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TRATAMENTO DAS FONTES

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 97-128)

3 EFEITO DE HISTORICIDADE DA FICÇÃO

3.2 TRATAMENTO DAS FONTES

Além de apresentar suas fontes, o narrador apresenta o modo como as tratou. Como já dito anteriormente, a metaficção pode funcionar como o mais central dos elementos de relativização dos limites entre história e ficção. Assim, a análise do tratamento das fontes ficcionalizadas no romance Santa Evita aponta para o efeito de historicidade da ficção.

Neste trabalho, considera-se que a ideia apresentada em uma ficção como Santa Evita em que se utilizam vários tipos de fontes historiográficas, é demonstrar que a história é uma construção e que os historiadores, ao escreverem-na, expõem sua própria versão dos fatos. Tal versão não é mais que uma das versões possíveis.

120Tradução nossa: “O sistema das cartas deve dar resultado, porque cada vez chegam mais cartas e, por outro lado, já não posso ir a nenhum lugar sem que me esperem com sua carta na mão homens e mulheres e crianças”.

O narrador Martínez adverte que “sólo un historiador convencional toma al pie de la letra lo que dicen sus fuentes” (MARTÍNEZ, 1995, p. 28).121

Com isso, afirma-se um historiador não convencional, que não quer apontar a verdade sobre os fatos como se houvesse a verdade e esta fosse única. Sempre que relata um determinado evento, o narrador duvida, desconfia da versão apresentada e parte em busca de outras informações, outras fontes. Neste movimento, outras informações surgem e ensejam novas buscas, assim a ficção se duplica internamente, como uma série interminável de babushka s:

As babushkas são aquelas bonecas thecas (os russos também as chamam “matrioshkas”)

que se encaixam umas dentro das outras. A criança abre a primeira e encontra no seu interior outra semelhante, mas menor. Abre essa boneca menor e encontra uma terceira, ainda menor, e assim por diante até a última, pequeníssima, de madeira maciça – que não se abre. O brinquedo parece ter por objetivo provocar a surpresa, mas como provocar surpresa ad infinitum? Basta deixar a última boneca fechada; o processo de reiteração e miniaturização preserva o mistério. O que há no interior do corpo? Um outro corpo. O que há no interior do outro corpo? Um outro corpo, ainda. O que há no interior desse novo corpo: Também um outro corpo. Como a última boneca é de madeira maciça, a criança experimenta a sensação combinada de decepção e júbilo. Se a última boneca não se abre, não podemos saber o que há dentro dela; não podemos saber se é possível haver uma boneca menor ainda. Ora, se há algo que ainda não sabemos, ainda temos uma boa razão para viver: procurar saber (BERNARDO, 2010, p. 31).

Em Santa Evita, a série de babushkas chega ao fim, ou ao momento em que se montam novamente as bonecas, uma dentro da outra, e é possível começar o jogo outra vez, quando o narrador abre a última babushka e vê a si mesmo, encontra-se em sua ficção; ele é a boneca maciça e agora precisa saber em que ponto do relato está.

Martínez narrador oscila entre a tentação de dar veracidade a seu relato e construir outra realidade. Percebe-se que a segunda opção prevalece: “Todo relato es, por definición, infiel. La realidad, como ya dije, no se puede contar ni repetir. Lo único que se puede hacer con la realidad es inventarla de nuevo” (MARTÍNEZ, 1995, p. 97).122 Diante da infidelidade do relato, apresenta-se a invenção da realidade. Ao utilizar as fontes historiográficas, o escritor não pode ressuscitar a realidade e sim recriá-la, pois a linguagem escrita: “Puede resucitar los sentimientos, el tiempo perdido, los azares que enlazan un hecho con otro, pero no puede resucitar la realidad (…) la realidad no resucita: nace de otro modo, se transfigura, se reinventa a sí misma en las

121

Em português: “Mas só um historiador convencional toma ao pé da letra as declarações das fontes” (MARTÍNEZ, 1996, p. 25).

122 Em português: “Todo relato é, por definição, infiel. A realidade, como já disse, não pode ser contada nem

novelas” (MARTÍNEZ, 1995, p. 85).123

Cabe ressaltar que é através da escrita que Martínez narrador faz a reinvenção da realidade: “No sabía que la sintaxis o los tonos de los personajes regresan con otro aire y que, al pasar por los tamices del lenguaje escrito, se vuelven otra cosa” (p. 85).124 Por isso, afirma que a melhor maneira de tratar de fatos históricos é através da ficção.

Observa-se, em Santa Evita, a metaficção, já que em todo o tempo o romance reflete sobre sua condição de ficção, acentuando a figura do autor e o fato de escrever. Comentando sobre sua própria produção, o narrador define as fontes que utiliza.

A respeito das fontes deste romance: o narrador classifica-as como de confiança duvidosa, assim como a realidade e a linguagem, porque nelas se infiltraram deslizes da memória e verdades impuras. Discute que as fontes são uma dor de cabeça para os historiadores e os biógrafos porque não se bastam a si mesmas, necessitam ser confirmadas por outras em uma cadeia “a menudo infinita, a menudo inútil porque la suma de fuentes puede también ser un engaño” (MARTÍNEZ, 1995, p. 143).125 Para confirmar tal ideia, dá como exemplo a certidão de casamento de Perón e Evita. É verdade que houve o casamento, mas os noivos mentiram: “Perón mintió el lugar de la ceremonia y el estado civil; Evita mintió la edad, el domicilio, la ciudad donde había nacido” (MARTÍNEZ, 1995, p. 143).126

Para Martínez narrador, ambos mentiram porque decidiram ser como romancistas e criar outra realidade.

Na obra, a história apresenta-se como uma versão. O narrador discute em alguns momentos que versões deve utilizar:

Y, sin embargo, no sé con cuál versión quedarme. ¿Por qué la historia tiene que ser un relato hecho por personas sensatas y no un desvarío de perdedores como el Coronel y Cifuentes? Si la historia es – como parece – otro de los géneros literarios, ¿por qué privarla de la imaginación, el desatino, la indelicadeza, la exageración y la derrota, que son materia prima sin la cual no se concibe la literatura? (MARTÍNEZ, 1995, p. 146).127

123 Em português: “Pode ressuscitar os sentimentos, o tempo passado, os acasos que enlaçam um fato a outro, mas

não pode ressuscitar a realidade (...) a realidade não ressuscita: nasce de outro modo, transfigura-se, reinventa-se a si

mesma nos romances” (MARTÍNEZ, 1996, p. 73).

124 Em português: “Não sabia que a sintaxe e os tons dos personagens voltam com outro ar e que, ao passar pelos crivos da linguagem escrita, se tornam outra coisa” (MARTÍNEZ, 1996, p. 73).

125 Em português: “A cadeia costuma ser infinita e inútil, porque a soma das fontes também pode ser um engano”

(MARTÍNEZ, 1996, 124).

126Em português: “Perón mentiu o lugar da cerimônia e seu estado civil; Evita mentiu a idade, o endereço e a cidade onde nasceu” (MARTÍNEZ, 1996, p. 124).

127Em português: “Mas, ainda assim, não sei com que versão ficar. Por que a história tem que ser um relato feito por

pessoas sensatas e não um desvario de derrotados como o Coronel e Cifuentes? Se a história é – como parece ser – mais um gênero literário, por que privá-la da imaginação, do desatino, da indelicadeza, do exagero e da derrota que constituem a matéria-prima sem a qual não se concebe a literatura?” (MARTÍNEZ, 1996, p. 126).

A produção da história, feita pelos historiadores, deve, segundo Martínez narrador, ser considerada criação, invenção. Ou seja, os fatos existem, mas o encadeamento de um evento a outro se dá por intermédio do historiador que, assim, cria versões e as escreve: “A lo mejor la historia no se construía con realidades sino con sueños. Los hombres soñaban hechos, y luego la escritura inventaba el pasado. No había vida, sino relatos” (MARTÍNEZ, 1995, p. 176).128

Diferente do sonho, que não segue uma ordem temporal fixa, os historiadores tradicionais seguem o tempo cronológico em suas narrativas. Como se os fatos se passassem um após outro. Por isso, às vezes, torna-se difícil perceber as simultaneidades. Em Santa Evita, há a opção por não seguir o tempo cronológico, como já se faz há muito na literatura – talvez isto seja uma lição para a história. Percebem-se os fatos simultâneos, as idas e vindas para esclarecer as circunstâncias, além do tempo cíclico que se percebe ao final do romance, quando o narrador declara: “En la soledad de Highland Park, me senté y anoté estas palabras: ‘Al despertar de un desmayo que duró más de tres días, Evita tuvo al fin la certeza que iba a morir’ ” (MARTÍNEZ,

1995, p. 390, grifo meu).129 A frase destacada é a mesma que inicia o romance. Quando chega ao final do romance, Martínez narrador declara não saber em que ponto do relato está; crê estar no meio e diz que agora tem de escrever outra vez. A narrativa torna-se cíclica. Esta é a opção que faz para sua versão da história.

Diante de várias versões o que se percebe é que “nada se parece a nada, nada es nunca una sola historia sino una red que cada persona teje, sin entender el dibujo” (MARTÍNEZ, 1995, p. 170).130 O tecido da história forma-se quando se elege o caminho que se vai seguir, já que “la realidad no es una línea recta sino un sistema de bifurcaciones” (MARTÍNEZ, 1995, p. 177).131 O narrador chama a atenção para isso, ao dizer que a armadilha da história é que não nos vemos nela; se nos víssemos, não haveria história, porque ninguém iria querer mover-se, por puro terror (MARTÍNEZ, 1995, p. 248). Entretanto, em todo o tempo os homens estão atuando como agentes históricos.

Seria necessário contrapor à história oficial, registrada nos livros e conhecida pelo senso comum como versão definitiva e verdadeira, outras versões, pois “la realidad es un río. Los

128Em português: “Talvez a história não fosse construída de realidades, e sim de sonhos. Os homens sonhavam fatos, e depois a escritura inventava o passado. Não existia vida, só relatos” (MARTÍNEZ, 1996, p. 152).

129 Em português: “Na solidão do Highland Park, sentei e anotei estas palavras: ‘Ao acordar de um desmaio que

durou mais de três dias, Evita teve por fim a certeza de que ia morrer’” (MARTÍNEZ, 1996, p. 335, grifo meu).

130Em português: “nada se parece com nada, nada nunca é uma só história e sim uma rede que cada pessoa tece, sem entender o desenho” (MARTÍNEZ, 1996, p. 147).

hechos llegan y desaparecen” (MARTÍNEZ, 1995, p. 271).132

Assim, a escrita é atividade fundamental do historiador e do escritor literário que devem escrever contra o esquecimento, pois “lo que no si escribe, ni si filma, se olvida” (MARTÍNEZ, 1995, p. 221).133

Também se pode escrever para colocar-se fora da história, como disse Walsh que fez, ao relatar o que aconteceu ao corpo de Evita em seu conto “Esa mujer” (MARTÍNEZ, 1995, p. 306), como se fosse ficção. E assim foi recebido pelos argentinos, como ficção, já que nada fora da ficção poderia ter lugar na Argentina (MARTÍNEZ, 1995, p. 304). Entretanto, Martínez narrador escreve para se inserir na história.

Como já foi dito, o historiador deve estabelecer elos que dêem sentido aos fatos. Da mesma maneira, o escritor. E ambos têm a seu dispor a vantagem da liberdade: “convertir mentiras en verdades y contar verdades que parecen mentiras” (MARTÍNEZ, 1995, p. 360).134

Historiador e escritor fazem uso da linguagem escrita para compor seu relato. Segundo o narrador (1995, p. 365), o relato é o manancial de um mito, pois história e mito bifurcam-se e no meio fica o reino indestrutível da ficção. Por isso, dizer como nasce o mito na história (no caso, o mito de Evita) só é possível através da ficção. Como já apontado no capítulo anterior, a ficção permite a união de uma variedade de linguagens, de pontos de vista que seriam contraditórios em outros tipos de discurso. Na ficção, os relacionamentos sempre parecem convincentes, devido à mudança de valores que operam (ISER, 1983, p. 393).

Na elaboração de sua narrativa, Martínez narrador discute a tarefa literária e a criação de outras realidades. Além disso, discute o papel do historiador na produção da história. Demonstra que a história é uma construção e que os historiadores, ao escreverem-na, expõem suas versões dos fatos. Portanto, as versões apresentam-se como possibilidades. Ao unir em seu relato história e ficção, preenche os espaços da historiografia oficial com sua ficcionalidade e constrói uma ficção com elementos que possuem efeito de historicidade.

132Em português: “a realidade é um rio. Os fatos chegam e desaparecem” (MARTÍNEZ, 1996, p. 232). 133Em português: “O que não está escrito nem filmado, se esquece” (MARTÍNEZ, 1996, p. 189).

134 Em português: “transformar as mentiras em verdades e contar verdades que em tudo pareciam mentira”

3.3 NOTAS

Outro elemento que possibilita o efeito de historicidade da ficção é a inclusão de notas de pé de página. Chama-se aqui igualmente de notas as páginas após o final do romance Santa Evita, nas quais o narrador/autor dedica-se a agradecer as pessoas que o ajudaram nas pesquisas para a narração/escrita.

Em Santa Evita há treze notas de pé de página espalhadas ao longo do texto. Seguem o mesmo padrão de textos reais, ou seja, as notas são incluídas sempre que o narrador sente necessidade de esclarecer um determinado ponto. Criam o efeito de historicidade, pois, segundo Antoine Prost (2008, p. 235), a nota é um sinal exterior que evidencia a manifestação da história erudita: “à margem de sua narrativa, o historiador faz correr, assim, de forma intermitente, um texto paralelo, um metatexto” (PROST, 2008, p. 251). O historiador utiliza o recurso das notas

para embasar suas afirmações. As notas representam as provas, indicando que existem documentos fora do texto que permitem a reconstrução do passado. Ao apontarem para estes documentos, as notas possibilitam a reconstrução do caminho percorrido pelo historiador. Assim, este apresenta as provas a quem quiser verificar em que se baseia sua argumentação.

Como indícios do aparato crítico, as notas carregam os exemplos precisos que o historiador cita para comprovar suas afirmações ou discutir uma fonte. Portanto, as notas afirmam o estatuto da veracidade, pois para a história só importa o que pode ser comprovado.

No interior da ficção, as notas fazem parte do âmbito metaficcional e, no caso do romance

Santa Evita, contribuem para estabelecer o efeito de historicidade da ficção. Através das notas de pé de página, a ficção se apresenta como se fosse história, podendo assim ser tomada pelo leitor.

As notas presentes em Santa Evita esclarecem, apresentam detalhes e estabelecem intertextualidade. A nota número 6 (MARTÍNEZ, 1995, p. 148), por exemplo, esclarece sobre os nomes de alguns personagens. Segundo o narrador, nas fichas do Coronel Moori Koenig os nomes dos oficiais e suboficiais aparecem trocados: Arancibia não se chamava Arancibia, nem Galarza era chamado de Galarza. O narrador esclarece ainda que se manteve fiel à vontade de guardar segredo do Coronel em relação a esses nomes e ao nome da cunhada de Arancibia, que também é apresentada sob nome alheio no capítulo 11 (MARTÍNEZ, 1995, 255).

Nesta análise, cabe questionar por que o narrador opta por guardar segredo: Para preservar os militares e suas famílias? Por que este é um episódio não resolvido na história argentina? Ou

por que os eventos narrados envolvendo tais pessoas são essencialmente ficcionais? As questões ficam em aberto, afinal não há respostas. Considerando-se que a própria existência das cópias do corpo é discutível, e que cada militar, de acordo com a ficção, estava envolvido na operação de ocultação do original e das cópias, poder-se-ia discutir a existência real de tais personagens que não recebem nomes reais.

Algumas notas apresentam detalhes aparentemente inúteis, como a nota número 5: “El Coronel no podía saber, mientras escribía estas notas, que doña Juana iba a morir el 12 de febrero de 1971” (MARTÍNEZ, 1995, p. 136).135

O narrador informa a data da morte de Juana Ibarguren, mãe de Evita, para completar os dados nas fichas do Coronel Moori Koenig. Além desta, há outras notas que trazem detalhes, como, por exemplo, a nota número 8 (MARTÍNEZ, 1995, P. 277) que é a tradução de uma frase em alemão dita pelo Coronel. Embora estes detalhes possam parecer inúteis, despertam a imaginação do leitor através de pontos de referência, deflagrando o efeito de historicidade.

A nota número 10 (MARTÍNEZ, 1995, p. 287) apresenta claramente uma marca de historicidade, pois menciona que o livro Mi mensaje, originado pelo diário de Evita, havia sido publicado e estava à venda nos kioscos na época em que Cifuentes deu entrevistas ao narrador (1985-1988). Uma informação como esta possibilita ao leitor aproximar a ficção da realidade, afinal o narrador introduz a realidade na ficção por meio desta menção, gerando o efeito de historicidade.

Observam-se as notas que se relacionam a outros textos ou gêneros. A intertextualidade se verifica logo na nota número 1:

“Aquel final de Evita fue triste como las radionovelas de los años 40”, me dijo doña Juana la única vez que la vi. “Las cosas de las que hablamos ese día eran como las que

Alicia, la chica inválida, hablaba con su ama de llaves en una obra que se llamaba, creo,

Sueño de amor”. Evita Duarte interpretó el personaje de Alicia en la radionovela Una promesa de amor, de Martinelli Massa, que se difundió por radio El Mundo en junio de 1942 (MARTÍNEZ, 1995, p. 40).136

O intertexto se tece com as radionovelas. O narrador esclarece sobre os momentos finais de Evita comparando-os com radionovelas. Alega que tal comparação partiu da mãe de Evita,

135Em português: “O Coronel não podia saber, enquanto escrevia essas notas, que dona Juana iria morrer no dia 12 de fevereiro de 1971” (MARTÍNEZ, 1996, p. 118).

136Em português: “Aquele final de Evita foi triste como as radionovelas dos anos 40”, disse-me dona Juana, a única vez que a vi. “As coisas de que conversamos naquele dia foram como as que Alicia, a mocinha inválida, conversava

com sua governanta, em uma novela chamada, se não me engano, Sueño de amor.” Evita Duarte interpretou a

personagem de Alicia na radionovela Uma promessa de amor, de Martinello Massa, transmitida pela rádio El Mundo em junho de 1942.

Juana. Cita nominalmente um personagem interpretado por Evita, a radionovela e o ano. Esta profusão de detalhes cria o efeito de historicidade, dando ao leitor a impressão, ou quase a certeza, de que o narrador sabe do que está falando, e que, portanto, é digno de crédito.

Outro exemplo de nota que contém informações intertextuais é a nota número 7 (MARTÍNEZ, 1995, p. 163). O narrador havia mencionado no corpo do texto do romance o inventário do que foi encontrado na sede da CGT após o sequestro do cadáver em 1955. Dentre o que foi ali encontrado, está uma caderneta, provavelmente do Dr. Pedro Ara, que contém frases incompletas. No corpo do texto do romance, as frases aparecem fora da ordem numérica das páginas da caderneta:

Una libreta con anotaciones manuscritas, que se atribuyen al doctor Pedro Ara. Consta

de catorce hojas. Sólo se han podido descrifrar las siguientes oraciones: “le haremos con

brocatos un sudario bordado reemplazando al que tiene que le deja al aire” (hoja2) / “–

libre no –” (hoja9) / “las pantorrillas mostrando para mayor contorsión” (hoja8) / “de

los súbditos” (hoja 4) / “la huella o la mordida de los rayos” (hoja 3) / “la falta de los

tules” (hoja 10) / “de dermis necrosada” (hoja 6) / “para abrirla y que penetren” (hoja

11) “las toses de los pobres” (hoja 13) (MARTÍNEZ, 1995, p. 162).137

O narrador esclarece, através da nota, que, no inventário original, as frases seguiam a ordem das folhas. Afirma o narrador que seguiu a ordem estabelecida por Néstor Perlongher e incluída na segunda parte de seu poema “El cadáver de la nación”, dedicado a Evita. Interessa aqui observar que o narrador preferiu a reorganização da ficção que a informação objetiva, real, pois o reordenamento estético operado na ficção conferiu mais sentido à realidade. Isto faz lembrar a ideia de Carlos Fuentes, exposta no primeiro capítulo desta dissertação, de que a ficção diz o que de outra forma não seria dito (FUENTES, 2007, p.30). Apenas este reordenamento da realidade pode conferir a si mesma algum sentido.

Os agradecimentos ao final do romance contribuem também para dar efeito de historicidade. Normalmente, as obras ficcionais não trazem este tipo de complementação. O narrador, agora fundido ao autor, agradece, citando nominalmente, as pessoas que o teriam ajudado a encontrar as pistas sobre a história que narrou. O primeiro agradecimento é para Rodolfo Walsh: “que me guió en el camino hacia Bonn y me inició en el culto de ‘Santa Evita’ ”

137 Em português: “Uma caderneta com anotações manuscritas, atribuídas ao doutor Pedro Ara. Contém catorze folhas. Só puderam ser decifradas as seguintes orações: “com brocados faremos um sudário bordado substituindo o atual que deixa à mostra (folha 2) “– não livre –” (folha 9) / “suas panturrilhas para maior contorção” (folha 8) / “dos súditos” (folha 4) / “a marca ou mordedura dos raios” (folha 3) / “a falta dos tules” (folha 10) / “de derme necrosada” (folha 6) / “para abri-la e que penetre” (folha 11) / “a tosse dos pobres” (folha 13)” (MARTÍNEZ, 1996, p. 140).

(MARTÍNEZ, 1995, p. 393).138 O narrador atribui a Walsh seu interesse pela história do corpo embalsamado de Evita.

Observa-se que o narrador diz ter sido ajudado em três áreas de investigação: informações

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 97-128)