivíduos e às famílias a possibilidade de defesa contra programas de TV e publicidade.

Embora, como afirme Jambeiro (2002), o grupo vitorioso nos debates que se travaram na Constituinte acerca do tema comunicação social tenha sido o dos radiodifusores privados por meio da Abert, não se pode negar os avanços que o Capítulo V da Constituição de 1988 representou para o setor. Ficaram estabelecidos os seguintes dispositivos: a proibição da censura (art 220); a criação de meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão (art. 220); obrigatoriedade de que a produção e a programação das emissoras tenha, preferencialmente, finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, além de promover a cultura nacional e regional (art. 221). Além disso, o artigo 54 proibiu que deputados e senadores exerçam cargos ou sejam proprietários de empresas concessionárias de serviço público, como é o caso da radiodifusão, ainda que o capítulo específico sobre a comunicação não faça referência ao mesmo.

Contudo, para que grande parte dessas alterações fosse colocada em prática, a nova Constituição previa que ao Congresso Nacional cabia elaborar leis complementares específicas para cada questão. Esta é a situação, por exemplo, dos dispositivos que definem os direitos do cidadão frente aos prestadores de serviços públicos; a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal; o impedimento da formação de oligopólios e monopólios; a

regionalização da produção; preservação das finalidades educacionais. Para Bolaño (2007), é o conjunto desses dispositivos que pode ser entendido como base para a construção de um novo modelo de regulação das comunicações, o que nunca se concretizou. A maior parte dos artigos do Capítulo V da Constituição de 1988 não foi regulamentada até os dias atuais, deixando os meios de comunicação de massa, em grande medida, sob a regulação do Código Brasileiro de 1962.

A falta dessa regulamentação acaba preservando, na prática, o velho modelo. Mesmo a vitória que foi a abolição da censura, à falta de regulamentação dos direitos do telespectador, especialmente, no que se refere à proteção do menor e do adolescente, acaba dando munição aos defensores da manutenção do capitalismo selvagem em matéria de comunicação no país (BOLAÑO, 2007, p. 21).

Neste sentido, Bigliazzi (2007) entende que a Lei 8.389/1991, que regulamentou a criação do Conselho de Comunicação Social, ficou distante dos ideais que nortearam as discussões durante a Assembléia Constituinte. Ainda assim, o CCS só foi instalado em 2002, 11 anos depois da promulgação da lei que o criava. Desde então, só funcionou por quatro anos e permanece paralisado desde 2007, porque os novos conselheiros não foram indicados pelo Senado Federal. No que se refere ao artigo 54 da Constituição, um levantamento feito pela Agência Repórter Social, mostrou que um terço dos senadores e mais de 10% dos deputados eleitos para o quadriênio 2007-2010 controlam rádios ou televisões. Já de acordo com uma pesquisa realizada pelo Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília (LaPCom/UnB), 37,5% dos membros titulares da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados (CCTCI) e 47% dos titulares da Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado (CCT) são proprietários de emissoras de Rádio e TV ou têm familiares controladores deste tipo de veículos de comunicação, fatos que contrariam o disposto na Carta Magna. No tocante à regionalização da programação, circula no Congresso Nacional, desde 1991, o Projeto de Lei 256, de autoria da deputada federal Jandira Feghali (PC do B -RJ). Em 10 de dezembro de 2002, o PL foi aprovado pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática. Em 13 de agosto de 2003 foi a vez da Comissão de Constituição e Justiça aprová-lo. O projeto seguiu para o Senado onde permanece até os dias atuais.

Por último, deve-se salientar que a estatização dos serviços de telefonia, implementada pelo CBT e levada a cabo pelo governo militar, foi incorporada ao texto da Constituição em seu artigo 21, que determinava que somente empresas estatais poderiam explorar os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de

telecomunicações. Já os “demais serviços de telecomunicações”, como a radiodifusão, permaneceram sendo concedidos à iniciativa privada.