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2 MODO DE REGULAÇÃO, ESTADO E MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA

2.6 A perspectiva de Poulantzas

2.6.2 O Estado Moderno

Nikos Poulantzas explica que a materialidade institucional do Estado moderno e a sua separação da economia devem ser primeiramente encontradas nas relações de produção e na

divisão social do trabalho. “São a única base de partida possível de uma análise das relações do Estado com as classes e as lutas de classes” (Idem, p 51). Martin Carnoy (1988), lembra que Poulantzas desenvolve o conceito de separação das esferas política e econômica, por meio do Estado, em quatro partes: “a divisão do trabalho manual e intelectual, a individualização, o direito e a nação” (CARNOY, 1988, p. 146). Esses são os elementos fundamentais no funcionamento do Estado para deslocar a luta de classes da arena econômica para a política e para reorganizar todos os seus respectivos campos e espaços, consequência da total espoliação do trabalhador direto nas relações de produção capitalista.

Por meio da divisão social do trabalho, que separa o trabalho intelectual do manual, o Estado capitalista assegura a divisão de conhecimento e poder e a incorpora no conjunto dos seus aparelhos, possibilitando assim a relação orgânica entre trabalho intelectual e dominação política. O Estado, afastado das relações de produção, coloca-se ao lado do trabalho intelectual, constituindo um saber e um discurso dominantes que possibilitam a exclusão das massas populares dos aparelhos. Assim, todos os aparelhos de Estado, sejam repressivos, ideológicos ou econômicos, encarnam o trabalho intelectual à medida que se afastam do manual.

Aparelhos baseados em sua ossatura numa exclusão específica e permanente das massas populares situadas ao lado do trabalho manual, que aí são subjugadas indiretamente pelo Estado. É a monopolização permanente do saber por parte do Estado-sábio-locutor, por parte de seus aparelhos e de seus agentes, que determina igualmente as funções de organização e de direção do Estado, funções centralizadas em sua separação específica das massas (POULANTZAS, 1978, p. 54).

É no seio do Estado capitalista onde se dá a relação orgânica entre trabalho intelectual e dominação política, isto é, saber e poder, se articulam. Na concepção gramsciana, é no âmbito dos aparelhos de Estado que os intelectuais orgânicos atuam, efetuando o vínculo entre estrutura e superestrutura e divulgando a ideologia dominante. O Estado é o lócus efetivo da organização das classes dominantes, que estabelecem assim uma função de regulação diante do conjunto da formação social, formulando o discurso da estratégia e da tática, inclusive adaptando-o às classes a que se dirige.

A individualização é o modo como o Estado capitalista age para impedir que os trabalhadores se organizem como classe. Segundo Carnoy (1988), o Estado para Poulantzas considera e trata cada membro da sociedade como um indivíduo, seja trabalhador ou capitalista, separando-o de sua respectiva classe social. No nível da produção, toda pessoa, seja trabalhadora, capitalista ou gerente, compete com os demais membros da sua classe. “Assim, o Estado

reunifica esses indivíduos isolados (na esfera econômica) no seio da esfera política, sob a égide do Estado-nação” (CARNOY, 1988, p. 149), que busca representar a vontade coletiva de trabalhadores e capitalistas. O Estado, enquanto entidade centralizadora, estabelece a atomização dos indivíduos ao passo que os representa na unidade do seu corpo (povo nação). Assim, o Estado é em seu discurso unidade representativa que agrupa as mônadas formalmente equivalentes (soberania nacional, vontade popular). Poulantzas salienta que, embora esse mecanismo de individualização esteja presente nas trocas mercantis gerais, a sua base central está nas relações de produção e na divisão social do trabalho. “O total desapossamento do trabalho direto de seus meios de trabalho dá lugar à emergência do trabalhador ‘livre’ e ‘nu’, desligado da rede de laços que antes o formavam na sociedade medieval” (POULANTZAS, 1978, p. 61). Dessa forma, os trabalhos são executados independentemente um do outro, sem necessidade de organização e cooperação própria, predominando assim a lei do valor.

O indivíduo, bem mais que a criação da ideologia político-jurídica engendrada pelas relações mercantis, aparece aqui como o ponto de cristalização material, ponto focalizado no próprio corpo humano, de uma série de práticas na divisão social do trabalho. É nessa individualização que se escora a materialidade institucional do Estado capitalista. Ele inscreve em sua ossatura a representação da unidade (Estado representativo-nacional) e a organização-regulagem (centralismo hierárquico e burocrático) dos fracionamentos constitutivos da realidade que é o povo-nação (Idem., p. 62).

Contudo, segundo Poulantzas, o Estado não possui um papel neutro diante da realidade econômica, mas trabalha organizando a divisão social do trabalho e (re)produzindo o fracionamento-individualização social. Segundo o autor, o Estado possui técnicas de saber (ciência) e práticas de poder11 que é responsável pelo processo de normalização, que ao passo que homogeneíza, individualiza por meio de um acompanhamento dos desvios, estabelece os níveis, fixa as especialidades e torna úteis as diferenças ajustando-as entre si.

Ora, se por um lado o Estado enquanto representante do “interesse social” regula e representa, por meio dos aparelhos de coerção, os níveis de normalização, é por meio dos aparelhos ideológicos que ele divulga e internaliza esses procedimentos, em consonância com as funções econômicas. O modo de regulação, enquanto ordem legitimadora das ações estatais, que institucionaliza em seu discurso o bem-estar social, constitui o cerne desse processo. O modo de regulação possui o caráter mediador, enquanto consequência das articulações entre as classes

11 A obra de Poulantzas estabelece um diálogo constante e, em certa medida, analisa, ora concordando ora refutando,

sociais e as frações de classe, contudo representa o momento da institucionalização formal, legitimadora, da hegemonia da classe no poder, na medida em que é consequência da desarticulação e enfraquecimento da classe subordinada no âmbito das relações de produção e na divisão social do trabalho. Poulantzas explica que os limites desse Estado dependem das lutas populares e das relações de força entre as classes.

A individualização é consagrada pelo direito, que permite que todos os indivíduos sejam iguais na esfera política, mesmo que diferentes e separados no âmbito das relações de produção. Ou seja, representa o quadro formal de coesão para esses indivíduos. Além disso, o direito constitui-se na possibilidade de repressão.“Para Poulantzas, o Estado capitalista não separa o direito da violência, nem substitui a repressão pelos mecanismos de persuasão. Ao contrário, o Estado desenvolve um monopólio da violência física legitima” (CARNOY, 1988, p. 152). A lei representa o monopólio da violência e do terror, uma vez que integra a ordem repressiva. Esse monopólio da violência física sustenta as técnicas de poder e os mecanismos de consentimento, ela está no cerne dos dispositivos disciplinares e ideológicos, que também a legitimam, moldando assim a materialidade do corpo social. “A colocação das técnicas do poder capitalista, a constituição dos dispositivos disciplinares, a emergência das instituições ideológico-culturais (do parlamento ao sufrágio universal à escola) pressupõem a monopolização da violência pelo Estado” (Idem, p. 79). Mas, se Poulantzas critica a concepção althusseriana que entende o Estado enquanto pura negatividade, não poderia deixar reconhecer também na lei esse aspecto. Para ele, a lei comporta alto grau de positividade, “pois a repressão jamais se identifica à pura negatividade” (Idem, p. 81)12.

A individualização em marcha no processo de produção capitalista e os fracionamentos reais do corpo correspondem, de acordo com o autor, à formalidade, abstração, generalização e axiomatização jurídico-burguesa da lei, de modo que todos são iguais desde que se tornem ou sejam burgueses, o que a lei permite, no nível do discurso, da aparência, ao mesmo tempo em que interdita, no nível da realidade estrutural, da essência. “O reino da lei capitalista está fundamentado no vazio do significante que a envolve” (Idem, p. 87).

12

Gramsci (2007), por sua vez, afirma que o direito dever ser entendido como instrumento para criar e manter um certo tipo de civilização e de cidadão, assim como a escola e outras instituições, fazendo desaparecer certos costumes e atitudes e elaborando outros. “[O direito] deve ser elaborado para ficar conforme a tal finalidade, ser maximamente eficaz e produtor de resultados positivos [...] O direito é o aspecto repressivo e negativo de toda atividade positiva cívica desenvolvida pelo Estado” (GRAMSCI, 2007, p. 28).

Para Poulantzas a lei capitalista é o amortizador e canalizador das crises políticas de tal modo que elas não provoquem a crise do Estado, reproduzindo e legitimando o modo de produção vigente. Ela organiza as frações de classe no poder e regula o exercício do seu poder frente às classes dominadas. Mais uma vez, embora partindo de lugares diferentes, a concepção do autor se encontra com a perspectiva regulacionista francesa acerca do modo de regulação.

Os trabalhadores expropriados dos seus meios de produção pelo Estado capitalista são reunificados sob a tutela do Povo-nação. Carnoy salienta que essa nação não significa a mesma coisa que o Estado, embora o Estado capitalista pareça, em particular, ser um “Estado-nacional”, pois ele trabalha ativamente para estabelecer uma unidade nacional. Para Poulantzas, a nação constitui, já antes do capitalismo, a unidade para a reprodução do conjunto das relações sociais. Contudo, no sistema capitalista, as matrizes de espaço e tempo não são as mesmas que outrora, pois estão agora vinculadas à materialidade da divisão social do trabalho capitalista, das relações de produção, da ossatura do Estado, das práticas e técnicas de poder econômico, político e ideológico capitalistas e “são o substrato das representações, da ordem do mito, da religião, da filosofia, ou do ‘vivido’ do espaço-tempo (Idem, p.97). A nação moderna é uma criação do Estado, pois os elementos que a constituem são transformados pela ação direta do Estado ao organizar a materialidade do espaço e do tempo.

Assim, a idéia de nação é perpassada por dois sentidos: o de território e o de tradição. De acordo com a interpretação de Carnoy, o território, constitui-se como o espaço moderno onde o trabalhador assalariado, fragmentado e separado dos meios de produção e do espaço por eles definidos, é reincorporado e assimilado. “A nação moderna redefine interior e exterior: dentro desse próprio espaço estão inscritos os movimentos e a reprodução ampliada do capital, a generalização da troca e as flutuações monetárias” (CARNOY, 1988, p. 155). Assim, os aparelhos do Estado moderno materializam a matriz espacial específica do capitalismo: serial, fracionado, descontínuo, parcelário, celular e irreversível, de acordo com as necessidades do modo de produção capitalista. “Espaço implicado nas relações de produção, na propriedade econômica e na posse pelo capital dos meios de produção como decupagem do processo de trabalho em unidade de produção e reprodução capitalistas” (idem, p. 103). Essa matriz espacial está materializada nos aparelhos de Estado.

Já a tradição histórica comum, denominada por Poulantzas “matriz temporal do historicismo”, modifica a concepção de tempo dando-lhe um caráter segmentado, seriado,

dividido pelo tempo da produção e em direção a uma reprodução ampliada com fins universais, ao contrário da noção de tempo pré-capitalista, que era homogênea. Ela pressupõe as novas relações de produção e a divisão social do trabalho. O Estado monopoliza e cria o momento futuro, e constitui o presente enquanto ligação entre o passado e aquele.

O tempo capitalista é mensurável e estritamente controlado por relógios, cronômetros e calendários precisos. Essa espécie de tempo coloca um novo problema: ela tem de ser unificada e universalizada; e é preciso criar uma medida de tempo única e homogênea para unificar os próprios ritmos temporais separados (tempo do trabalhador, tempo burguês e tempo econômico, social e político) – separados pelo processo de produção capitalista (classes) e pelos sistemas políticos (o Estado) – num conceito de tempo capitalista “universalizado” (CARNOY, 1988, p. 157).

Dessa maneira, a constituição da nação sob o Estado capitalista é a forma de unificação do povo dividido pela produção capitalista em classes, “num novo conceito de espaço e tempo, um conceito que não pretende deixar a classe dominada compreender quem é e por que é” (Ibidem, p. 157).